Considerações sobre o crime de Exercício de Comércio por Oficial (art. 204, do Código Penal Militar)

18/05/2023 às 17:51

Resumo:


  • O artigo 204 do Código Penal Militar proíbe oficiais da ativa de comerciar ou participar na administração ou gerência de sociedades comerciais, exceto como acionistas ou cotistas em sociedades anônimas ou por cotas de responsabilidade limitada.

  • A interpretação e aplicação do artigo 204 requerem conhecimento do direito empresarial e comercial, e o debate jurídico é essencial para o entendimento e a atualização das normas frente às mudanças no direito empresarial brasileiro.

  • A legislação sobre sociedades comerciais, sociedades anônimas e sociedades por cotas de responsabilidade limitada sofreu alterações significativas, impactando a interpretação do crime de exercício de comércio por oficial.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Principais aspectos a respeito do crime de exercício de comércio por Oficial.

Exercício de comércio por oficial

Art. 204. Comerciar o oficial da ativa, ou tomar parte na administração ou gerência de sociedade comercial, ou dela ser sócio ou participar, exceto como acionista ou cotista em sociedade anônima, ou por cotas de responsabilidade limitada:

 Pena - suspensão do exercício do pôsto, de seis meses a dois anos, ou reforma.

 

Crime militar tipificado no Capítulo IV, do Título III (DOS CRIMES CONTRA O SERVIÇO MILITAR E O DEVER MILITAR), do Decreto-lei nº 1.001/69 (Código Penal Militar), o exercício de comércio por oficial é tema polêmico, uma vez que exige conhecimentos na área do direito empresarial e comercial por parte do aplicador da norma.

Mas, o que o direito empresarial e comercial tem a ver com o direito penal militar?

Muito, uma vez que no presente estudo os conceitos do direito empresarial devem ser usados no direito militar para fins de tipificação do crime do art. 204 do Código Penal Militar e merecem algumas considerações importantes.

Nos termos do Código Penal Militar,

 

São requisitos para a consumação do crime militar em estudo:

 

1.      O sujeito ativo deve ser Oficial da ativa;

 2.      Praticar as seguintes condutas comissivas:

 a.      Comerciar (habitualmente, negociar, comprar, vender, revender com o fim de lucro), ou

b.      Tomar parte na administração ou gerência de sociedade comercial (administrar, gerir uma sociedade comercial, esta regida à época da decretação do CPM pela Lei nº 556/1850), ou

c.       Ser sócio de sociedade comercial ou dela apenas participar.

 

Situações em que não há crime militar:

 

1.      Pode ser acionista (possuir ações de uma sociedade anônima – S/A, esta regida à época da decretação do CPM pelo Decreto-lei nº 2.627/40)

2.      Pode ser cotista em sociedade por cotas de responsabilidade limitada (esta regida à época da decretação do CPM pelo Decreto nº 3.708/19)

 

PASSEMOS À ANÁLISE:

 

Antes de mais nada, é importante esclarecer que, passados 52 (cinquenta e dois) anos da decretação do Código Penal Militar, este sofreu poucas alterações e modernizações, o que não ocorreu com a legislação empresarial brasileira.

Para compreendermos as mudanças ocorridas devemos analisar, por partes, o dispositivo penal em estudo, utilizando-se das interpretações histórica e sistemática. Vamos em frente!

 

Do ato de comerciar

 

Conforme o dicionário Priberam da língua portuguesa, comerciar significa negociar, exercer o comércio, o que é corroborado pelo dicionário da Real Academia Espanhola, onde comerciar é “Dedicarse a la compraventa o el intercambio de bienes o servicios.”

Respeitados entendimentos diversos, os quais atribuem o ato de “comerciar” ao que estava estipulado nos já revogados dispositivos do Código Comercial de 1850 (Lei nº 556/50), os mesmos não devem prosperar, uma vez que a prática de comércio é secular e não se limita a conceituações normativas, extrapolando as balizas conceituais do ordenamento jurídico.

Além disso, a Classificação Nacional de Atividades Econômicas, elaborada em 1994 pelo IBGE (oficialmente adotada pelo Sistema Estatístico Nacional e pelos órgãos gestores de cadastros e registros da Administração Pública do país), apresenta-se como meio adequado para definir o que seria a atividade econômica de comerciar, onde, segundo a CNAE, o COMÉRCIO “compreende as atividades de compra e venda de mercadorias, sem transformação significativa, inclusive quando realizadas sob contrato.”, arrematando que o comércio de mercadorias organiza-se em dois segmentos: atacado e varejo.

Desta feita, o conceito de “comerciar” (norma penal militar em branco, sendo esta aquela que estabelece a definição legal do delito, mas remete a complementação da descrição da conduta proibida para outras normas legais, ou infralegais) está perfeitamente posto na referida classificação, criada pela Resolução nº 1, de4 de setembro de 2006, publicada no Diário Oficial da União nº 171, de 05 de setembro de 2006.

Neste sentido, entende-se que não há polêmica quanto à conduta de comerciar, o que é reforçado pela magistral doutrina de Cícero Robson Coimbra Neves e Marcelo Streifinger:

 

Nesse contexto, comerciar poderia ser definido como a compra e venda, reiteradamente, com finalidade de lucro, ou mesmo a intermediação de mercadorias ou de bens e serviços. [...] Note-se que, por fim, a atual realidade trazida pelo Código Civil de 2002, com o novo direito de empresa, nada altera a compreensão dada, já que o Código Penal Militar não se apegou aos conceitos legais de comércio, e sim à compreensão ampla e vulgar do termo. (Manual de Direito Penal Militar, 2012)

 

Do ato de tomar parte na administração ou gerência de sociedade comercial, ou dela ser sócio ou participar, exceto como acionista ou cotista em sociedade anônima, ou por cotas de responsabilidade limitada

 

Adiante, veremos as normas que regulavam e as que atualmente regulam as sociedades comerciais, sociedades anônimas e sociedades por cotas de responsabilidade limitada.

Em 1969, data de decretação do Código Penal Militar, as SOCIEDADES COMERCIAIS eram regidas pelos artigos 300 a 310 do Código Comercial de 1850. Ocorre que, com o Código Civil de 2002, os dispositivos que cuidavam das sociedades comerciais foram revogados pelo artigo 2.045 da legislação civilista, passando tais antigas sociedades comerciais a deixarem de existir serem substituídas pelas sociedades empresariais.

Da mesma forma, as SOCIEDADES ANÔNIMAS eram regidas pelo Decreto-lei nº 2.627/40, o qual foi revogado parcialmente pela Lei nº 6.404/76, sendo que esta última, juntamente com o atual Código Civil, regulam as sociedades anônimas atualmente.

Já as SOCIEDADES POR COTAS DE RESPONSABILIDADE, quando da chegada do Código Penal Militar, eram normatizadas pelo Decreto nº 3.708/19, este revogado tacitamente pelo Código Civil de 2002, nos termos do Enunciado nº 74, da I Jornada de Direito Civil. Atualmente, as sociedades limitadas são regulamentadas pelos artigos 1.052 a 1.087, do Códex civilista.

Nesse sentido, nota-se que a legislação relativa às sociedades comerciais foi revogada expressamente, o que ocorreu de forma tácita ou não no tocante às sociedades anônimas e sociedades por cotas de responsabilidade limitada (atualmente, sociedades limitadas - Ltda). Lembrando que sociedades anônimas e sociedades limitadas são espécies do gênero sociedade empresarial.

A nosso ver, o artigo 204/CPM somente continua com vigência em sua primeira parte: “comerciar o Oficial”, uma vez que as sociedades comerciais não mais existem (se não existem, logicamente o Oficial não pode delas tomar parte na administração, gestão, ser sócio ou delas participar), em homenagem aos princípios da legalidade e da taxatividade, bem como evitar qualquer tipo de interpretação in malam partem.

Portanto, interpretando sistematicamente o Código Penal Militar em conjunto com a legislação de Direito Empresarial, devemos observar que, para a consumação do crime em estudo (art. 204/CPM), necessariamente, o Oficial deve apenas:

 

1.      Comerciar (habitualmente negociar, comprar, vender, revender com o fim de lucro), ou

 

Atualmente, entendemos que não há que se falar em crime militar do art. 204, quando o Oficial:

 

1.      Tomar parte na administração ou gerência (administrar, gerir) de sociedade empresarial (regidas pelo art. 981 e seguintes do Código Civil de 2002), ou

2.      Ser sócio de sociedade empresarial ou dela apenas participar.

3.      Ser acionista de uma sociedade anônima (S/A), modalidade de sociedade empresarial, nos termos do Código Civil de 2002 e Lei nº 6.404/76;

4.      Ser cotista em sociedade limitada (Ltda), modalidade de sociedade empresarial nos termos dos artigos 1.052 a 1.087, do Código Civil de 2002.

 

Entretanto, os tribunais ainda não analisaram de forma aprofundada os aspectos anteriormente abordados, considerando como sendo crime militar do art. 204/CPM o fato de o Oficial tomar parte na administração ou gerência (administrar, gerir) de sociedade empresarial (regidas pelo art. 981 e seguintes do Código Civil de 2002), ou ser sócio de sociedade empresarial ou dela apenas participar.

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Exemplo é o próprio Superior Tribunal Militar já reconhece, logicamente, a revogação do instituto das sociedades comerciais pelo Código Civil de 2002, mas é titubeante em adentrar nos conceitos do Direito Empresarial, o que é colocado em evidência pelos seguintes julgados:

 

Recurso Criminal. Exercício de comércio por oficial. Rejeição da denúncia. O fundamento da decisão, tendo por base o tipo de objeto social, não se constitui como elemento primordial a amparar o argumento de atipicidade da conduta, com o advento do novo Código Civil. A aparente tipicidade da conduta do oficial, cujo nome consta do contrato social como sócio-gerente de sociedade prestadora de serviços, e a evidente complexidade em se conceituar e delimitar a abrangência da expressão "sociedade comercial", prevista no art. 204 do CPM, por exigirem um exame aprofundado, impõem o prosseguimento da ação penal para o perfeito deslinde da questão. Recurso ministerial provido. Decisão unânime.

(Superior Tribunal Militar. nº . Relator(a): Ministro(a) ANTONIO APPARICIO IGNACIO DOMINGUES. Data de Julgamento: 05/12/2006, Data de Publicação: 08/03/2007)

 

Recurso Criminal. Rejeição da denúncia. Exercício irregular do comércio. Presença de elementos suficientes para a propositura da ação penal. Recurso provido. Apenas a ausência da prática efetiva de mercancia não descaracteriza elementares do crime previsto no art. 204 do CPM, cuja tutela visa a impedir o exercício de comércio por oficial no seu sentido mais amplo. O fundamento da decisão, tendo por base o tipo de objeto social, não se constitui como elemento primordial a amparar o argumento de atipicidade da conduta, com o advento do novo Código Civil. A aparente tipicidade da conduta da oficial, cujo nome consta do contrato social como empresária individual e a evidente complexidade em se conceituar e delimitar a abrangência da expressão "sociedade comercial", prevista no art. 204 do CPM, por exigirem um exame aprofundado, impõem o prosseguimento da ação penal para o perfeito deslinde da questão. A manutenção de empresa em nome do militar constitui elemento hábil para a propositura da ação penal. O recebimento da denúncia se impõe quando presentes os elementos que tornem verossímil a imputação criminosa. Recurso Ministerial provido. Decisão unânime.

(Superior Tribunal Militar. nº . Relator(a): Ministro(a) ANTONIO APPARICIO IGNACIO DOMINGUES. Data de Julgamento: 03/12/2009, Data de Publicação: 23/02/2010)

 

            O Tribunal Militar do Rio Grande do Sul, em sentido semelhante, ainda entende que deve ser feita uma analogia, mesmo que in malam partem, entre sociedade comercial e sociedade empresarial, havendo crime militar do art. 204/CPM. A exemplo, segue julgado:

 

Exercício de comércio por oficial. Art. 204 do CP Militar. O conjunto probatório não deixa dúvida de que o oficial acusado, de fato, atuava no comércio de segurança privada e exercia na prática funções gerenciais de empresa de segurança, empreendimento legalmente constituído em nome de sua esposa e de seu genro, realizando tratativas referentes aos serviços de segurança prestados pela empresa, desde captação de clientes, recrutamento de pessoal, emprego operacional e inclusive acertos financeiros. Demonstrada, quantum satis, a habitualidade e o fim de lucro, resta caracterizado o delito de prática irregular de comércio por oficial da ativa. Pena. Erro material. Correção. Por força do disposto no parágrafo único do art. 435 do CPP Militar, em caso de diversidade de votos, em que não se possa constituir a maioria, entender-se-á que o juiz que tiver votado pela pena mais grave tenha, virtualmente, votado pela pena imediatamente menos grave. Se na primeira instância dois juízes absolveram o réu, dois condenaram-no à pena de reforma e um à suspensão do exercício do posto por 8 meses, à evidência, devia ter prevalecido o chamado voto médio (8 meses de suspensão do exercício do posto). Em tais condições, a condenação à pena de reforma bem caracteriza erro material que, ante a ausência de recurso da acusação, pode e deve ser corrigido nesta instância. Apelo defensivo provido em parte. Decisão unânime. Declaração de voto.

(TJM/RS. APELAÇÃO CRIMINAL Nº 2617-24.2010.9.21.0000. RELATOR: JUIZ-CEL. JOÃO VANDERLAN RODRIGUES VIEIRA)

 

Respeitadas as opiniões que defendem que o crime militar do art. 204/CPM deveria ser revogado e se restrinja apenas à esfera disciplinar ( inclusive há projetos de lei nesse sentido), o que vemos é que o mesmo ainda vige e está sendo plenamente aplicado pelos tribunais, necessitando de atualização urgente, principalmente pelo fato de muitos militares (sejam praças ou oficiais) serem empreendedores e desempenharem funções nas mais variadas modalidades de sociedades empresariais (nesse sentido, sugiro a leitura da notícia https://www.metropoles.com/brasil/burlando-lei-5-426-militares-da-ativa-sao-donos-ou-administram-empresas ).

Resumidamente, para evitar que se cometa o crime militar de exercício de comércio por oficial (art. 204/CPM) e consequentemente ser responsabilizado, deve o oficial evitar:

 

·         Comerciar;

·         Participar de, ou integrar sociedade empresária;

·         Administrar sociedade empresária

·         Gerir sociedade empresária;

·         Ser sócio de sociedade empresária.

 

CONCLUSÃO

 

O presente delineamento tem o intuito de incentivar o debate no meio militar a respeito não somente do crime do art. 204, do Código Penal Militar, mas de qualquer temática que surja, uma vez que o debate jurídico é essencial, especialmente entre os oficiais, no sentido de contribuir para o engrandecimento da instituições militares, em especial, da nossa Gloriosa Polícia Militar do Ceará.

 

BIBLIOGRAFIA

 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao67.htm

BRASIL. Código Comercial. Lei Nº 556, DE 25 DE JUNHO DE 1850. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim556.htm

BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de jameiro de 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm

BRASIL. Código de Processo Penal Militar. Decreto lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del1002.htm

BRASIL. Código Penal Militar. Decreto lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del1001.htm

Sites:

https://www.metropoles.com/brasil/burlando-lei-5-426-militares-da-ativa-sao-donos-ou-administram-empresas

 

https://dicionario.priberam.org/comerciar

 

 [1] João Edson Souza Araujo – Capitão do Quadro de Oficiais Combatentes da Polícia Militar do Ceará.

Sobre o autor
João Edson Souza Araujo

Oficial da Polícia Militar do Ceará. Historiador. Bacharel em Direito (UFC).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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