O caso da mutilação do Pão de Açúcar, no Rio

25/05/2023 às 17:54
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A retirada de parte do corpo da rocha do Pão de Açúcar - 150 metros cúbicos de rocha - é, literalmente, uma mutilação de um bem tombado

Se alguma autoridade pública policial dá a alguém um papel, chamando-o de "licença", autorizando-o matar um outro indivíduo, este que recebeu esta "licença", pode matar? Pode alegar que a autoridade pública lhe deu uma autorização, e que, por isso, está amparado para praticar uma ilegalidade ou um crime? É claro que não! Óbvio e elementar!

Bem, de modo análogo, é este o argumento que tem sido usado pelos defensores (inclusive autoridades públicas) da mutilação do Monumento Natural Cultural e Geológico Nacional e Internacional - o Pão de Açúcar e Morro da Urca, sob o pretexto de lá instalar um equipamento de esporte radical, uma tirolesa: afirmam que podem continuar o processo de mutilação porque os empresários têm licença!

Desde o dia 23 de março, autoridades do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), na pessoa do Superintendente no Estado do RJ, e do Diretor do Diretoria de Patrimônio Material e Fiscalização - BSB (DEPAM) tomaram conhecimento diretamente, por denúncia em reunião presencial do pré-Comitê da Paisagem Cultural, de que o Monumento estava sendo cortado, perfurado, golpeado e raspado para a colocação de uma tirolesa. Prometeram, neste dia, embargar a obra para reexaminar uma suposta "licença" para mutilar, mas não o fizeram. Com isso, permitiram (e continuam permitindo) a continuidade na amputação do ícone brasileiro do Monumento Natural - o Pão de Açúcar.

No dia 10 de abril, em uma nova reunião presencial, a Presidência do IPHAN tomou conhecimento direto dos fatos ilegais. E, até o momento, nenhuma providência de paralisação das obras, sequer para reexame da questão, baseado no princípio da prevenção. A Presidência do IPHAN, a sua Procuradoria Federal, a Superintendência, a Diretoria de Fiscalização, todos receberam as petições da Federação das Associações de Moradores do Município do Rio de Janeiro (FAM-Rio) [1] e [2] denunciando a continuidade do dano e, até o momento, parecem compactuar com a omissão em relação a qualquer providência!

A retirada de parte do corpo da rocha do Pão de Açúcar - 150 metros cúbicos de rocha - é, literalmente, uma mutilação de um bem tombado e, pelo art.17 do DL 25/37 não pode, em nenhum caso, ser objeto de autorização; não se autoriza mutilar, assim como não se autoriza matar!

E é por este motivo que a lei de crimes ambientais, na seção denominada "Dos Crimes contra o ordenamento Urbano e o Patrimônio Cultural", no seu art. 62 tipifica como crime: Destruir, inutilizar ou deteriorar: I - bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial (...). Complemente-se, ainda que o art.2º da lei 9.605/98 diz que: "art.2º: Quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previstos nesta Lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida da sua culpabilidade, bem como diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminoso de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la"

Ora, o art. 62 acima referido não exclui ou relativiza da tipificação criminal o fato de se ter ou não licença. Ou seja, não há licença para destruir ou deteriorar um bem tombado, seja qual for o motivo, assim como não há licença para matar! Simples assim.

Contudo, afirmações têm sido feitas pela Superintendência do IPHAN no Estado do Rio, de que o Instituto pode autorizar "modificações" em bem tombado, querendo assemelhar, assim, autorizações de restauração e adaptações em bens tombados ao corte, à extração e à perfuração da rocha monumento do Pão de Açúcar e Morro da Urca. A completa falta de embasamento técnico e teórico de tais comparações e afirmações coloca em xeque a competência não só do órgão IPHAN, como das autoridades que ora o administram, já que contrastam com o que é ensinado não só na prática institucional, como também com o que é sistematicamente ensinado, para todo o Brasil, em seus cursos de Mestrado profissional. Tais afirmações e/ou comparações, desprovidas de qualquer base ou sentido técnico, colocam em risco o Patrimônio Nacional.

Acrescente-se também que a tal "licença" para mutilar dada pelo IPHAN-RJ, como se fora uma licença de "modificação" de bem tombado, já foi rebatida, contestada, desqualificada e desclassificada por vários laudos de consultores especialistas e instituições de profissionais e técnicas [3].  Mas, destaco duas delas.

A primeira, mais concisa, da Professora Lia Motta, servidora há mais de 40 anos da Instituição, responsável pela construção do Mestrado Profissional no IPHAN, ex-coordenadora deste Programa de Pós-Graduação, de reconhecido e notório saber na área, onde diz que obras de restauro e conservação não se confundem, em nada, com autorização para mutilação de bem tombado.

O segundo texto [4] merece todo destaque e atenção. Trata-se de um verdadeiro estudo, uma análise completa e exaustiva desta situação pelo maior especialista brasileiro em Paisagem Cultural, Carlos Fernando Delphim.

Carlos Fernando presenteou a sociedade brasileira, fluminense e carioca com o seu estudo definitivo, no qual demonstra, de forma cabal, toda a leviandade e incompetência da suposta "licença" para mutilar o Monumento Natural Cultural e Geológico, o Pão de Açúcar. E, assim, fica demonstrado também, que esta "licença" não pode ser travestida numa suposta licença de restauro, conservação ou adaptação eventualmente necessária ao monumento tombado, como um despiste institucional para permitir mutilar o Patrimônio Cultural Brasileiro!

Ler este estudo é fundamental para se ter a dimensão do tamanho do dano material e institucional ao Patrimônio Cultural Brasileiro que esta "licença" para mutilar já causou!

Será que alguma autoridade civil ou criminal dará um basta à continuidade desta destruição, ou todo esse escabroso cenário será ignorado, ainda que já se tenha o completo conhecimento da situação?

Notas

[1] Disponível em:https://drive.google.com/file/d/1PALUmOXKQM31SjslAqZscKxI_eUfMMD3/view

[2] Disponível emhttps://drive.google.com/file/d/1N_aXCj1V2R9Omktn7ClWf8I5zbiDnzQE/view

[3] Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1L-i44B3dW6BIHWLSUgbqXdtvBirtoD5Y/view

[4] Disponível em https://drive.google.com/file/d/1Nh6Iqj-WrYvHsN6KwRzSPRq31yld1-LH/view

Sobre a autora
Sonia Rabello

Sonia Rabello, Professora Titular da Faculdade de Direito da UERJ (aposentada), Ex-Procuradora Geral do Município do Rio de Janeiro

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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