Argentina: júri considerou culpados os quatro policiais acusados do Massacre do Monte, dois deles com pena perpétua. Quatro inocentes morreram.

25/05/2023 às 17:52
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O veredicto do júri foi lapidário. Após uma exaustiva deliberação de mais de oito horas, às 21h45 o representante dos jurados leu em voz alta a decisão.

A tensão dentro e fora dos tribunais era insuportável.

Um a um, como golpes, caíam os veredictos. Os quatro policiais foram declarados culpados por todos os fatos e dois deles pegarão prisão perpétua. O ex-capitão Rubén García e o agente Leonardo Ecilapé foram condenados por unanimidade por "homicídio qualificado por abuso de função policial e uso de arma de fogo" (Fato n.º 1).

Por outro lado, por uma maioria de 10 votos sobre 12, os jurados consideraram que os policiais Manuel Monreal e Mariano Ibáñez foram culpados de tentar matar os quatro jovens.

O júri distinguiu cirurgicamente a atuação dos quatro acusados na morte dos quatro jovens e, por isso, condenou-os pelo crime de "tentativa de homicídio qualificado por uso de arma de fogo e abuso de autoridade". Para alguns observadores, a decisão do júri foi surpreendente pela precisão em destrinchar os fatos e as responsabilidades de cada réu.

Foi o promotor Mariano Sibuet quem ficou encarregado de explicar ao público as duas sequências com que o júri dividiu os fatos: "O Fiat 147 é abordado por uma viatura da polícia (no qual García e Ecilapé estavam circulando) e começa uma perseguição. Em seguida, outra viatura se junta à operação em que estavam os policiais Monreal e Ibáñez e um deles faz os primeiros disparos. Um desses tiros se aloja na pelve de Gonzalo (Domínguez). O júri popular considerou que esse fato é uma tentativa de homicídio", explicou Sibuet.

Mas, ao contrário do anterior, o júri condenou todos por unanimidade pelo fato nº 2, que foi a “tentativa de homicídio duplamente qualificado" da jovem Rocío Quagliarello, única sobrevivente.

Houve uma explosão de emoções, lágrimas, abraços e cânticos no setor da sala onde estavam os familiares das vítimas e na mobilização que se passava do lado de fora. Os colegas de escola das vítimas vieram de longe, mais de 100 quilômetros percorridos para estar ali naquele momento tão importante. Soaram os tambores para dar um último suspiro às famílias das vítimas. Ao longo daquele dia, partidos de esquerda, organizações de direitos humanos e até Pablo Díaz, o sobrevivente de La Noche de los Lápices de 1976, se mobilizaram.

A poucos metros dali, e atrás dos acusados, também estavam seus íntimos. O choro também eclodiu nesse setor. Mas ali foi por conta da angústia que vinha de saber que passariam o resto dos dias na cadeia. Ou quase a vida toda.

Foram meses de audiências para preparar o debate liderado de maneira excepcional pela juíza Carolina Crispiani, dez dias consecutivos de julgamento em tempo integral e uma deliberação que parecia eterna.

Dessa forma, o veredicto dos jurados deu fim a um caso emblemático de violência institucional e policial na Argentina do século XXI. Um fato terrível que comoveu todo o país e que se refletiu nas capas de jornais e canais de TV.

Os mortos do Massacre de San Miguel del Monte são: Danilo Sansone (13), Camila López (13), Gonzalo Domínguez (14) e Aníbal Suárez (22). Milagrosamente, Rocío Quagliarello (17), então com 13 anos, sobreviveu (mas com sequelas graves).

No site da Asociación Argentina de Juicio por Jurados (AAJJ), relatou-se dia a dia a crônica do julgamento e como foi a perseguição ilegal e o tiroteio do Fiat 147 em que os jovens estavam.

No sexto dia de julgamento, o perito balístico e criminal Lucas Basanta disse que dois dos quatro policiais atiraram contra o carro em que as vítimas viajavam e descartou que os agentes tenham atirado na direção do chão, como afirmou o defensor Guillermo Baqué. Exatamente esses dois policiais (García e Ecillapé), o júri condenou à prisão perpétua por homicídio qualificado.

O depoimento de Basanta se concentrou na bala de nove milímetros encontrada na coxa esquerda de uma das vítimas, Gonzalo Domínguez (14). A mãe de Gonzalo, Susana Rios, pediu para sair quando a testemunha começou a dar detalhes do tiro que feriu seu filho.

"A deformação do projétil está na parte frontal e não tem uma característica rugosa. Ele pode ter atingido um osso ou um anteparo, como uma placa de carro, e depois ter entrado no corpo da vítima. Não me parece que tenha impactado contra uma superfície dura e plana", explicou Basanta diante dos 12 jurados e da presidente do Tribunal Penal Oral (TOC) 4 da capital Buenos Aires, Carolina Crispiani.

Por outro lado, o especialista, vestido com uma jaqueta azul clara e uma camisa azul escura, atribuiu o tiro a uma arma Bersa Thunder Pro número 13-H57836, que era a arma de regulação de Manuel Monreal, e contou qual foi o procedimento para identificá-la.

No sétimo dia, foi o dia em que a polícia deu sua versão. Alguns curiosos que acompanhavam o julgamento acreditam que a declaração do ex-capitão Garcia foi muito contraproducente para a defesa, pois mostrou um lado extremamente autoritário. Ele se irritou, levantou-se e se recusou a responder às perguntas. 

Pior do que isso, insinuou um problema estrutural que a polícia argentina do século XXI parece não terminar de assimilar e que explica em grande parte como essa tragédia foi desencadeada. Garcia disse que é natural que ele pare as pessoas na rua para identificá-las e que elas têm que obedecer. "Quando vejo uma pessoa em pé esperando o ônibus, se me der na telha eu vou e exijo o seu RG. Posso fazer isso porque sou policial."

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Além disso, sustentou que, quando soube da idade das vítimas, deveria ter dado um “tiro na própria cabeça", já que é "um amante dos direitos humanos", e não um assassino.

O ex-capitão disse conhecer uma das vítimas, Danilo Sansone, que via passar todos os dias em frente à sua casa: "A família Sansone é uma família trabalhadora. Não houve maldade, não sabíamos quem estava no carro, mas tivemos que parar. Não sou assassino. Sou apaixonada pelos direitos humanos. Eu não fiz isso com intenção."

"Aníbal não era um assassino"

Ao longo do julgamento, a defesa dos policiais tentou provar que Aníbal foi o responsável pela morte de seus amigos. É que o jovem de 22 anos, natural de Misiones e que se instalou no Monte para ter uma melhor qualidade de vida, foi quem conduzia o carro em que morreram.

Apesar das tentativas de destruir sua imagem, o júri entendeu que o rapaz não era o culpado por causar a tragédia, mas sim os quatro policiais que os perseguiram naquela noite.

"Sempre dissemos a vocês que Aníbal não era um assassino", gritou o tio de Suárez várias vezes após o veredicto. Foi isso que ele disse à imprensa que aguardava do lado de fora do tribunal.

Os peritos que testemunharam no debate não puderam confirmar que o jovem de 22 anos tenha consumido os 3,26 gramas de álcool no sangue determinados pelo exame de autópsia. Dessa forma, a teoria dos advogados dos policiais não teve um respaldo.

Também não puderam verificar se o rapaz dirigia a toda velocidade, já que nos vídeos mostrados em uma das audiências era possível ver que o Fiat 147, que Aníbal havia comprado com os poucos pesos que conseguiu juntar, circulava muito lentamente pela avenida que beira a lagoa.

"Meu filho é inocente e o acusaram de ser o assassino. Os policiais sempre foram os culpados", disse a mãe da vítima enquanto abraçava os entes queridos.

Nota original completa no site da Asociación Argentina de Juicio por Jurados (AAJJ): http://www.juicioporjurados.org/2023/05/la-plata-el-jurado-declaro-culpables.html?m=1

Sobre a autora
Lisandra Panzoldo

Advogada. Pós-graduanda em Direito Processual Penal pela Damásio Educacional e em Direito Probatório no Processo Penal pela Escola da Magistratura Federal (Esmafe). Autora do livro "O Tribunal do Júri no Brasil e na Argentina. Estudo Comparado", publicado pela editora Lumen Juris e também publicado na Argentina pela editora Ad-Hoc na coleção "Jurados y participación ciudadana en la administración de justicia". Autora de artigos na área jurídica.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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