O instituto da culpabilidade e a sua aplicação no crime de maus-tratos aos animais no Brasil

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Nesta pesquisa, objetiva-se proporcionar algumas considerações sobre a relação existente entre o instituto da culpabilidade e o crime de maus-tratos aos animais no Brasil.

Autor: Jario de Oliveira Vieira1

RESUMO: Nesta pesquisa, objetiva-se proporcionar algumas considerações sobre a relação existente entre o instituto da culpabilidade e o crime de maus-tratos aos animais no Brasil. A Lei nº 14.064 promulgada em 2020 alterou a Lei nº 9.605 de 1988 e passou a tratar os crimes deste quadro com uma maior rigidez, estabelecendo sanções penais maiores, isso pois a lei anterior enquadrava os maus-tratos aos animais como crimes ambientais dispondo de penas menores quanto aos maus-tratos. Para tanto, utiliza-se de pesquisa quali-quanti, bibliográfica, exploratória e descritiva, com método hipotético-dedutivo. Este estudo surge da necessidade da compreensão de fatores histórico-sociais que modificaram a visão do legislador acerca do tema em razão de uma forte corrente de personificação dos animais e enquadramento destes como sujeitos de direito. A investigação limita-se aos estudos da trajetória legislativa acerca da tipificação do crime de maus-tratos no ordenamento pátrio, bem como um estudo social acerca do aclive da importância dos animais enquanto sujeitos de direito e, por fim, apresentar dados referentes às denúncias realizadas ao crime de maus-tratos aos animais no Brasil nos últimos anos. Diante da pesquisa realizada, foi possível identificar elevados números de denúncias relacionados ao crime em comento em conjuntura com a forte corrente que defende a personificação destes animais. 

Palavras-chave: Personificação. Culpa. Modernidade. Animais. Sujeito de direito.

 ABSTRACT:  In this research, the objective is to provide some considerations on the relationship between the institute of culpability and the crime of mistreatment of animals in Brazil. Law No. 14,064 enacted in 2020 amended Law No. 9,605 of 1988 and began to treat crimes within this framework with greater rigidity, establishing greater criminal penalties, as the previous law classified mistreatment of animals as environmental crimes with penalties minors regarding mistreatment. For this purpose, quali-quanti, bibliographical, exploratory and descriptive research is used, with a hypothetical-deductive method. This study arises from the need to understand historical and social factors that have changed the legislator's view of the subject due to a strong current of personification of animals and framing them as subjects of law. The investigation is limited to studies of the legislative trajectory about the typification of the crime of mistreatment in the national order, as well as a social study about the rise of the importance of animals as subjects of rights and, finally, to present data regarding denouncements made to the crime of mistreatment of animals in Brazil in recent years. In view of the research carried out, it was possible to identify high numbers of complaints related to the crime in question in conjunction with the strong current that defends the personification of these animals.

Keywords: Personification. Fault. Modernity. Animals. Subject of law.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo apresenta discussões sobre a relação existente entre o instituto da culpabilidade e o crime de maus-tratos aos animais enquanto fator de avanços históricos de personificação dos irracionais. Nessa perspectiva, o artigo se dispõe a analisar como se deu este avanço histórico que passou a ser legislado com maior vigor com a Constituição Federal de 1988, bem como pela Lei nº 9.605/1998, tendo esta última sido alterada recentemente pela Lei nº 14.064/2020, que aborda com uma visão mais rígida a questão dos maus-tratos aos animais, trazendo situações de aumento de pena aos indivíduos que praticam tais condutas. 

Neste segmento, através de técnicas exploratórias serão observados os instrumentos que compõem e cerceiam a Lei nº 14.064/2020 a partir de uma perspectiva exógena-social, tendo em vista a hipótese de que as modificações trazidas pela lei indicam ideias surgidos a partir da abordagem dos animais enquanto sujeitos integrantes da família moderna. Outrossim, é importante ressaltar que a pesquisa se limite a uma análise empírica sobre estes avanços sociais e indicativos da alteração legislativa.

Ao tratar acerca da pesquisa quali-quanti, esta é devida em razão da análise de índices de denúncias realizadas com base no crime de maus-tratos aos animais, que, como apontado anteriormente tem como fato gerador, muitas vezes, o indicativo desses animais integrarem as famílias modernas e passem a ser visto enquanto sujeitos de direito através de um processo de personificação.

Além disso, será evidenciada através  da pesquisa descritiva, a exposição de conceitos fundamentais para o Direito Penal, em especial acerca da culpabilidade e sua incidência sobre o crime de maus-tratos. A razão desta análise é que a modernidade passou a relacionar a culpabilidade como instrumento para efetivar o fato de personalização dos animais.

Destarte, para que se obtenha um melhor entendimento acerca das questões que permeiam a situação motora do presente trabalho, o estudo se dividirá em quatro tópicos centrais, nos quais serão discutidos, preliminarmente, a análise histórica sobre o tratamento na legislação pátria acerca do processo de criminalização dos maus-tratos, alicerçada na ideia de personificação dos animais; o princípio da culpabilidade e seus elementos constitutivos a partir da visão doutrinária e jurisprudencial; princípio da culpabilidade e seus elementos constitutivos a partir da visão doutrinária e jurisprudencial; a análise histórico-social do processo de personificação dos animais e a integralização destes no modelo de família moderna; a análise sobre o crime de maus-tratos aos animais e o fato transitivo da Lei nº 14.064/2020 que alterou a Lei nº 9.605/1998 e; por fim, o estudo quali-quantitativo acerca das denúncias efetivas nos últimos anos.

2 A TRAJETÓRIA DA CRIMINALIZAÇÃO DOS MAUS-TRATOS E A DISCUSSÃO DE PERSONIFICAÇÃO ANIMAL NO BRASIL

Na medida em que se fala de proteção aos animais no ordenamento jurídico brasileiro, evidencia-se que longa foi a trajetória de discussões para criminalizar determinadas condutas em face dos maus-tratos sofridos pelos animais domésticos no país. Ao analisar a trajetória histórica, é possível verificar que os animais sempre foram tratados como seres submissos ao interesse humano, alguns destes sofrendo explorações e crueldades do homem.

Assim como estabelece Alexandre (2018), é cediço que, se comparado a nível global, o reconhecimento dos animais como seres sujeitos de direitos foi tardio no Brasil. No Código Civil de 1916 os animais passaram a ser tratados como bens móveis (art. 47, CC/1916), isto é, como seres passíveis de propriedade do ser humano. Além disso, tratados como coisas sem dono e sujeitas à apropriação, vide inteligência do art. 593. Ademais, tratados como coisas sem dono e sujeitas à apropriação, vide inteligência do art. 593.

Através dos movimentos de defesa dos direitos dos animais, que ganharam força no Brasil, diversos ativistas e juristas passaram a argumentar acerca do fato que animais, assim como os seres humanos, caracterizam-se como seres dignos e que merecem proteção do direito.

Em vista de tais movimentos, diversos decretos foram sendo promulgados ao longo dos anos para proibir condutas que causassem sofrimento e maus-tratos aos animais. Nesse diapasão, destaca-se o Decreto Nº 24.645 de 10 de julho de 1934, imprescindível para estabelecer o que se considera, até hoje, como maus-tratos, bem como passar a punir os indivíduos que realizassem tais condutas, com pena a ser determinada de acordo com a gravidade do delito (art. 2º, § 2º), podendo ser de multa, prisão, prisão celular, entre diversas outras formas estabelecidas no dispositivo de lei mencionado.

Em análise ao decreto supracitado, dentre os diversos dispositivos que fazem menção as condutas que configuram-se como maus-tratos, cabe destacar algumas, sendo estas: a prática de abusos ou crueldades aos animais (Art. 3º, I); submetê-los a trabalhos excessivos ou atividades superiores ao que suas forças permitem (Art. 3º, III); desferir golpes, causar ferimentos ou mutilações (Art. 3º, IV); utilizar para serviços animais em condições graves, como cegueira, fraquezas ou enfermos (Art. 3º, X).

Nessa perspectiva, verifica-se que o dispositivo analisado objetivava fornecer uma proteção jurídica aos animais, ao tipificar as condutas elencadas como maus-tratos, proibindo a realização de tais atos e, consequentemente, punindo os indivíduos ao nível de culpabilidade dos atos.

Nos anos seguintes, mais um avanço surgiu com a promulgação do Decreto-Lei nº 3.688, Lei das Contravenções Penais, vigente até os dias atuais, que em seu art. 64 discute acerca do tratamento para com os animais, disposto da seguinte forma:

Art. 64. Tratar animal com crueldade ou submetê-lo a trabalho excessivo:

Pena – prisão simples, de dez dias a um mês, ou multa, de cem a quinhentos mil réis.

§ 1º Na mesma pena incorre aquele que, embora para fins didáticos ou científicos, realiza em lugar público ou exposto ao público, experiência dolorosa ou cruel em animal vivo.

§ 2º Aplica-se a pena com aumento de metade, se o animal é submetido a trabalho excessivo ou tratado com crueldade, em exibição ou espetáculo público. (grifos acrescidos).(grifos acrescidos).

Através desta lei, torna-se possível verificar uma nova maneira de proteção aos animais, posto que passaram a incluir como contravenção penal o tratamento abusivo e cruel para com os animais utilizados em espetáculos públicos, ato este que acontecia com bastante frequência no país, em que animais de circo, por exemplo, eram expostos a maus-tratos e jornadas de trabalho excessivas, inclusive, com diversos casos midiáticos de que vários animais submetidos a condições semelhantes acabaram falecendo, mas o ordenamento não estabelecia nenhuma punição nesse tipo de situação.

Posteriormente, diversos outros dispositivos foram surgindo e tratando, mesmo que minimamente, sobre a temática. Entretanto, somente após a promulgação da Constituição Federal de 1988 é que passaram a ter um tratamento de destaque, já que anteriormente sequer estavam presentes na Lei Maior (ALEXANDRA, 2015 apud SOUZA, 2018).

A Carta Suprema do país dispõe acerca destes em seu art. 225, que estabelece o seguinte:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º. Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: (...) VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade (BRASIL, 1988). (grifos acrescidos).

Diante da análise do artigo citado, percebe-se que, embora seja um tratamento mais genérico acerca dos animais, trazendo-os no rol de questões ambientais, houve um avanço gradativo, marcando uma luta maior pelas questões animais, evidenciando a culpabilidade e, consequentemente, dispondo de sanções que punam os indivíduos que praticam condutas cruéis ou abusivas que ameaçam a integridade e existência dos animais (MEDEIROS, 2013).

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Posteriormente, mais precisamente em 1998, criaram a Lei dos Crimes Ambientais (Lei Federal nº 9.605), que passou a prever punições penais em face de condutas que violem o meio ambiente, sendo os animais domésticos, silvestres ou domesticados, inclusos no art. 32 desta lei e, caso os indivíduos pratiquem abuso, maus-tratos ou outras condutas que venham a ferir tais animais, estarão sujeitos a pena de detenção de três meses a um ano, bem como multa.

Para além disso, passou a tratar de forma mais assertiva acerca da realização de experiências nesses animais, mesmo que para fins didáticos. Diante disso, estabeleceram que se houverem meios alternativos, que não sejam dolorosos ou cruéis aos animais, deverão estes ser aplicados, se não incorrerão na mesma pena acima mencionada (art. 32, §1º). E, se leve o animal a morte, a pena aumentará de 1/3 (um terço) a 1/6 (um sexto) (art. 32, §2º).

Recentemente, em 2020, foi promulgada uma nova Lei (Nº 14.064 de Setembro de 2020), que estabeleceu alterações à Lei nº 9.605 e apresenta tratamento ainda mais rígido no que diz respeito aos crimes de maus-tratos para com os animais. Sucintamente, estabeleceu um aumento das penas supracitadas quando se tratar de cães e gatos, deixando de ser somente 03 (três) meses a 01 (ano), passando a ser pena de reclusão, de 02 (dois) a 05 (cinco) anos, multa e proibição de guarda (BRASIL, 2020).

Tal alteração legislativa foi alicerçada nos movimentos intensos de ativistas e juristas adeptos às teorias que defendem a causa animal, sendo passível de exemplificação a Teoria dos Direitos Animais de Tom Regan (2004), que defende que os animais são sujeitos de direitos, os quais se assemelha aos homens no sentido de que ambos possuem uma vida. A partir disso, então, possuem valores e direitos de forma semelhante, devendo, assim, receberem proteção jurídica e tratamentos igualitários.

Ante o exposto, evidencia-se cada vez mais a aplicação prática da lição de Levai (1998), em que há uma proteção penal maior aos animais, que cada vez mais estão sendo considerados como seres vivos em sentido estrito, deixando a visão do Código Civil de 1916 e do Código atual (2002), em que eram/são tratados como bens materiais, cada vez mais distante, já que passam a receber um tratamento condigno.

3 O INSTITUTO DA CULPABILIDADE NOS CRIMES DE MAUS-TRATOS NO BRASIL

Em termos gerais, a culpabilidade está relacionada ao juízo de censura, o que significa que é o momento em que será realizada uma análise no tocante a reprovabilidade sobre a conduta típica e ilícita praticada pelo agente (GRECO, 2022). De acordo com Miguel Reale Júnior (2002), será reprovado o agente por ter optado por agir em desconformidade com a lei, isto é, contra esta. Dessa maneira, a culpabilidade será o objeto de análise do juízo a partir da formação da vontade do agente.

Nesse diapasão, é importante ressaltar que a culpabilidade não possui previsão expressa no texto constitucional pátrio assim como grande parte dos princípios que regem o Direito Penal brasileiro. Em contrapartida, é possível identificar que o princípio da culpabilidade foi extraído do chamado princípio da dignidade da pessoa humana. Dessa forma, o princípio da culpabilidade passa a incidir na conduta do agente em dois momentos: I) a culpabilidade enquanto elemento de configuração da conduta como infração penal e; II) a culpabilidade observada como critério regulador da pena (GRECO, 2022).

Esse aspecto pode ser verificado de forma objetiva a partir da análise do artigo 59 do Código Penal (1940) que dispõe:

O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime [...] (GRECO, 2022, p. 281).

Dessa maneira, a culpabilidade desempenhará função de grande importância dentro da análise realizada pelo juízo, isso porque esta se porta como princípio impedidor da responsabilidade objetiva, logo, a responsabilidade penal exige a presença da culpa, ou seja, a responsabilidade é subjetiva. Sendo assim, o resultado obtido pelo agente deve ser classificado obrigatoriamente como conduta dolosa ou culposa para que, assim, a responsabilidade tenha o poder de incidência sobre o caso concreto (GRECO, 2022).

Entretanto, Greco (2022) pontua que a culpabilidade deve ser entendida como somente um princípio, posto que ao ser adotada, no ordenamento brasileiro, a teoria finalista da ação,

[...] dolo e culpa foram deslocados para o tipo penal, não pertencendo mais ao âmbito da culpabilidade, que é composta, segundo a maioria da doutrina nacional, pela imputabilidade, pelo potencial conhecimento da ilicitude do fato e pela exigibilidade de conduta diversa (GRECO, 2022, p. 282).

Diante desse contexto, entende-se que o conceito de culpabilidade pode ser relacionada à fundamentação da pena, o que limita a aplicação de penas ao autor somente quando o fato é típico, antijurídico e culpável. Ressalta-se, ainda, que a culpabilidade não possui, por si só, força para fundamenta a pena em si, entretanto, possuirá grande relevância para determinar a graduação: gravidade, tipo e intensidade (GRECO, 2022).  Isso pois, a culpabilidade é analisada individualmente, em vista de ser levado em consideração cada situação específica, ou seja, é analisada no caso concreto.

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Quando aplicada essa análise de culpabilidade aos dispositivos normativos que versam sobre os maus-tratos aos animais, percebe-se, claramente, que embora não prevista expressamente na Lei Maior, está presente nos demais dispositivos infraconstitucionais. Na própria Lei nº 9.605/1998, verifica-se discussão sobre esse instituto, com destaque para o seu art. 2º, que estabelece que os indivíduos que concorrem para a prática dos crimes lá listados, inclusive o de maus-tratos, incidirão nas penas estabelecidas, no entanto, será analisada a medida de culpabilidade destes. Dessa forma, vê-se concordância com a responsabilidade subjetiva que norteia o direito penal.

Superados os aspectos doutrinários acerca do instituto da culpabilidade, faz-se pertinente analisar os impactos deste princípio sobre o crime de maus-tratos, fruto de análise da presente pesquisa. Na análise feita no tópico de condução histórica e evolução do crime de maus-tratos no país, verificou-se que houve uma majoração da pena, com o advento da Lei nº 14.064/2020, quando o crime é praticado contra os animais domésticos, mais especificamente gatos e cachorros.

A partir dessa modificação, evidencia-se que a motivação para as mudanças que já vem ocorrendo no ordenamento pátrio está relacionada diretamente ao instituto da culpabilidade. Como já supracitado, o grau de reprovabilidade da conduta de maus-tratos aos animais foi uma corrente instituída gradativamente no país, até a chegada ao nível de reprovabilidade existente nos tempos atuais, onde a família moderna apresenta, em sua maioria, um animal de estimação que passa a ser integrante da família, fato que contribui evidentemente para o processo de personificação dos animais.

Nesse sentido, ao passo em que a própria sociedade passa a atuar de forma intensiva nesse processo que objetiva um melhor tratamento e proteção normativa para com os animais, contribuindo para a ideia de personificação destes, evidencia-se como consequência destes atos, uma elevação no grau de reprovabilidade de quaisquer condutas que possam feri-los ou causar qualquer forma de abuso.

Nessa perspectiva, um ponto de grande relevância a ser analisado é justamente essa personificação dos animais a partir do grau de reprovabilidade. Como já discutido anteriormente, Greco (2022) esclareceu que a culpabilidade não está prevista expressamente na Constituição Federal de 1988, porém, deriva do princípio da dignidade da pessoa humana.

Dessa maneira, por condução lógica dos anseios doutrinários, da própria sociedade e das alterações normativas, como por exemplo, a própria majoração da pena trazida pela Lei nº 14.064/2020, se vislumbra um ordenamento jurídico que passa a ser incidente como protetor dos animais a partir da aplicação comparativa de direitos humanos a estes.

4 DOS ÍNDICES DE DENÚNCIAS AOS CRIMES DE MAUS-TRATOS NOS ÚLTIMOS ANOS NO BRASIL

Diante do processo constitutivo social acerca da personificação dos animais, a consciência acerca das denúncias contra casos de maus-tratos também passou a ser objeto com mais incidência dentro do sistema de denúncias virtuais e presenciais, já que com os avanços evidenciados, estes passaram a possuir uma proteção maior dentro do ordenamento jurídico brasileiro.

De acordo com a Assembleia Legislativa do Estado do Paraná, desde o ano de 2019 até abril de 2022 a “Aba Virtual” registrou mais de 20.000 (vinte mil) denúncias, onde ficava em terceiro lugar dos crimes denunciados, perdendo apenas para os crimes de tráfico de drogas e ambientais. Dessa forma, é necessária a análise do número de denúncias nos últimos anos.

GRÁFICO 01: Número de denúncias – crime de maus-tratos aos animais

[CHART]

FONTE: Fernanda Góss (2022).

Nesse sentido, temos os seguintes resultados: I) no ano de 2020 o montante foi de 7.754 (sete mil setecentos e cinquenta e quatro) denúncias, que resulta na média de 590 (quinhentos e noventa) por mês; II) no ano de 2021, o montante foi de 10.919 (dez mil novecentos e dezenove), com uma média mensal de 910 (novecentos e dez) denúncias; III) para o ano de 2022, até o mês de abril, resultou em 2.189 (dois mil cento e oitenta e nove), logo, com a média mensal de denúncias em 548 (quinhentos e quarenta e oito).

Evidencia-se a partir desse aumento nos últimos a importância que as denúncias representam tanto no viés repressivo, já que são estabelecidas punições quando comprovados os maus-tratos, como também no viés preventivo, pelo fato de que, se punidos da maneira adequada, servirá como exemplo para que outros indivíduos não pratiquem essas condutas. Logo, o ato de denunciar as crueldades e demais abusos sofridos pelos animais, além de responsabilizar os responsáveis pelas condutas criminosas, também servirão para que haja uma diminuição desses abusos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mediante as considerações realizadas, verifica-se que foi ocorrendo gradativamente o desenvolvimento legislativo no ordenamento pátrio no que diz respeito a criminalização da conduta de maus-tratos, isso porque quando foram surgindo dispositivos normativas para regulamentar a matéria, não eram abrangentes o suficiente para abordar as formas de maus-tratos animais em sua completude.

Entretanto, graças aos movimentos de defesa aos animais instaurados pela sociedade em apoio de diversos juristas, os animais passaram a receber um tratamento diferenciado ao longo do tempo, com destaque para o Decreto 24.645/1934, já discutido, que foi o responsável por trazer o conceito detalhado de maus-tratos, bem como trazer sanções penais em face dos indivíduos que realizassem condutas abusivas ou que ferissem os animais.

Para além deste, a Constituição Federal de 1988, as Leis nº 9.605 e nº 14.064, também se destacam como fundamentais para esse avanço no tratamento dos animais, bem como as teorias dos direitos dos animais, que, embora existam debates e controvérsias acerca destas, reconhecem os animais como sujeitos de direitos, já que possuem a capacidade de sentir dor, prazer, além de possuírem interesses, logo, assim como os seres humanos defendem merecem proteção jurídica.

No tocante ao instituto da culpabilidade no caso dos crimes de maus-tratos, observou-se que, pelo fato de no direito penal brasileiro não existir uma responsabilidade objetiva, o grau de culpabilidade é apurado caso a caso, a depender do nível de gravidade da conduta do indivíduo. Assim, constata-se a contribuição da culpabilidade enquanto elemento de análise de grau de reprovabilidade da conduta presente no crime de maus-tratos aos animais, tendo em vista a construção de uma ótica social que passou a observar os animais como sujeitos de direito.

Por último, verifica-se ainda elevados números de denúncias que têm como objeto o crime de maus-tratos aos animais, fato este que pode estar diretamente relacionado ao aspecto de personificação dos animais, bem como conscientização por parte da sociedade que, sabendo dos avanços concernentes a proteção destes, se sente mais confiante em denunciar os casos de maus-tratos, em vista da existência de punições na atualidade para tais condutas criminosas.

REFERÊNCIAS

ALEXANDRE, Suzana Martins. A tutela penal e o crime de maus-tratos aos animais. 2018. 69 f. Monografia (Especialização em Direito Penal e Processo Penal) - Centro de Ciências Jurídicas e Sociais (CCJS/UFCG), Sousa - Paraíba, 2018. Disponível em: http://dspace.sti.ufcg.edu.br:8080/jspui/bitstream/riufcg/13528/1/SUZANA%20MARTINS%20ALEXANDRE%20-%20TCC%20Especializa%c3%a7%c3%a3o%20em%20Direito%20Penal%20e%20Processo%20Penal%202018.pdf. Acesso em: 27 maio 2023.

BRASIL. ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO PARANÁ. . Mais de 20 mil denúncias de maus-tratos contra animais foram realizadas pela internet, diz deputado Guerra. Curitiba/PR, abr. 2022. Disponível em: https://www.assembleia.pr.leg.br/comunicacao/noticias/mais-de-20-mil-denuncias-de-maus-tratos-contra-animais-foram-realizadas-pela-internet-diz#:~:text=Em%202020%20foram%207.0754%20den%C3%BAncias,ao%20m%C3%AAs%20em%20m%C3%A9dia%2C%20destacou.. Acesso em: 27 maio 2023.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, Acesso em: 25 maio 2023.

BRASIL. Decreto nº 24.465 de 10 de julho de 1934. Estabelece medidas de proteção aos animais. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-24645-10-julho-1934-516837-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 25 maio 2023.

BRASIL. Decreto-Lei nº 3.688 de 3 de outubro de 1941. Lei das Contravenções Penais. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3688.htm. Acesso em: 25 maio 2023.

BRASIL. Lei nº 9.605 de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9605.htm. Acesso em: 27 maio 2023.

BRASIL. Lei nº 14.064 de 29 de setembro de 2020. Altera a Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, para aumentar as penas cominadas ao crime de maus-tratos aos animais quando se tratar de cão ou gato. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14064.htm. Acesso em: 27 maio 2023.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal 1. São Paulo: Atlas, 2022. ed. 24.

LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos animais: O direito deles e o nosso Direito sobre eles. Campos do Jordão: Mantiqueira, 1998.

MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Direito dos animais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. E-book.

SOUZA, Ana Paula Toneli de. Crime de abandono e maus tratos de animais. Orientador: Ms. Carlos Ricardo Fracasso. 2018. 55 f. Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) (Graduação em Direito) - Fundação Educacional do Município de Assis, São Paulo, 2018. Disponível em: https://cepein.femanet.com.br/BDigital/arqTccs/1421400033.pdf. Acesso em: 27 maio 2023.

REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal – Parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2002. v. I.

REGAN, Tom. Animal Rights, Human Wrongs. Rowman & Littlefield Publishers. 144 páginas (2004). E-book.


  1. Graduando em Direito pela Faculdade Católica Santa Teresinha (FCST) – Caicó/RN. E-mail: [email protected]

Sobre os autores
Rilawilson José de Azevedo

Dr. Honoris Causa em Ciências Jurídicas pela Federação Brasileira de Ciências e Artes. Mestrando em Direito Público pela UNEATLANTICO. Licenciado e Bacharel em História pela UFRN e Bacharel em Direito pela UFRN. Pós graduando em Direito Administrativo. Policial Militar do Rio Grande do Norte e detentor de 19 curso de aperfeiçoamento em Segurança Pública oferecido pela Secretaria Nacional de Segurança Pública.

Jario de Oliveira Vieira

Bacharelando em direito pela Faculdade Santa Teresinha.︎

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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