Sociedade de Vigilância na Economia da Desatenção

14/06/2023 às 19:49
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Um recente pedido de desclassificação de documentação do Escritório de Inteligência Nacional dos Estados Unidos, que foi feito pelo senador democrata Ron Wyden, acabou por ser a ponta de um iceberg, de proporções catastróficas quanto ao tamanho do escândalo que surgiu.

O que o senador concluiu é que os EUA adquirem quantidades significativas de informações privadas brutas sobre seus cidadãos de provedores dos mais diversos, incluindo os dados de geolocalização.

Essas valiosas informações, foram adquiridas e utilizadas para investigações em casos de lavagem de dinheiro, tráfico de drogas entre outros crimes investigados, o que está em jogo não é o propósito apenas do seu uso, mas a forma de aquisição, ou seja, o governo adquirindo dados sensíveis sem autorização desses milhões de pessoas.

É interessante que isso ocorre nos EUA, um país onde a privacidade dos seus cidadãos não possui nenhuma legislação federal de proteção a privacidade. O que só acentua a necessidade da regulamentação do comércio de dados sem consentimento como a geolocalização.

É obvio que em muitos casos o propósito é justificável, mas isso não pode servir de desculpa para a forma escandalosa com que esses dados são coletados e negociados. Dados como a geolocalização permitem saber não só onde você está, mas como ter a frequência e a rotina dos seus movimentos, seja mudando de rua ou se movendo dentro de casa. E quando esses dados são utilizados por redes de supermercados ou por planos de saúde para lhe proporem uma proposta “sensivelmente customizada?”

Quais dessas plataformas colocam em seus termos de serviço que coletarão e comercializarão os seus dados? O que com a ausência torna esses dados ilegais, e logo estamos diante de um governo que compra dados ilegais. A segurança de uma sociedade não pode ser obtida por meio da vigilância sistemática de todos os seus membros.

É essencial estabelecer um quadro em que as informações que as aplicações extraem dos seus utilizadores sejam tratadas pelo que são, dados pessoais, e que a sua comercialização seja drasticamente limitada. O único acesso às informações pessoais dos cidadãos deve ocorrer quando um juiz, com base em indícios de comportamento criminoso, assim o solicitar. O ambiente atual em que qualquer aplicativo, desde uma simples lanterna até uma projetada para registrar dados menstruais, é dedicado por sistema a monetizar esses dados vendendo-os ao maior lance é simplesmente insano e disfuncional, e deve nos levar a pensar que todo o sistema precisa de uma reforma muito profunda que corrija os excessos e barbaridades que foram gerados com a chegada dos smartphones. A economia que toma o seu tempo é a mesma que toma e vende seus dados pra terceiros, logo esses negócios sempre se movem na busca da sua atenção, mais atenção mais dados, mais dados mais monetização, seja ela ilegal ou não. E quando todos disputam ao mesmo tempo a sua atenção, o resultado é desatenção, de tantas informações, quando não desinformação, que são diariamente, a cada segundo surgindo em nossos celulares e tablets, na disputa frenética de mais dados.

Desde o início da disseminação dos smartphones, e com base na ausência de legislação a esse respeito nos Estados Unidos, proliferaram todos os tipos de aplicativos que obtinham dados sobre seus usuários usando os sensores do smartphone, que incluíam cláusulas em seus termos de contratos de serviço que deveriam ter sido denunciadas como ilegais.

Temos que inverter a legislação de privacidade para que ela diga exatamente o contrário do que diz atualmente: que quaisquer dados pessoais que o usuário tenha gerado nunca poderão ser comercializados ou utilizados para qualquer finalidade que não seja a especificada no próprio aplicativo, com a única exceção do pedido judicial. Toda nova tecnologia, precisa ter sua razão de ser, sua utilidade para sociedade. Afinal, é da utilidade que nascem hábitos, necessidades e a possibilidade de valorar o novo produto ou serviço. Esse é o caso da computação quântica e as suas diversas utilidades, de que maneira ela atinge o Direito? De que maneira ela pode afetar a sua privacidade?

A incorporação ingênua de novas tecnologias, não encontra mais espaço, diante de uma sociedade que precisa estar cética e cautelosa. É certo, que novas tecnologias nascem em um ambiente de estímulos sim, mas também de uma boa dose de ceticismo.

A recente história, vem demonstrando que as Big Techs assumem o risco das demandas judiciais ao violar os Direitos dos usuários, e isso é uma péssima notícia pra quem pretende ter sua privacidade protegida..

Em 2022 a Meta (controladora do Facebook), concordou em resolver o gigantesco processo de quebra de privacidade ligado ao escândalo da Cambridge Analytica.

Só para lembrar, o escândalo da Cambridge Analytica eclodiu após a notícia de que a extinta consultoria usou indevidamente os dados de quase 90 milhões de usuários do Facebook para anúncios políticos direcionados durante a campanha do referendo do Brexit no Reino Unido e as eleições presidenciais dos EUA em 2016. A consultoria trabalhou na campanha presidencial de Donald Trump.

O escândalo levou Zuckerberg a testemunhar perante o Congresso sobre as políticas de privacidade do Facebook. Também levou a uma multa de US$ 5 bilhões da Comissão Federal de Comércio dos EUA, parte de um acordo entre o Facebook e a agência sobre uma investigação da FTC sobre o assunto. Sob o acordo com a FTC, o Facebook concordou em criar um comitê de privacidade independente, Zuckerberg foi obrigado a certificar o comportamento da empresa, e a rede social foi ordenada a construir mais proteções de privacidade em suas plataformas.

Tanto o Facebook quanto a Cambridge Analytica, que fechou em 2018, negaram qualquer irregularidade no transcorrer do processo.

O acordo celebrado, com o propósito de encerrar a ação coletiva movida por milhões usuários da plataforma devido às práticas da empresa no caso de compartilhamento de dados com a Cambridge Analytica, leva muitos a simples pergunta: O processo acabou em pizza? Os usuários com seus dados comercializados tem alguma chance nas demandas judiciais contra as big techs?

Os números na ação impressionam, nesse processo que teve início em 2018, onde os usuários do Facebook entraram com processo contra a empresa após vir à tona a revelação de que uma empresa britânica ligada à campanha presidencial de Donald Trump de 2016, a Cambridge Analytica, teve acesso a dados de 87 milhões de pessoas que utilizam a rede social. A acusação era de que os dados foram usados para influenciar os eleitores americanos a votar em Trump.

Os permanentes casos de enfrentamento dos usuários dos serviços das Big Techs são cada dia mais comuns, afinal elas se utilizam das lacunas regulatórias para exercer o seu poder.

Logo o papel do legislador sempre será de regrar sem desestimular a livre iniciativa, porém é preciso estabelecer parâmetros, não como propósito de criar custos e burocracias invariavelmente desnecessárias, mas regrar o avançar de forma isonômica, privilegiando a livre iniciativa mas protegendo a concorrência.

As Big Techs por escalarem em uma velocidade maior do que o regramento, e por encontrarem oportunidades justamente nos vácuos regulatórios, acabam se beneficiando disso, ao tal ponto que seus serviços geram novos conceitos e faz com que os modelos legais fiquem obsoletos, vejamos por exemplo o tratamento tributário das ligações por telefone via WhatsApp e outros mais e o mesmo tratamento por minuto das ligações telefônicas. Só isso já dá a dimensão da dificuldade do legislador em estabelecer novos parâmetros.

Logo as referências legais que protegem a livre concorrência ganham vital importância, pois sem a proteção dela o que vamos ver é um mundo dominado exclusivamente por poucas plataformas com todo o ônus que essa dependência traz.

Lembro também, que durante décadas, as agências antitruste na Europa e nos EUA têm sido ineficazes e lentas demais para reagir. Embora a Comissão Europeia tenha intensificado suas medidas antitruste nos últimos anos, as multas que impôs são simplesmente consideradas o custo de fazer negócios.

Vejamos o caso das multas impostas por Margrethe Vestager, comissária de concorrência da UE, no valor de cerca de 10 bilhões de euros ao Google ao longo de uma década, mas os rivais dizem que isso pouco fez para abrir mercados. O Google continua a contestar todas as multas, mesmo depois que o Tribunal da UE em Luxemburgo decidiu que favoreceu seus próprios serviços em relação às ofertas concorrentes. A empresa recorreu do veredicto.

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O Google tem sido o que mais se esforçou para tentar fazer com que a regulamentação se encaixasse em seus propósitos. De acordo com o Corporate Europe Observatory, foi a empresa que mais se reuniu com altos funcionários da Comissão Europeia e com os deputados.

As autoridades já têm uma lista de possíveis casos contra grandes empresas de tecnologia antes mesmo das regras entrarem em vigor em 2023. Facebook e Google provavelmente serão os primeiros a serem examinados, de acordo com pessoas com grande conhecimento do assunto. Bruxelas está se preparando para processar o Google por supostas práticas anticoncorrenciais e o acusa de abusar de sua poderosa posição para direcionar os usuários para seus próprios serviços, à frente dos de seus rivais, uma prática que o DMA deverá proibir.

O caso é semelhante a uma ação antitruste já apresentada pela Comissão Europeia sob a legislação existente da UE, argumentando que a gigante da tecnologia favorece seus próprios serviços de comparação de compras em relação aos dos rivais, em vez de oferecer os melhores resultados de pesquisa aos consumidores. O Google diz que já fez as mudanças necessárias em 2017 e recorreu de uma decisão judicial a favor das exigências da Comissão.

Na Europa, já se percebe que a atitude em relação à grande tecnologia mudou. Os organismos antitruste de cada Estado-Membro foram autorizados a agir contra eles antes mesmo que as leis entrem em vigor. Por exemplo, a autoridade de concorrência holandesa impôs uma série de multas à Apple em janeiro e fevereiro por não permitir que os criadores de aplicativos usassem um sistema de pagamento diferente do seu, que cobra 30% de comissões.

Na Alemanha, o cão de guarda da concorrência recebeu recentemente mais poderes para combater práticas abusivas e tomar medidas contra empresas que dominam um mercado específico. A entidade alemã já pode proibir empresas como Google e Facebook de dar tratamento preferencial a seus próprios serviços e produtos, mesmo antes da aprovação do DMA.

Os Países Baixos multaram a Apple por não permitir que os criadores usem um sistema de pagamento diferente do seu em sua loja de aplicativos Apple Store.

Além das fronteiras da União Europeia, a Grã-Bretanha também está criando um órgão para monitorar o domínio do mercado por parte das empresas de tecnologia, embora não seja provável que adquira poderes até muito tempo depois que as regras de Bruxelas entrarem em vigor.

Apesar de seus esforços para influenciar o WFD, o governo Biden é muito a favor do que Bruxelas está fazendo. Ele sinalizou que aplicará medidas mais rigorosas nos EUA que refletem as iniciativas de Bruxelas e colocou críticos da grande tecnologia em posições influentes, incluindo Lina Khan, a chefe da Comissão Federal de Comércio que ficou famosa por defender que a Amazônia deveria ser dividida.

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Destaco ainda que o Congresso dos EUA também está debatendo uma nova legislação semelhante ao WFD. A lei de inovação e eleição online, introduzida pelo senador republicano Chuck Grassley e pela democrata Amy Klobuchar, tem o apoio de ambos os partidos, mas apenas começou sua jornada e poucos esperam que sejam feitos progressos antes das eleições legislativas em novembro.

Resta saber até que ponto essa legislação mudará a situação. Um sistema que levou a um grande progresso tecnológico muito rapidamente que às vezes teve consequências negativas e às vezes positivas pode não ser o mesmo novamente. A perversa lógica da economia da desatenção, onde o universo corporativo briga pelo seu tempo e por sua atenção, não tem nobreza e nem ética na busca por seus dados e pela monetização deles.

 

Sobre o autor
Charles M. Machado

Charles M. Machado é advogado formado pela UFSC, Universidade Federal de Santa Catarina, consultor jurídico no Brasil e no Exterior, nas áreas de Direito Tributário e Mercado de Capitais. Foi professor nos Cursos de Pós Graduação e Extensão no IBET, nas disciplinas de Tributação Internacional e Imposto de Renda. Pós Graduado em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Salamanca na Espanha. Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário e Membro da Associação Paulista de Estudos Tributários, onde também é palestrante. Autor de Diversas Obras de Direito.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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