Contrato de aprendizagem como ferramenta de ressocialização dos adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas

11/05/2023 às 18:00
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  • Introdução

O modelo protetivo das crianças e adolescentes foi substancialmente alterado pela Constituição da República de 1988 e pelo Estatuto da Criança e Adolescente, ambos inspirados nas diretrizes da Declaração da Organização das Nações Unidas sobre os direitos das crianças. Assim, foi substituída a doutrina do menor em situação irregular (Código de Menores) pela teoria do melhor interesse da criança e doutrina da proteção integral, nos termos do art. 227, da Constituição da República de 1988. Essa nova agenda política está alinhada com as normas da Organização Internacional do Trabalho sobre idade mínima e piores formas de trabalho infantil (Convenções 138 e 182, da OIT e Recomendações 146 e 190, da OIT).

Em relação à idade mínima, no Brasil é vedado o trabalho antes dos 16 anos, salvo na condição de aprendiz a partir dos 14 anos (art. 7º, XXXIII, da CF), regramento que corporifica o direito fundamental ao não trabalho, decorrente do reconhecimento de que os infantes são considerados indivíduos em condição peculiar de desenvolvimento.

Portanto, a aprendizagem é uma situação que excepciona a regra proibitiva legal e pode representar uma relevantíssima ferramenta para fins de ressocialização dos jovens e adolescente em cumprimento de medidas socioeducativas, conforme será abordado ao longo deste trabalho.

  • Instituto da aprendizagem

A aprendizagem é um instituto legal, com expressa regulamentação nos artigos 428 e seguintes da CLT, que tem o propósito de assegurar formação técnico-profissional metódica aos indivíduos com idade entre 14 e 24 anos, salvo pessoas com deficiência, para os quais não se aplica o referido limite etário. O respectivo contrato deve ser celebrado por escrito e ter prazo de vigência máximo de 2 anos, salvo no caso de aprendizes com deficiência (art. 428, § 3º, da CLT).

A aprendizagem é uma relevante política de ação afirmativa, que visa assegurar dignidade a jovens e adolescentes, sobretudo aos que estão em situação de vulnerabilidade, dos quais são exemplos os adolescentes que cumprem medidas socioeducativas. Dessa forma, com fulcro na dimensão objetiva e eficácia horizontal/diagonal do postulado constitucional da função social da propriedade (art. 5º, XXIII e 170, III, da CF), as empresas de quaisquer naturezas – salvo empresas de pequeno porte, microempresas e entidades sem fins lucrativos -, devem contratar, no mínimo 5% e, no máximo, 15% de aprendizes em relação ao quantitativo de empregados que possuem, considerando os postos de trabalho cujas funções demandem formação profissional.

De acordo com o art. 52, do Decreto nº 9579/2018, que foi recentemente substancialmente alterado – mas que não sofreu modificação neste ponto específico em análise -, as funções que demandam formação profissional devem ser compreendidas como as previstas na classificação brasileira de ocupação (CBO). Essa regulamentação pacificou celeuma anterior sobre este ponto, facilitando a delimitação da obrigação a ser cumprida pelos empregadores.

O mesmo decreto (nº 9579/2018) disciplina hipótese das mais relevantes do instituto da aprendizagem, consubstanciada na possibilidade do cumprimento alternativa da cota legal para os casos em que houver dificuldade de conceder a formação prática no estabelecimento empresarial. Trata-se da chamada cota social (art. 66, do Decreto 9579/2018), através da qual a empresa remunera o aprendiz, mas a formação prática é realizada por “entidades de experiência prática do aprendiz”, a exemplo das unidades do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), nos termos do art. 66, § 2º, III, do Decreto 9579/2018.

Portanto, essa alternativa legal permite de forma inconteste a utilização da aprendizagem em favor de adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas, o que será abordado de maneira minudente no tópico seguinte.

  • Adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas e o contrato de aprendizagem

A alternativa de cumprimento da cota por meio da cota social densifica a previsão contida no art. 429, § 2º, da CLT, segundo o qual s empresas “ofertarão” vagas de aprendizes para os adolescentes inseridos no sistema do SINASE, ou seja, em cumprimento de medidas socioeducativas. Embora a redação do dispositivo legal em comento sugira uma certa facultatividade para as empresas adotarem essa iniciativa, trata-se de verdadeiro compromisso oriundo da função social da propriedade, estando alinhado com os objetivos da República de erradicar a pobreza e a marginalização (art. 3º, III, da CF) e promover o bem de todos (art. 3º, IV, da CF). Portanto, conquanto ausente a natureza cogente, as empresas deveriam adotar essa iniciativa, inclusive de forma estimulada pelo Estado.

A alteração implementada no art. 429, § 2º, da CLT foi realizada pela Lei 12.594/2012, que versa sobre as regras do SINASE. Dentre os objetivos das medidas socioeducativas, incluem-se a responsabilização dos adolescentes pelos seus atos e a sua integração social, com garantia dos seus direitos individuais, nos moldes do art. 1º, § 2º, I e II, da Lei 12.594/2012. Vê-se, portanto, que o propósito das medidas socioeducativas não é exclusivamente sancionatório, abarcando também a ressocialização, o que deve ser realizado através de fornecimento de capacitação profissional, consoante previsão expressa no art. 8º, da Lei 12.594/2012.

Percebe-se, assim, que as disposições do regulamento do SINASE estão em plena sintonia com a doutrina da proteção integral, de modo que deve ser associada ao sistema da aprendizagem, na medida em que este é o instrumento mais eficaz do ordenamento jurídico brasileiro para assegurar o direito fundamental à profissionalização dos jovens em vulnerabilidade (art. 227, da CF). Destaque-se, por oportuno, que a aprendizagem alia, a um só tempo, o pleno desenvolvimento das pessoas, o preparo para o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho (art. 205, da CF).

  • Conclusão

À luz de todas as premissas assentadas no presente trabalho, é impositiva a conclusão no sentido de que as empresas devem ser conclamadas a auxiliarem o Estado na tarefa de assegurar dignidade aos usuários do SINASE, sobretudo diante da referibilidade ampla contida no art. 227, da CF, segundo o qual toda a sociedade tem o dever de garantir proteção integral aos infantes. Desse modo, essa postura proativa e socialmente responsável das empresas está em conformidade com o postulado fundamental da função social da propriedade.

  • Referências bibliográficas

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional / Ingo Wolfgang Sarlet. 11. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho / Maurício Godinho Delgado. - 17. ed. rev. atual. e amp..- São Paulo : LTr, 2018.

CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do trabalho: de acordo com a reforma trabalhista / Vólia Bomfim Cassar. - 16. ed., rev. e atual. - Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: MÉTODO, 2018.

RODRIGUES JÚNIOR, Edson Beas. Convenções da OIT e outros instrumentos de direito internacional público e privado relevantes ao direito do trabalho / Edson Beas Rodrigues Jr., organizador. - 4. ed. ampl. - São Paulo : LTr, 2019.

Sobre o autor
Igor Oliveira Costa

Pós graduado em direito material e processual do Trabalho pela ESA/PB. Analista Judiciário do TRT da 2ª Região. Assessor de Desembargador

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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