Inicialmente é importante esclarecer que a Lei 14.133, também conhecida como nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, foi publicada no Diário Oficial da União em primeiro de abril de 2021. A lei entrou em vigor na data da sua publicação conforme o Art. 194.
Antes de tratar a responsabilidade subsidiária da administração pública por créditos trabalhistas e a distribuição do ônus da prova, bem como o diálogo com a nova lei de licitações, duas hipóteses normativas previstas no Art. 193, I e II do novo diploma merecem apontamentos, pois, disciplinam a revogação da antiga Lei nº 8.666 de 21 de junho de 1993.
Primeiro, de acordo com o caput do Art. 193 e inciso I, da Lei 14.133/2021 estão revogados os arts. 89 a 108 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, na data de sua publicação.
Segundo, nos termos do caput do Art. 193 e inciso II, da Lei 14.133/2021, estão revogadas a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, a Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, e os arts. 1º a 47-A da Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011, após decorridos 2 (dois) anos da sua publicação oficial.
Desse modo, ao passo que os artigos 89 a 108 da Lei 8.666/93 foram revogados na data da publicação da Lei 14.133/21, os demais dispositivos do diploma anterior estarão revogados após decorridos 2 (dois) anos da publicação da lei nova.
Desta feita, o §1º do Art. 71 da Lei 8.666/93, que trata da reponsabilidade subsidiária não automática da administração pública, permanecerá em vigor até 01/04/2023.
Registradas as considerações acima, salienta-se que o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a Ação Direta de Constitucionalidade nº 16 (ADC/16) e entendeu que é Constitucional a norma inscrita no Art. 71 e §1º da 8.666/93.
Após a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADC/16, o Tribunal Superior do Trabalho inseriu o inciso V na Súmula 331, contendo o seguinte texto "Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.".
Não bastasse isso, a controvérsia sobre a responsabilidade subsidiária da administração pública permaneceu aquecida com a discussão sobre quem recairia o ônus de provar a conduta culposa do ente público na fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas da empresa prestadora de serviço, contratada mediante processo licitatório.
Em 2017 sobreveio o julgamento do Recurso Extraordinário nº 760.931/DF, no qual foi reafirmado o entendimento da ADC/16, bem como fixado a seguinte tese "O inadimplemento dos encargos trabalhistas dos empregados do contratado não transfere automaticamente ao Poder Público contratante a responsabilidade pelo seu pagamento, seja em caráter solidário ou subsidiário, nos termos do art. 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93".
No julgamento do RE 760.931/DF restaram vencidos os Ministros Rosa Weber (Relatora), Edson Fachin, Roberto Barroso, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello, tendo o Acordão sido redigido pelo Ministro Luiz Fux, cujo voto foi acompanhado pela maioria do Tribunal.
Além disso, salienta-se que o item nº 9 do voto da Relatora Ministra Rosa Weber (RE 760.931/DF), ora vencida no julgamento, tratou sobre a questão do ônus da prova e que cabia ao ente público provar que fiscalizou o cumprimento das obrigações trabalhistas da empresa contratada.
Apesar do posicionamento do STF na ADC/16 e no RE 760931, a justiça do trabalho continuou imputando a responsabilidade subsidiária ao ente público, entendendo que lhe cabe o encargo probatório, inclusive, em razão do princípio da aptidão da prova.
Atualmente, tanto as Turmas (exemplo do Ag-ARR-21309-68.2015.5.04.0017) como a Subseção de Dissídios Individuais I do TST (exemplo do E-ED-RR-68600-52.2009.5.15.0087) entendem que cabe à administração pública provar que fiscalizou o cumprimento das obrigações trabalhistas da empresa contratada.
Não obstante, em de novembro de 2020, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a repercussão geral do tema tratado no Recurso Extraordinário (RE) 1298647 (Tema 1118), em que o Estado de São Paulo questiona decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST) que lhe impôs a responsabilidade subsidiária por parcelas devidas a um trabalhador contratado por empresa prestadora de serviço.
No referido Recurso Extraordinário o Estado de São Paulo pede que o STF defina de quem é o ônus de provar eventual conduta culposa na fiscalização de obrigações trabalhistas nesses casos: se do ente público contratante ou do empregado terceirizado, pois a prova da falha da administração pública é fato constitutivo do direito em discussão. O relator do recurso, Ministro Luiz Fux, reconheceu a necessidade de que o STF pacifique, em definitivo, a controvérsia.
Em sua manifestação, o Ministro Luiz Fux afirmou que compete ao Supremo definir, em razão do julgamento da ADC 16 e do RE 760931, a validade da imposição de responsabilidade subsidiária à administração com fundamento na não comprovação da efetiva fiscalização, isto é, pela inversão do ônus da prova.
Para o ministro Luiz Fux, a questão transcende os limites subjetivos da causa e os interesses das partes, em razão de sua relevância sob as perspectivas econômica, social e jurídica, especialmente em razão da declaração de constitucionalidade do artigo 71, parágrafo 1º, da Lei 8.666/1993, pelo STF, "e o possível esvaziamento do seu conteúdo normativo pela inversão do ônus probatório, lastreado, inclusive, no item V da Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho e na jurisprudência pacificada daquela Corte Superior".
Posto isso, verifica-se que tanto a 1ª (AgRg-ED-Rcl 36.836-MA - julgado em 14/02/20, Rel. Min. Alexandre de Moraes) quanto a 2ª (AgRg-Rcl 37.035-MA - julgado em 19/12/19, Rel. Min. Cármen Lúcia) Turmas do STF, provocadas por reclamações constitucionais, têm reiteradamente cassado decisões do TST que reconhecem a responsabilidade subsidiária da administração pública por inversão do ônus da prova em favor do empregado quanto à fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas pela empresa terceirizada.
Em 26/04/2023, na Reclamação 59257 / BA – BAHIA (DJe-s/n DIVULG 28/04/2023 PUBLIC 02/05/2023), a Relatora Ministra Cármen Lúcia, julgou procedente o pedido da PETROLEO BRASILEIRO S A PETROBRAS, para cassar acórdão proferido pela 5ª Turma do TST no Agravo de Instrumento no Recurso de Revista n. 284-65.2016.5.05.0007, quanto à atribuição da empresa de responsabilidade subsidiária pelos débitos trabalhistas inadimplidos pela prestadora contratada.
A Petrobrás ingressou com a Reclamação 59257 contra decisão proferida pela 5ª Turma do TST no Agravo de Instrumento no Recurso de Revista n. 284-65.2016.5.05.0007, que desrespeitou as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 16 e no Recurso Extraordinário n. 760.931-RG (Tema 246).
Ao apreciar a Reclamação 59257, a Ministra Cármen Lúcia fundamentou que “Não se questiona a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar demandas nas quais se analisa a responsabilidade subsidiária da Administração Pública por descumprimento da Lei n. 8.666/1993 nem se debate sobre a natureza jurídica das obrigações decorrentes dos contratos firmados entre a Administração e a empresa terceirizada e entre esta e seus empregados. Assenta-se apenas a impossibilidade jurídica de se imputar culpa sem a prova de o dano suportado pelo trabalhador decorrer diretamente de irregularidade da conduta dos agentes públicos.”.
Além disso, a Ministra Cármen Lúcia salientou que “Na espécie vertente, a responsabilização da entidade administrativa nega vigência ao § 1º do art. 71 da Lei n. 8.666/1993 e contraria a decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 16/DF porque se deu sem a necessária comprovação de culpa.”.
Por fim, entendeu que “Não se pode admitir a transferência para a Administração Pública, por presunção de culpa, da responsabilidade pelo pagamento dos encargos trabalhistas, fiscais e previdenciários devidos ao empregado da empresa terceirizada, sequer sendo de se lhe atribuir a prova de que não falhou em seus deveres legais, do que decorreria alguma responsabilização.”.
Em 29/06/2022, na Reclamação 54.149 ESPÍRITO SANTO (DJ Nr. 127 do dia 30/06/2022), a Relatora Ministra Cármen Lúcia, julgou procedente o pedido da PETROLEO BRASILEIRO S A PETROBRAS, para cassar a decisão questionada (Ag-ED-E-ED-RR - 127500-21.2007.5.17.0191) quanto à atribuição da empresa de responsabilidade subsidiária pelos débitos trabalhistas inadimplidos pela prestadora contratada.
A Petrobrás ingressou com a Reclamação 54.149 contra decisão proferida pelo Órgão Especial do Tribunal Superior do Trabalho, que desrespeitou as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 16 e no Recurso Extraordinário n. 760.931-RG (Tema 246).
Ao apreciar a Reclamação 54.149, a Ministra Cármen Lúcia fundamentou que “Para afirmar a responsabilidade subsidiária da Administração Pública por aqueles encargos, imprescindível a prova taxativa do nexo de causalidade entre a conduta da Administração e o dano sofrido pelo trabalhador. Sem a apresentação dessa prova, subsiste o ato administrativo, e a Administração Pública exime-se da responsabilidade por obrigações trabalhistas com relação àqueles que não compõem os seus quadros.”.
Além disso, a Ministra Cármen Lúcia salientou que “(...) no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 16/DF, a imputação de responsabilidade subsidiária à Administração Pública, desacompanhada da demonstração efetiva e suficiente da irregularidade do comportamento, comissivo ou omissivo, quanto à fiscalização do contrato de prestação de serviços, é “contrári[a] à Constituição, porque o artigo 37, § 6º, trata de responsabilidade objetiva patrimonial ou extracontratual. Aqui é responsabilidade contratual” (DJ 9.9.2011).”
Disse também que “Não se questiona a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar demandas nas quais se analisa a responsabilidade subsidiária da Administração Pública por descumprimento da Lei n. 8.666/1993 nem se debate sobre a natureza jurídica das obrigações decorrentes dos contratos firmados entre a Administração e a empresa terceirizada e entre esta e seus empregados. Assenta-se apenas a impossibilidade jurídica de se imputar culpa sem a prova de o dano suportado pelo trabalhador decorrer diretamente de irregularidade da conduta dos agentes públicos.”.
A Ministra entendeu que “Na espécie vertente, a responsabilização da entidade administrativa nega vigência ao § 1º do art. 71 da Lei n. 8.666/1993 e contraria a decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 16/DF, porque se deu sem a necessária comprovação de culpa.”.
Concluiu que “Não se pode admitir a transferência para a Administração Pública, por presunção de culpa, da responsabilidade pelo pagamento dos encargos trabalhistas, fiscais e previdenciários devidos ao empregado da empresa terceirizada, sequer sendo de se lhe atribuir a prova de que não falhou em seus deveres legais, do que decorreria alguma responsabilização.”.
Ademais, julgando também procedente a Reclamação Constitucional nº 51.899-RS, em 17/03/22 (DJ Nr. 54 do dia 22/03/2022), para cassar a decisão reclamada (20544-80.2017.5.04.0291) quanto à responsabilização subsidiária do ente público reclamante e determinar a exclusão do Município de Sapucaia do Sul do polo passivo da ação trabalhista da origem, a Relatora Min. Cármen Lúcia, do STF, entendeu que “Na espécie vertente, a responsabilização da entidade administrativa nega vigência ao § 1º do art. 71 da Lei n. 8.666/1993 e contraria a decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 16/DF, porque se deu sem a necessária comprovação de culpa.”.
Fundamentou que “Não se pode admitir a transferência para a Administração Pública, por presunção de culpa, da responsabilidade pelo pagamento dos encargos trabalhistas, fiscais e previdenciários devidos ao empregado da empresa terceirizada, sequer sendo de se lhe atribuir a prova de que não falhou em seus deveres legais, do que decorreria alguma responsabilização.”.
Salientou que “Ao proferir, pela segunda vez, decisão de mesmo teor daquela já cassada por este Supremo Tribunal, atribuindo à Administração Pública responsabilidade subsidiária pelos débitos trabalhistas da empresa prestadora, a autoridade reclamada simula o cumprimento da decisão proferida na Reclamação n. 48.250 e segue contrariando o decidido pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 16 e no Recurso Extraordinário n. 760.931, Tema 246.”.
Como visto, nas Reclamações Constitucionais 59.257-BA, 54.149-ES e 51.899-RS, decisões proferidas pelo TST foram cassadas por contrariedade às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 16 e no Recurso Extraordinário n. 760.931-RG (Tema 246), ao admitirem a transferência para a administração pública, por presunção de culpa, da responsabilidade pelo pagamento dos encargos trabalhistas, fiscais e previdenciários devidos ao empregado da empresa terceirizada.
Destarte, no que concerne à nova lei de licitações (14.133/2021), parece que o legislador infraconstitucional solucionou a controvérsia de quem é o ônus de provar a conduta culposa da administração pública na fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas da empresa prestadora de serviço.
O §1º do Art. 121 da Lei 14.133/2021, diz que "A inadimplência do contratado em relação aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transferirá à Administração a responsabilidade pelo seu pagamento e não poderá onerar o objeto do contrato nem restringir a regularização e o uso das obras e das edificações, inclusive perante o registro de imóveis, ressalvada a hipótese prevista no § 2º deste artigo.".
E o §2º do referido dispositivo legal diz que "Exclusivamente nas contratações de serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, a Administração responderá solidariamente pelos encargos previdenciários e subsidiariamente pelos encargos trabalhistas se comprovada falha na fiscalização do cumprimento das obrigações do contratado.".
Da leitura do parágrafo primeiro do Art. 121, infere-se que o legislador editou hipótese normativa no sentido que a inadimplência do contratado em relação aos encargos trabalhistas não transferirá à administração pública, ressalvada a hipótese do parágrafo segundo.
E da leitura do parágrafo segundo do Art. 121, o legislador restringiu a hipótese de responsabilidade subsidiária da Administração Pública pelos encargos trabalhistas, como sendo apenas nas contratações de serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra.
Além disso, no mesmo parágrafo segundo, o legislador disciplinou que a administração pública responderá pelos encargos trabalhistas se comprovada falha na fiscalização do cumprimento das obrigações do contratado.
Desta feita, ao introduzir no §2º do Art. 121, da nova lei de licitações, a expressão "se comprovada falha", o legislador disciplinou regra cuja leitura permite interpretar que o ônus de provar a falha da administração pública caberá ao empregado da empresa contratada.
O texto inscrito no §2º do Art. 121 da nova lei de licitações estabeleceu regra que supera o entendimento do inciso V da Súmula 331 do TST. Ao passo que o dispositivo legal diz "se comprovada falha", de modo distinto o inciso V da Súmula 331 diz "caso evidenciada a sua conduta culposa".
Na Súmula 331 do TST não fica claro de quem é o ônus de provar a conduta culposa ou a falha da administração pública. E por isso o TST vem aplicando o princípio da aptidão da prova. Contudo, a nova lei de licitações disciplinou regra mais clara sobre quem recairá o ônus da prova.
Dessa forma, é possível deduzir da nova lei de licitações que o ônus da prova relativo à falha da administração pública na fiscalização dos encargos trabalhistas, caberá ao empregado da prestadora de serviço, prevalecendo a regra do Art. 818, I, da CLT, que "o ônus da prova incumbe ao reclamante, quanto ao fato constitutivo de seu direito".
Por fim, a questão também reclama cautela, pois, é importante verificar se o STF no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1298647 (Tema 1118), considerando a ADC/16 e o RE760931, levará em conta a superveniência da nova lei de licitações e, portanto, entenderá em definitivo que o ônus da prova da falha da administração pública cabe ao empregado da empresa contratada.
Ou se o STF no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1298647 (Tema 1118), apesar do entendimento da ADC/16 e do RE760931, entenderá que o ônus da prova cabe à administração pública em razão do princípio da aptidão da prova, modulando os efeitos do julgado para aplicação da tese às ações propostas antes da entrada em vigor da nova lei de licitações, por ausência de disposição legal específica acerca do ônus da prova, e, aos casos propostos após a nova lei de licitações, a aplicação do §2º do Art. 121.