RESUMO: A liberdade conferida aos agentes públicos através da discricionariedade pode ser um limite difícil de ser respeitado quando se fala nas abordagens policias e a arbitrariedade. Os jornais noticiam frequentemente a ocorrência de abordagens policiais que acabaram em tragédia e violação de direitos, motivo pelo qual é necessário e justificável pesquisar acerca da legislação referente aos procedimentos de abordagens policiais. Assim, o objetivo desse estudo de caráter exploratório é discutir acerca do limite entre a discricionariedade e a arbitrariedade da atividade policial. Foi realizado uma pesquisa qualitativa de estudo de caso analisando o RHC 158580 do STJ visando entender o comportamento do poder judiciário diante da problemática. Os resultados encontrados apontam que a atividade policial é condicionada não só pela discricionariedade do poder de polícia e pela lacuna deixada no artigo 44 do CPP quando fala em fundada suspeita, mas também por aspectos subjetivos que fazem com que a abordagem policial se torne ilegal e, portanto, arbitrária.
Palavras-Chave: Discricionariedade. Arbitrariedade. Atividade Policial.
INTRODUÇÃO
A abordagem policial é uma prática essencial para o cumprimento do dever e manutenção da ordem pública. A discricionariedade e a falta de regulamentação de um procedimento legal para atividade policial fazem com que uma abordagem policial seja condicionada por diferentes fatores. Assim, quando não executada de forma adequada e ultrapassando os limites legais pode resultar em casos de arbitrariedade, gerando preocupações sobre violações aos direitos humanos e injustiças. Essa arbitrariedade policial refere-se à tomada de decisões injustificadas por parte dos agentes de segurança, e utilizam seu poder de forma desproporcional.
Constantemente os meios de comunicação noticiam a ocorrência de abordagens policiais em que os limites legais são ultrapassados. Por isso, esse artigo se justifica na necessidade de se debater acerca dos limites que a legislação aplica para os agentes públicos que atuam nas atividades policiais e se a discricionariedade do poder de polícia faz a manutenção das irregularidades presentes na abordagem policial.
A partir desses aspectos, surgiu o problema da presente pesquisa, que consiste em investigar se a discricionariedade da atividade policial pode abrir margem para a arbitrariedade em abordagens policiais.
Para se chegar aos resultados, utilizou-se uma abordagem metodológica de estudo de caso para analisar RHC 158580 do STJ, sendo adequada para resposta do problema, já que possibilita ao pesquisador compreender a problemática a partir de um caso específico. Além disso, com o objetivo de deixar a pesquisa completa foi utilizada abordagem qualitativa-exploratória, através de procedimentos de pesquisa bibliográfico e documental, tendo em vista que foram consultados artigos científicos publicados em periódicos e livros como Souza e Reis, Sagot, Di Pietro, além de documentos oficiais como o Código de Processo Penal, para se chegar aos objetivos esperados.
O objetivo do presente trabalho é discutir acerca do limite entre a discricionariedade e a arbitrariedade da atividade policial. Para isso, o presente artigo é dividido em três seções, de forma que: a primeira busca-se analisar a discricionariedade do poder de polícia; a segunda seção tem o intuito de discutir a arbitrariedade da abordagem policial; e por fim, a terceira, realizar o estudo de caso do RHC 158580 julgado pelo Superior Tribunal de Justiça.
2 A DISCRICIONARIEDADE DO PODER DE POLÍCIA
O bom funcionamento do Estado depende que a Administração Pública alcance o Interesse Público, que é o equilíbrio da vontade da coletividade. Para isso, a Administração lança mão de diversos institutos que auxiliam nesse caminho. Nesse contexto, o Poder de Polícia é uma das prerrogativas da Administração Púbica, dentre tantas outras, que busca o bom funcionamento do Estado e, por conseguinte o Interesse Público. Assim, é de suma importância entender o que é o poder de polícia e do que se trata a discricionariedade desse poder.
Di Pietro (2020, p. 322), aduz que “poder de polícia é a atividade do Estado Consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público”. Além disso, a autora infere que o interesse público está voltado aos mais variados setores sociais como segurança, saúde, defesa do consumidor.
Carvalho Filho (2019, p. 138), leciona que poder de polícia “é a prerrogativa concedida aos agentes administrativos de elegerem, entre as várias condutas possíveis, a que traduz maior conveniência e oportunidade para o interesse público”.
No mesmo sentido, Fabio Prata Sagot diz que
O poder de polícia é uma atividade da administração pública que, objetivando a manutenção do bem-estar coletivo e da harmonia social, impõe e faz cumprir normas e regulamentos que disciplinam a vida em sociedade, restringindo, desta forma, interesses individuais que se mostrem prejudiciais à coletividade, agindo em prol do interesse público (2015, p. 8-9).
Dessa forma, Poder de Polícia é a prerrogativa dada a Administração Pública para administrar a sociedade de forma que o interesse público se coloque em posição de superioridade ao interesse particular, limitando direitos individuais a fim de garantir as necessidades ou interesses da coletividade. Nesse sentido, o Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o privado é o norteador desse poder, no sentido de que o Estado ocupa uma posição hierarquicamente superior aos anseios individuais que possam de alguma forma representar obstáculo ao alcance do interesse público do Estado.
O poder de polícia está presente em diversos setores da sociedade, como o poder de polícia dado ao juiz que preside uma audiência, o poder de polícia dado as corporações policiais, entre outras. Mas, o que nos importa aqui na presente pesquisa é o poder de polícia dado as corporações policiais. Desse modo, é importante de já distinguir a polícia administrativa da polícia judiciária.
A principal diferença e a mais óbvia é o caráter repressivo da polícia judiciária e o preventivo da polícia administrativa. Mas, a distinção mais precisa entre cada uma delas é o fato da polícia judiciária ser representada pelas corporações policiais como Polícia Militar, Polícia civil e Polícia Federal, que são responsáveis por garantir a segurança pública da população. A polícia judiciária que nos importa.
Superado essa de contextualização, vamos ao real objetivo desta seção que é a discricionariedade do poder de polícia.
No exercício da administração da sociedade, o Estado deve agir dentre os limites da lei, não podendo ir além do que a lei permite na prática de atos. Esse é o princípio da legalidade. Nessa perspectiva, considerando que o legislador não é capaz de prever todas os acontecimentos que possam vir a ocorrer na sociedade, ele criou a discricionariedade, que é a possibilidade de o agente público agir com certa margem de liberalidade em determinada situação.
O poder de polícia trouxe, tão logo, a discricionariedade como um dos seus três atributos. Ao lado da discricionariedade tem-se a autoexecutoriedade, que é capacidade da administração pública de agir diretamente para fazer cumprir suas decisões e normas, sem a necessidade de autorização prévia do Poder Judiciário; e a coercibilidade, em que é diretamente relacionada e condicionada pela autoexecutoriedade, haja a vista não existir autoexecutoriedade sem a força coercitiva.
Quanto a discricionariedade, nas palavras de Sagot (2015), trata-se de atos subjetivos, originários do administrador que, em cada caso concreto, analisa a melhor decisão a ser tomada considerando necessariamente os critérios de conveniência e oportunidade.
Costa (2011, p. 06), também disciplina no mesmo sentido, dizendo que “a discricionariedade refere-se à liberdade de escolhas que os profissionais do sistema possuem de facto [...]. Refere-se à liberdade de atuação profissional”.
Nesse sentido, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, explica a existência da discricionariedade, assim vejamos:
Às vezes, a lei deixa certa margem de liberdade de apreciação [...] mesmo porque ao legislador não é dado prever todas as hipóteses possíveis a exigir a atuação de polícia. Assim, em grande parte dos casos concretos, a Administração terá que decidir qual o melhor momento de agir, qual o meio de ação mais adequado, qual a sanção cabível diante das previstas na norma legal. Em tais circunstâncias, o poder de polícia será discricionário (2020, p. 327).
Nesse sentido, a discricionariedade do poder de polícia se refere à margem de liberdade conferida à autoridade responsável pela sua aplicação para escolher a melhor forma de exercê-lo, considerando as circunstâncias específicas do caso em questão. Essa discricionariedade é fundamental para o trânsito do poder de polícia, uma vez que permite que a autoridade avalie as condições concretas em que a atividade é realizada e escolha as medidas mais adequadas para proteger o interesse público.
A produção de atos discricionários, embora aduza uma margem de liberdade, também impõe o respeito aos critérios de conveniência e razoabilidade, que funcionam como limitadores de tal liberdade proporcionada pela discricionariedade.
Em resumo, a discricionariedade do poder de polícia consiste em um atributo dado a esse poder para que seja capaz de praticar os atos a ele atribuídos, tendo em vista a oportunidade e da conveniência. É na polícia judiciária, que também faz parte desse poder, que a discricionariedade se faz mais presente, haja a vista as ações policiais. Desse modo, a discricionariedade é principal fundamento para que um policial ordene que você pare e faz uma busca pessoal.
3 A ARBITRARIEDADE NAS ABORDAGENS POLICIAIS
Inicialmente, cumpre ressaltar que as corporações policiais são órgãos dotados de poder de polícia, logo a discricionariedade é uma característica demasiadamente presente em sua atuação, haja a vista ser um atributo desse poder de polícia. Assim, de já é importante dizer que as abordagens policiais são ações em que os agentes públicos podem – legalmente – agir com liberalidade como, por exemplo, qual a melhor forma de abordar um suspeito.
Embora o policial possua certa liberalidade nos seus atos, ele está vinculado a lei como qualquer outro ato do Estado. Logo, deve agir dentro dos limites da conveniência, razoabilidade e da oportunidade. Por isso, seria absurdo um agente policial abordar uma pessoa que estava correndo em uma rua apenas por que ela está correndo nessa rua.
Nesse sentido, além desses limites a serem seguidos na pratica de atos discricionários, em especial a abordagem policial, o agente deve seguir princípios e orientações disciplinares da corporação a qual o agente policial faz parte, seja Polícia Militar, Polícia Civil ou Polícia Federal. O Código de Processo Penal (1941) disciplina no artigo 244 que, “a busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar”.
Esse é o único momento em que a legislação brasileira disciplina sobre a abordagem policial. “Fundada Suspeita”. Observemos como a expressão deixa margem de liberdade para o policial agir conforme entender conveniente. Assim, os únicos requisitos para a abordagem policial são: a oportunidade e conveniência, trazidos da discricionariedade que está presente no ato do policial; e o procedimento que a legislação adotou, tal qual a fundada suspeita.
Dessa maneira, é inquestionável dizer que as abordagens policias feitas nas ruas são completamente dotadas de liberdade do agente, que age conforme inúmeras condicionantes, como sua experiência profissional, seus princípios morais, sua experiência de vida e por fim forma sua compreensão do que seria a fundada suspeita. Souza e Reis (2015, p. 06) diz que, “como não há legislação, tudo que os policiais contam para nortear seu trabalho são perfis arbitrariamente construídos, resultantes da sua experiência profissional”. No mesmo sentido, esses autores aduzem que “a construção da suspeição constitui um processo gestado fundamentalmente na mente daquele que considera que suspeita e naquilo que considera seu conhecimento, não tendo, portanto, respaldo seguro na realidade” (2015, p. 08).
É nesse ponto em que a discricionariedade ou a falta de um procedimento legal abre margem para a arbitrariedade em abordagens policiais. Esses elementos fazem com que o policial pratique atos com base em seu próprio juízo de valor e dotado de subjetividade, que muitas vezes ultrapassa o limite da legalidade se tornando atos arbitrários e, por conseguinte venha a lesar diretamente direitos básicos, como a dignidade humana.
Além disso, os estereótipos sociais exercem uma grande influência na construção da abordagem do policial. Segundo a avaliação de dados feita por Sousa e Reis (2015), sobre como os policiais avaliam a posição de suspeito de uma pessoa na rua, chegou-se à conclusão de que na maioria das vezes que alguém está nas proximidades de uma balada, especialmente em esquinas de rua, é considerado um suspeito. Um detalhe importante é que, estas pessoas paradas em esquinas combinado com a forma de vestir, como camisas e calça folgada ou até mesmo sem camisa constituem um atributo de características de um evidente suspeito para os policiais. Esse é um resultado de um levantamento feito pelos autores que entrevistaram policiais militares do estado do Pará, buscando saber quais elementos eles utilizavam como norteadores da abordagem policial.
Nesse diapasão, Lanna et. al. (2020, p. 06) aduz que “é possível sintetizar esse pensamento na ação arbitrária da polícia, visto que os mais atingidos por essa prática representam a mesma parcela da sociedade. Verifica-se, portanto, que o pensamento abordado reflete na atuação dos agentes de segurança, modificando sua abordagem com base nos estereótipos”.
Nessa mesma perspectiva, a autora continua aferindo que se observa que há uma parcela da sociedade que estabelece uma associação entre indivíduos negros e pardos de baixa renda e a prática de atividades criminosas. Esse comportamento reflete a existência de estereótipos moldados pela sociedade (LOMBROSO apud. LANNA et. al. 2020). Dessa maneira, fica perfeitamente claro como os estereótipos sociais exercem influência na construção da figura de suspeito criada pelo policial.
Temos então agora que, a atividade do policial, ou melhor, sua abordagem é feita com base nestes critérios: discricionariedade do poder de polícia, como o devido respeito a conveniência, oportunidade e razoabilidade; eventuais orientações das suas respectivas corporações policiais; respeito ao artigo 244 do CPP em que trata da fundada suspeita; e por fim, a grande influência dos estereótipos sociais.
Nesse sentido, todos os elementos mencionados acima contribuem para que muitas ações policiais terminem por se tornar ilegais, haja a vista terem ultrapassado o limite do dever legal e adentrado ao que consideramos de arbitrariedade, opressão, abuso de poder ou autoritarismo. Cabe destacar que a arbitrariedade permeia a história humana se fazendo presente em inúmeros momentos históricos. Exemplos notáveis incluem a Alemanha nazista de Adolf Hitler, a União Soviética de Joseph Stalin, Estado Novo de Getúlio Vargas e posteriormente e Regime Militar. Embora não estejamos falando da mesma opressão aplicada nesses exemplos, uma vez que foi um período marcado por grande lesão aos direitos fundamentais, é importante entender que a arbitrariedade fere diretamente direitos inerentes ao ser humano.
Portanto, abordagens policiais que levam em consideração estereótipos sociais como roupas, tatuagens, cor de pele, classe social tendem, na maioria das vezes, a ferir direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal de 1988, como o direito a intimidade privada, a dignidade humana e a liberdade.
4 ESTUDO DE CASO: O HABEAS CORPUS N° 158580 JULGADO PELO STJ
Com o objetivo de compreender o limite que existe entre a arbitrariedade e a discricionariedade da atividade policial, propõe-se nesta última seção do artigo fazer um estudo de caso do Recurso em Habeas Corpus n° 158580 julgado pelo Superior Tribunal de Justiça. O intuito de envolver esta metodologia de estudo de caso é compreender como o poder judiciário se posicionou acerca da abordagem policial. Superado essa contextualização, partiremos para a decisão.
O Superior Tribunal de Justiça, por meio da sexta turma, julgou no dia 20 de abril de 2022, o recurso de habeas corpus n° 158580, concedendo liberdade e o trancamento da ação penal contra o réu acusado de tráfico de drogas. Trata-se de um caso em que a guarnição policial "deparou com um indivíduo desconhecido em atitude suspeita" e, ao abordá-lo e revistar sua mochila, encontrou porções de maconha e cocaína em seu interior, do que resultou a prisão em flagrante do recorrente. Não foi apresentada nenhuma justificativa concreta para a revista no recorrente além da vaga menção a uma suposta “atitude suspeita”, algo insuficiente para tal medida invasiva.
Nesse contexto, o STJ julgou de forma unanime, pela concessão do habeas corpus e trancamento da ação penal, pois os ministros entendem que para haver a busca pessoal sem mandado de justiça é necessário que a fundada suspeita – disciplinada no artigo 244 do CPP e fundamento dos policiais para a abordagem – seja baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência.
Para fundamentar a decisão, o STJ juntou posicionamentos doutrinários como Alexandre Morais da Rosa e Guilherme de Souza Nucci, com o objetivo de destacar que a fundada suspeita não pode ser uma mera desconfiança com base na intuição do policial ou em suas experiências profissionais, mas que deveria ser fundada em algo concreto e objetivo como uma denúncia de que aquele sujeito estaria postando objeto de crime. Assim, a abordagem com base na fundada suspeita de o policial deduzir que o sujeito é um suspeito não é uma abordagem policial válida. Dessa forma, segundo a fundamentação do STJ, a revista pessoal baseada na fundada suspeita deve ser justificada pelas circunstâncias do caso concreto de que o indivíduo esteja na posso de armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando a necessidade de executar a diligência. Por fim, o Tribunal justificou que a busca pessoal baseada na fundada suspeita que não apresenta aspectos objetivos para tomada de tal ação é inválida porque visa: evitar o uso excessivo dessa garantia e, por consequência, a restrição desnecessária e abusiva dos direitos fundamentais; garantir a sindicabilidade da abordagem e; evitar a repetição de práticas que reproduzem preconceitos.
É essencial destacar também que, conforme a decisão do Tribunal, o fato de haverem sido encontrados objetos ilícitos após a revista não convalida a ilegalidade prévia, pois é necessário que o elemento “fundada suspeita” seja aferido com base no que se tinha antes da diligência. O que se quer dizer com isso é que, a abordagem policial não se torna válida porque foi encontrado objeto ilícito.
Ademais, o STJ usou como argumentos de sua decisão a presença do racismo estrutural nas corporações policiais que influenciava na sua atuação e, por consequência, reflete nas abordagens policiais por causa da discricionariedade conferida aos agentes públicos. No que tange esse argumento utilizado, é importante expor que o STJ defendeu que em um país de grande desigualdade social e racial, é comum que o policiamento ostensivo se concentre em comunidades marginalizadas, muitas vezes rotulados como potenciais criminosos ou suspeitos comuns. Essa seleção é baseada em fatores subjetivos, como idade, cor da pele, gênero, classe social, local de residência e aparência.
Com essa análise do RHC 158580, os pontos que restam evidentes e inquestionáveis são:
A ausência de regulamentação da atividade policial representa um problema para o poder judiciário e também para a população que tem seus direitos fundamentais lesados por meros atos de liberalidade dos agentes públicos fundados na discricionariedade. Colocar citação de falta de regulamentação de procedimento;
Os reflexos dos estereótipos sociais na construção do suspeito, pois conforme a decisão do STJ, o racismo está estruturado na sociedade e nas corporações julgando subjetivamente as pessoas por condições de raça, cor, religião, nível de escolaridade e classe social. De acordo com Batista (2003, p. 103), “o que se vê é que a atitude suspeita não se relaciona a nenhum ato suspeito, [...], mas sim de ser, pertencer a um determinado grupo social”.
Por fim, os aspectos acima relacionados corroboram para um cenário em que a discricionariedade, a lacuna legal, a ausência de regulamentação do procedimento e a estereotipização do suspeito são as causas de ações policiais arbitrárias que fogem do limite permitido pela discricionariedade e pela “fundada suspeita”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os apontamentos mais relevantes da pesquisa é que a discricionariedade conferida ao agente público para praticar os atos visando o interesse público devem ser norteados pela oportunidade e conveniência. Assim, nem mesmo o ato discricionário é totalmente livre de fundamentação. Além disso, foi possível observar também que a atividade policial não possui uma regulamentação objetiva para nortear suas ações. O único dispositivo legal que trata da abordagem policial é o artigo 244 do CPP, mas deixa muitas margens interpretativas, uma vez que não aduz o que deve ser considerado como fundada suspeita.
Segundo a pesquisa realizada, a atividade do policial é condicionada por vários fatores, dentre eles a discricionariedade, a disciplina do artigo 244, as experiências profissionais e os estereótipos sociais.
Com a análise do RHC 158580 do STJ foi possível entender que o poder judiciário caminha no sentido de garantir que as abordagens policias não lesem os direitos fundamentais constantes na Constituição Federal, motivo que levou a decidir pelo trancamento da ação penal em que a abordagem policial foi inadequada e sem fundamento legal.
Por fim, com base em todos os dados levantados nessa pesquisa, foi possível perceber que o limite entre a discricionariedade e a arbitrariedade é constantemente ultrapassado. Os policiais usam da discricionariedade e da falta de respaldo legal para agirem conforme suas experiências profissionais, que são dotadas de subjetividade e de estereótipos sociais, excedendo suas ações de maneira opressiva e arbitraria restringindo direitos fundamentais à intimidade, à privacidade e à liberdade, além de ser uma conduta invasiva e constrangedora.
REFERÊNCIAS
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