De modo a permitir uma melhor compreensão acerca da liberdade sindical, impõe-se um estudo de sua evolução histórica. Desde as origens do movimento associativo laboral, no século XVIII, até os dias atuais, houve significativas transformações não apenas quanto à formação, à estrutura e à atuação de ditos grupos, mas também quanto à sua relação com o Estado e com as normas vigentes. Assim, analisando dito processo de desenvolvimento, a doutrina identifica três períodos distintos na história da liberdade sindical.
Inicialmente, viveu-se o período que Melgar chamou de “proibição absoluta dos sindicatos”1. Dita classificação remete à Primeira Revolução Industrial, com início no final do Século XVIII. Neste momento histórico, ocorreram inúmeras modificações no processo produtivo, em especial pela utilização de máquinas (“maquinismo”), o que levou a incrementos muito significativos na produtividade. Todavia, dito incremento acarretou, também, um aumento na exploração da força de trabalho. Esta condição alcançou níveis muito elevados, sendo os trabalhadores submetidos a jornadas de trabalho extensas, bem como iniciando o labor desde idades muito tenras2.
Todavia, muito embora expostos a condições degradantes de trabalho, os empregados não possuíam a faculdade de agrupar-se em busca de melhores condições. Como leciona Melgar3, na França, ainda durante o Antigo Regime já se intentava proibir o direito de associação profissional. Foi o caso, por exemplo, do Édito de Turgot, que data de 1776 e que buscou restringir as corporações. Porém, foi a partir da Revolução Francesa que se impuseram as mais severas restrições à matéria em questão. Refere Sturmer4 que, com a Revolução, passou-se a adotar uma ideologia liberal, com o entendimento de que não deveria haver intermediários entre o Estado e os cidadãos. Assim, diversas regulamentações foram adotadas a fim de restringir o o direito de formar organizações profissionais.
Neste ponto, merece destaque a Lei “Le Chapelier”, de 1791, a qual extinguiu as corporações de ofício e proibiu de forma expressa as associações profissionais. Ainda na França, o Código Penal de Napoleão (1810) tratou como delitos a coligação profissional e a greve, prevendo sanções penais. Moraes Filho5 sumariza nos seguintes termos o posicionamento da Lei “Le Chapelier”: “cada um cuide de si e siga as suas próprias condições personalíssimas de trabalho”. Já no Reino Unido, o Combination Act, de 1799, buscou adotar medida semelhante, proibindo associações profissionais6. Na Espanha, o Código Penal de 1822 dispôs também trouxe restrições acerca da matéria.
No Brasil, como refere Sturmer7, a proibição às corporações de ofício foi recebida a partir da outorga da Constituição Imperial de 1824, a qual, em seu artigo 179, XXV, previa que “ficam abolidas as Corporações de Officios, seus Juizes, Escrivães e Mestres”8. Tinha-se também no cenário interno, portanto, uma visão contrária às associações profissionais.
O que se observa, portanto, é que, neste primeiro período histórico, a relação mantida entre o Estado e as associações profissionais obreiras era, como descrito por Moraes Filho9, de absoluta hostilidade. O Estado negava o reconhecimento legal a essas, sancionando penalmente quem a elas aderisse. Já para a classe operária, o Estado se apresentava como mais uma representação da classe burguesa, dessa vez transfigurada em poder público e replicando, agora em maior escala, a exploração que já ocorria nas fábricas. Pode-se compreender, por tais motivos, porque De la Cueva denominou esta fase inicial da liberdade sindical como sendo uma “Idade Heroica”10.
Todavia, como refere Melgar11, muito embora o Estado tenha adotado uma postura proibitiva, o movimento sindical não foi extinto ou, sequer, enfraquecido. Em realidade, o número de entidades passou a crescer de forma muito significativa, tendo por base não apenas a condição de miserabilidade a que estavam expostos os trabalhadores, mas também movimentos sociais como os dos ludistas e dos cartistas, na Inglaterra, e a Revolução de 1848 na França. A proibição e a hostilidade, portanto, não surtiram o efeito esperado pelas classes dominantes.
Nesse cenário, Sturmer12 refere que o maior impulso aos movimentos de associação profissional veio com a publicação, em 1848, do Manifesto Comunista, escrito por Marx e Engels. Dita obra, como é sabido, trouxe uma complexa análise acerca das condições de trabalho na Europa, adotando viés crítico quanto à exploração dos trabalhadores. Seus impactos sobre as relações políticas e, em especial, de trabalho foram muito significativos, com reflexos que, inclusive, se estendem aos presentes dias.
Inicia-se, aqui, o segundo período histórico da evolução da liberdade sindical, chamado por Melgar13 de “reconhecimento inicial dos sindicatos” e por De la Cueva14 de “Era da Tolerância”. No cenário internacional, a passagem para um novo período de relacionamento entre Estado, principalmente, e associações profissionais obreiras implicou transformações legislativas relevantes. Na França, no regime de Napoleão III, publicou-se a Lei de 25 de maio de 1864, a qual, alterando a Lei “Le Chapelier”, suprimiu o delito de “coalizão”. Ademais, permitiu o exercício do direito de greve, desde que respeitados os limites impostos. Como indicativo da flexibilização que ocorria, refere Melgar15 que foi fundada em 1864 na França a primeira organização com o nome de “sindicato” (“chambre syndicale”), o dos sapateiros de Paris.
Nos Estados Unidos, importante passo em direção ao reconhecimento dos sindicatos se deu com o julgamento do caso Commonwealth v. Hunt pela Suprema Corte de Massachusetts, em 1842. Neste, o voto prevalente, proferido pelo Justice Shaw, definiu que o crime de conspiração (“conspiracy”) não se aplicava às associações sindicais, as quais buscavam o lícito fim de unir trabalhadores que atuavam na mesma área profissional16. Trata-se, portanto, de reconhecimento jurisprudencial acerca da relevância da atuação e dos fins do movimento associativo obreiro.
Fundamental ainda destacar que, neste período, a Igreja Católica decidiu se manifestar acerca da chamada “questão social”. Tal se justificou pela observação da condição de miserabilidade a que estavam sendo expostos os operários, bem como pela consideração dos riscos à paz social e, também, à economia decorrentes de tal condição. Nesse sentido, foi editada em 1891 a Encíclica Rerum Novarum, por meio da qual a Igreja Católica buscou defender uma conciliação entre operários e patrões, com condições melhores para ambos. Ademais, a Encíclica refere expressamente que, quanto aos conflitos, “será preferível que a solução seja confiada às corporações ou sindicatos”. Tratou-se, portanto, de importante incentivo à atividade associativa, destacando, porém, a necessidade da atuação pacífica de ditas organizações17.
No Brasil, Sturmer18 destaca que “Ligas Operárias” foram fundadas já a partir de 1870. Porém, foi com a Proclamação da República, em 1889, que estas tiveram novo impulso. Muito embora a greve fosse proibida pelo Código Penal de 1890, diversos movimentos paredistas ocorriam, como o dos cocheiros no Rio de Janeiro em 1900. Afirma ainda o autor que não havia, no Brasil, restrição expressa à formação de associações, o que estimulava a união dos trabalhadores em ditas entidades.
Ainda no Brasil, observa-se que, em 1903, o Decreto nº 979 permitiu a sindicalização dos profissionais da agricultura e das indústrias rurais, com poucos requisitos formais. Já em 1906, foi fundada a primeira organização com o nome de “sindicato” no Brasil, o Sindicato dos Trabalhadores em Mármore, Pedra e Granito de São Paulo. Após, em 1907, o Decreto nº 1.637 regulamentou o sindicalismo urbano. Diversas outras normas nesse período histórico permitiram também um avanço na regulamentação de matérias ligadas ao direito de associação profissional. Configurou-se, portanto, um novo e, de certa forma, positivo cenário para a liberdade sindical.
Passou-se, portanto, à terceira fase do processo de evolução do reconhecimento da atividade sindical (e, por consequência, da própria liberdade sindical). Trata-se da fase de “generalização do reconhecimento dos sindicatos”, conforme Melgar19, ou de “reconhecimento das instituições pela legislação ordinária”, como refere De la Cueva20. Melgar21 explica que, já no final do Século XIX, começaram a ser publicadas leis que positivavam o direito de reconhecimento dos sindicatos, cada vez com menores restrições. Na França, por exemplo, a Lei Waldeck Rousseau, de 1884, revogou a Lei “Le Chapelier” e permitiu a formação de associações laborais, ainda que com algumas restrições. No Reino Unido, por sua vez, o “Trade Union Act” de 1873 legalizou os entes sindicais, sentido semelhante ao seguido nos Estados Unidos com o “Clayton Act” (1914) e com a Lei “Norris-La Guardia” (1932).
Houve, portanto, significativo progresso no sentido do reconhecimento, na legislação ordinária, do direito de associação profissional. Todavia, a partir da promulgação da Constituição Mexicana de 1917, passou-se à verdadeira consolidação da liberdade sindical: o reconhecimento constitucional. Caminho semelhante foi seguido na Constituição de Weimar (1919) e, no Brasil, com a breve Constituição de 1934, a qual, em seu artigo 120, dispunha que “Os sindicatos e as associações profissionais serão reconhecidos de conformidade com a lei”22.
Vê-se, portanto, que a evolução da liberdade sindical percorreu três períodos principais. O inicial, de proibição absoluta e repressão estatal, teve início com a Revolução Industrial e não conseguiu cessar o desenvolvimento das associações profissionais. Após, com a publicação do Manifesto Comunista e com as transformações sociais que vinham ocorrendo e foram intensificadas, passou-se ao segundo período, o da tolerância. Nesse, observou-se a recepção do princípio em questão na legislação ordinária.
Por fim, na transição para o Século XX, passou-se ao período do reconhecimento definitivo, respaldado pela recepção em normas constitucionais e, após, internacionais. Evidentemente, porém, dita evolução histórica, culminando no reconhecimento constitucional e internacional, não implica uma inexistência de restrições, tendo em vista que ainda há um longo percurso necessário rumo à garantia de uma efetiva liberdade sindical.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Decreto-Lei n. 5.452, de 1 de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Rio de Janeiro, 1943. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em: 19 abr. 2020.
CARRION, Valentim. CLT – Comentários à Consolidação das Leis Trabalhistas. 40. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 553
DE LA CUEVA, Mário. El Nuevo Derecho Mexicano del Trabajo, vol. II, 15. ed. Cidade do México: Porrúa, 2014.
ETALA, Carlos Alberto. Derecho Colectivo del Trabajo. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 2017.
MELGAR, Alfredo Montoya. Derecho del Trabajo. 38. ed. Madri: Tecnos, 2017.
MORAES FILHO, Evaristo de. O problema do sindicato único no Brasil: seus fundamentos sociológicos. 2. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1978, p. 107.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção n. 87. Liberdade sindical e proteção ao direito de sindicalização. Brasília. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/temas/normas/WCMS_239608/lang--pt/index.htm. Acesso em: 21 jun. 2020.
_______. Convenção n. 98. Direito de sindicalização e de negociação coletiva. Brasília. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235188/lang--pt/index.htm. Acesso em: 02 jun. 2020.
STURMER, Gilberto. A liberdade sindical na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e sua relação com a Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007.
TRATADO DE VERSALHES. 1919. Disponível em: https://avalon.law.yale.edu/imt/partxiii.asp. Acesso em: 23 abr. 2020.
SUPIOT, Alain. Crítica do Direito do Trabalho. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2016.
MELGAR, Alfredo Montoya. Derecho del Trabajo. 38. ed. Madri: Tecnos, 2017, p. 111.︎
Neste sentido, SUPIOT traz um relato acerca do interrogatório de um pai de duas “aprendizas” que trabalhavam em uma fábrica de tijolos. Conforme relata, o labor das jovens se estendia das três horas da manhã até as dez horas da noite, com breves intervalos para refeições. Ainda, tinham muito pouco tempo para dormir, bem como uma delas, a mais velha, sofreu acidente de trabalho, ficando cinco semanas hospitalizada sem receber qualquer pagamento durante o período. SUPIOT, Alain. Crítica do Direito do Trabalho. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2016, p. 87-88.︎
MELGAR, Alfredo Montoya. Op. cit., p. 111.︎
STURMER, Gilberto. A liberdade sindical na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e sua relação com a Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007, p. 67.︎
MORAES FILHO, Evaristo de. O problema do sindicato único no Brasil: seus fundamentos sociológicos. 2. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1978, p. 107.︎
Muito embora, como refere Melgar, os Tribunais acabaram por aplicar dita restrição apenas em face das associações obreiras, permitindo a formação de associações empresariais. MELGAR, Alfredo Montoya. Op. cit., p. 112.︎
STURMER, Gilberto. Op. cit., p. 67.︎
“Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. (…) XXV. Ficam abolidas as Corporações de Officios, seus Juizes, Escrivães, e Mestres”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm. Acesso em: 19 abr. 2020.︎
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Refere o autor: “A evolução da existência do sindicato na sociedade moderna, surgida depois da Revolução Francesa, caminhou da luta pela sua própria sobrevivência contra o Estado a existência junto a esse mesmo Estado. A princípio, lutavam as organizações profissionais contra os patrões e contra o Estado, que lhes negava o direito de reconhecimento legal. A coalizão e a liberdade de associação eram terminantemente proibidas. O Código Penal punia com alguma gravidade quem infringisse tais dispositivos. As relações existentes entre os possíveis sindicatos e o Estado eram relações de absoluta hostilidade, procurando um destruir o outro da forma a mais rápida e ostensiva. Além daquele espirito individualista e igualitário, de governo absenteísta, da Revolução Francesa, outro motivo também poderoso inspirava o Estado nessa ojeriza pelas organizações de classe, principalmente organizações da classe operaria: o temor de que as associações se transformassem em núcleos revolucionários contra a sociedade constituída. Para os operários, nada mais representava o Estado do que a própria classe burguesa transfigurada em poder público. A classe que os explorava economicamente nas fabricas e nas oficinas, que era a seu patrão nos locais de trabalho, não deixava de sê-lo igualmente nos quadros políticos da nação”. MORAES FILHO, Evaristo de. Op. cit., p. 99.︎
Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo: DE LA CUEVA, Mário. El Nuevo Derecho Mexicano del Trabajo, vol. II, 15. ed. Cidade do México: Porrúa, 2014, p 206.︎
MELGAR, Alfredo Montoya. Op. cit., p. 112.︎
STURMER, Gilberto. Op. cit., p. 69.︎
MELGAR, Alfredo Montoya. Op. cit., p. 112.︎
DE LA CUEVA, Mário. Op. cit., p. 206.︎
MELGAR, Alfredo Montoya. Op. cit., p. 113.︎
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No original: “The manifest intent of the association is, to induce all those engaged in the same occupation to become members of it. Such a purpose is not unlawful”.
Tradução livre: “o objetivo explícito de dita associação é o de induzir todos aqueles engajados na mesma ocupação a se associarem a ela. Dito objetivo não é illegal”.
Suprema Corte de Massachusetts, Commonwealth v. Hunt, 45 Mass. 111 (1842). Disponível em: http://masscases.com/cases/sjc/45/45mass111.html. Acesso em: 02 fev. 2021.︎
Consta, ainda, de dita Encíclica: “Assim, com prazer vemos Nós irem-se formando por toda a parte sociedades deste género, quer compostas só de operários, quer mistas, reunindo ao mesmo tempo operários e patrões: é para desejar que aumentem a sua acção. Conquanto nos tenhamos ocupado delas mais duma vez, queremos expor aqui a sua oportunidade e o seu direito de existência e indicar como devem organizar-se é qual deve ser o seu programa de acção. (...). A experiência que o homem adquire todos os dias da exiguidade das suas forças, obriga-o e impele-o a agregar-se a uma cooperação estranha. (…) Constituída assim a religião em fundamento de todas as leis sociais, não é difícil determiner as relações mútuas a estabelecer entre os membros para obter a paz e a prosperidade da sociedade. As diversas funções devem ser distribuídas da maneira mais proveitosa aos interesses comuns, e de tal modo, que a desigualdade não prejudique a concórdia”. Disponível em: http://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html. Acesso em: 12 out. 2020.︎
STURMER, Gilberto. Op. cit., p. 70-71.︎
MELGAR, Alfredo Montoya. Op. cit., p. 113.︎
DE LA CUEVA, Mário. Op. cit., p. 206.︎
MELGAR, Alfredo Montoya. Op. cit., p. 113.︎
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao34.htm. Acesso em: 19 abr. 2020.︎