Os efeitos do stealthing como ato de violência sexual no tocante a dignidade da mulher no ordenamento jurídico brasileiro.

20/06/2023 às 11:57
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Autora:

Maria Teresa da Costa Rangel

RESUMO

O presente trabalho busca desenvolver a temática dos efeitos do Stealthing como um ato de violência sexual no tocante a dignidade da mulher no ordenamento jurídico brasileiro, com isso pretende desenvolver assuntos como o conceito de violência sexual, fazer uma análise da escala evolutiva desse fenômeno no país, entender as possíveis tipificações do Stealthing, a possibilidade de aborto legal e o posicionamento jurisprudencial sobre o tema. Quanto ao objetivo geral visa observar o Stealthing no que tange ao cotidiano feminino brasileiro, levando em consideração a forma como é praticado e os danos causados à intimidade e a dignidade da mulher vítima desse ato, como forma de correlacionar a prática às suas possíveis tipificações no sistema jurídico penal brasileiro. No tocante aos objetivos específicos busca: evidenciar os efeitos e danos que podem sofrer as mulheres vítimas do stealthing; contextualizar a efetividade das tipificações adequadas na aplicação do stealthing ao caso concreto; reafirmar a necessidade de tornar o conteúdo mais conhecido, para que, desse modo, possa esse trabalho contribuir socialmente nas pautas de violência de gênero. A justificativa para eleição do assunto relaciona-se com a necessidade de se discutir de forma didática um assunto atual, entretanto que ainda é alvo de pouca argumentação acadêmica e jurisprudencial, com isso incentivar sua análise é indispensável para que o conhecimento do assunto se torne arma em favor do combate à prática de Stealthing, tendo em vista os recorrentes casos de violência sexual anualmente. Por fim, A metodologia de pesquisa empregada nesse trabalho é teórica e qualitativa, com uso da pesquisa bibliográfica para levantamento de referências.

Palavras-chave: Aborto legal. Stealthing. Violência sexual.

ABSTRACT

The present work seeks to develop the theme of the effects of Stealthing as an act of sexual violence regarding the dignity of women in the Brazilian legal system, with this it intends to develop subjects such as the concept of sexual violence, to analyze the evolutionary scale of this phenomenon in the country, understand the possible typifications of Stealthing, the possibility of legal abortion and the jurisprudential position on the subject. As for the general objective, it aims to observe Stealthing in relation to the Brazilian female daily life, taking into account the way it is practiced and the damage caused to the intimacy and dignity of the woman victim of this act, as a way of correlating the practice to its possible typifications in the Brazilian criminal legal system. With regard to the specific objectives, it seeks to: highlight the effects and damage that women victims of stealthing may suffer; contextualize the effectiveness of appropriate typifications in the application of stealthing to the concrete case; reaffirm the need to make the content better known, so that, in this way, this work can contribute socially to gender violence guidelines. The justification for choosing the subject is related to the need to discuss a current subject in a didactic way, however that is still the subject of little academic and jurisprudential argumentation, thus encouraging its analysis is indispensable for the knowledge of the subject to become a weapon. in favor of combating the practice of Stealthing, in view of the recurrent cases of sexual violence annually. Finally, the research methodology used in this work is theoretical and qualitative, with the use of bibliographical research to survey references.

Key-words: Legal abortion. Stealthing. Sexual violence.

  1. INTRODUÇÃO

A presente pesquisa ocupa-se em desenvolver a temática dos efeitos do Stealthing como um ato de violência sexual no tocante a dignidade da mulher no ordenamento jurídico brasileiro, portanto tem como área de concentração o Direito Penal.

Importante evidenciar que o termo Stealthing, que em seu significado literal diz respeito a um ato furtivo, sendo uma palavra utilizada para representar o ato da retirada do preservativo ou a manipulação do mesmo, como furá-lo, sem o consentimento do (a) parceiro (a) durante a relação sexual, configurando assim uma violência, afetando a dignidade, autoestima e confiança de quem sofre com essa situação. O autor dessa violação faz com que a vítima acredite estar em uma relação sexual segura, quando na verdade se encontra exposta a diversos riscos, como o de contrair IST 's (infecções sexualmente transmissíveis) ou uma gravidez indesejada. Essa prática, embora pouco falada, já pode ser tipificada, por exemplo, sendo avaliado o caso concreto, no art. 215 do Código Penal, podendo significar um crime de violação mediante fraude.

As mulheres são maioria na incidência da prática de Stealthing, como também representa prevalência nos dados a respeito de outras inúmeras formas de violência de gênero, como aponta pesquisa do Instituto Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), uma em cada quatro mulheres acima de 16 anos afirma ter sofrido algum tipo de violência no último ano no Brasil, durante a pandemia de Covid-19. Sendo assim, é basilar dar ênfase aos efeitos do Stealthing no tocante a dignidade da mulher vítima dessa prática, tendo em vista toda exposição e constrangimento gerados por tal feito. Logo, o presente trabalho visa analisar e entender o Stealthing, os seus efeitos jurídicos e os danos causados ao público feminino, o mais afetado da prática, com o fim de disseminar o assunto e como consequência, informar e alertar acerca do ato.

A priori, a disseminação do termo “Stealthing” é considerada, hodiernamente, um assunto recente no meio social e jurídico, haja vista, apesar de no Código Penal brasileiro, por exemplo, em seu art. 215, prever sanção penal aos atos de conjunção carnal ou ato libidinoso mediante fraude ou qualquer outro meio que impeça/dificulte a plena manifestação de vontade da vítima, sua aplicabilidade ainda é questionável. Assim sendo, torna-se imperioso entender os limites das possíveis tipificações para assimilar aos casos dos crimes de Stealthing, além de analisar até que ponto pode o artigo supra e outros do mesmo código trazer segurança jurídica às mulheres vítimas dessa prática. Com isso, questiona-se: Quais os efeitos causados pelo Stealthing a vítima, tendo em vista que tal ato pode ser enquadrado como violência sexual no ordenamento jurídico pátrio?

Destaca-se que o objetivo geral do estudo é observar o Stealthing no que tange ao cotidiano feminino brasileiro, levando em consideração a forma como é praticado e os danos causados à intimidade e a dignidade da mulher vítima desse ato, como forma de correlacionar a prática às suas possíveis tipificações no sistema jurídico penal brasileiro. Já em relação aos objetivos específicos busca: evidenciar os efeitos e danos que podem sofrer as mulheres vítimas do stealthing; contextualizar a efetividade das tipificações adequadas na aplicação do stealthing ao caso concreto; reafirmar a necessidade de tornar o conteúdo mais conhecido, para que, desse modo, possa esse trabalho contribuir socialmente nas pautas de violência de gênero.

No tocante a justificativa para escolha do tema relaciona-se com a necessidade de se discutir de forma didática um assunto atual, entretanto que ainda é alvo de pouca argumentação acadêmica e jurisprudencial, com isso incentivar sua análise é indispensável para que o conhecimento do assunto se torne arma em favor do combate à prática de Stealthing, tendo em vista os recorrentes casos de violência sexual anualmente. A busca pela propagação do assunto é capaz de combater possíveis futuros crimes do mesmo gênero, além de trazer a problemática à tona para que os meios punitivos àqueles que o praticam sejam mais efetivos.

A metodologia de pesquisa empregada nesse trabalho é teórica e qualitativa, tendo em vista o baixo número de casos reais do Stealthing que se tem conhecimento, muito pelo fato da prática ser tão fraudulenta, a ponto de as vítimas não terem noção de que passaram a incidir no número de mulheres mártires desse ato. A opção pela metodologia teórica/qualitativa também tem fundamento no grande leque de materiais, seja artigos científicos ou matérias jornalísticas tratando sobre o assunto que visam embasar o trabalho, com uso da pesquisa bibliográfica.

Enfim, o presente trabalho, além da presente introdução apresenta 4 (quatro) capítulos, sendo eles: (1) O stealthing no Brasil, tendo como tópicos o conceito de violência sexual e a escala evolutiva da violência sexual no Brasil; (2) Possíveis tipificações penais; (3) Possibilidade de aborto em casos de stealthing; (4) Da análise jurisprudencial sobre o stealthing, além das considerações finais e as referências.

2. O STEALTHING NO BRASIL

Primeiramente, cumpre ressaltar que o termo Stealthing tem seu significado literal “furtivo”, sendo uma atitude tomada de forma dissimulada, na qual o parceiro simula uma relação sexual segura, quando na verdade, por seu prazer ou desejo de demonstrar-se a figura dominante daquela relação, expõe a vítima à possíveis doenças ou uma gravidez indesejada, ensejando uma violência sexual, de forma que a mulher possa não descobrir ou apenas tomar ciência após a ocorrência do ato.

Apesar de a prática provavelmente ocorrer nas relações sexuais consensuais há muitos anos, foi em 2017, no artigo publicado pela americana Alexandra Brodsky que o termo se disseminou dentre as diversas formas de violência de gênero, sendo que ele deu origem a diversos outros trabalhos que buscavam explicar esse ato e encontrar meios de preveni-lo, sendo um importante objeto de pesquisa a ser analisado na esfera penal, mais especificamente em relação aos crimes de violência de gênero, tendo em vista a importância de se propagar informações, depoimentos e meios de coibir essa e outras práticas criminosas que afetam a dignidade das mulheres.

A advogada, em seu artigo, buscou trazer à tona depoimentos de diversas vítimas que, inclusive, sofrendo dessa violência, não sabiam nomear aquilo que haviam acabado de vivenciar. A contribuição de Alexandra foi de grande valia, pois além de ajudar as vítimas entrevistadas a entender por qual violação elas passaram, também trouxe diversos depoimentos retirados de fóruns online, deixando claro que o ato já havia sido perpetrado em vários outros momentos.

Ao decorrer do artigo, a advogada traz um pouco do sentimento das vítimas do stealthing, que por vezes só descobrem a violação no dia seguinte, por meio de mensagem de texto enviada pelo parceiro sexual (2017 p.186):

A primeira é que, sem surpresa, as sobreviventes temem gravidezes indesejadas e infecções sexualmente transmissíveis. A segunda é que, além desses resultados específicos, as sobreviventes vivenciaram a remoção não consensual do preservativo como uma clara violação de sua autonomia corporal e da confiança que erroneamente depositaram em seu parceiro sexual.

Mais adiante, é possível encontrar uma discussão pertinente em relação a equiparação do stealthing com um possível estupro, na qual muitas das vítimas divergem em suas opiniões, pois algumas das que foram entrevistadas, mesmo já passando pela violência do estupro, ainda assim não consideram que o ato de retirada do preservativo possa se equiparar, tendo em vista o consentimento inicial da relação sexual.

Já outras vítimas expressaram opinião contrária, alegando que sim, sentiam que a violência sofrida por elas poderia ser facilmente enquadrada ao estupro, levando em consideração a forma furtiva a qual a prática se dava. Importante também foi como Alexandra trouxe em seu artigo o comportamento masculino diante das vítimas de stealthing, mostrando que os violentadores criam sites e fóruns para expor seus algozes e ensinar a outros homens como o crime pode ser cometido.

Todos os depoimentos dos homens que realizam essa prática repugnante são carregados de machismo, nos quais eles se sentem superiores às suas vítimas e considerando comum que “o homem esvazie sua carga dentro da mulher”, independente do seu consentimento (2017, p. 188):

Os escritores online que praticam ou promovem a remoção não consensual do preservativo baseiam suas ações na misoginia e no investimento na supremacia sexual masculina. Embora se possa imaginar uma série de motivações para os “furtivos” – aumento do prazer físico, emoção da degradação – as discussões online sugerem que os ofensores e seus defensores justificam suas ações como um instinto masculino natural – e um direito masculino natural

Conclui-se assim, que diante de tantas formas de depreciar a figura da mulher, o Stealthing surge como um novo meio de violência, sendo os depoimentos dos abusadores tratados no artigo de Alexandra apenas uma parte de um todo, na qual os homens consideram uma situação corriqueira a exposição de suas parceiras em relações sexuais arriscadas e desrespeitosas. Fomentando, assim, a insegurança e o medo já existentes nas mulheres, que se sentem coagidas e desvalorizadas, num cenário no qual as mesmas não possuem a oportunidade de terem a escolha de uma relação sexual segura respeitada. O artigo da advogada é apenas a ponta do iceberg do leque sombrio de formas de desrespeito ao feminino e sua dignidade.

2.1 - Conceito de violência sexual

Preliminarmente, interessante conceituar o que é violência para posteriormente explicitar sobre a violência sexual. A violência representa os atos intencionais que têm a finalidade de causar prejuízos, danos e sofrimento para si ou para outrem (indivíduos ou grupo de pessoas) através do uso de força ou alguma vantagem (poder), por essa razão ações que possam ser consideradas como violentas normalmente podem resultar em 3 tipos de danos: físicos (aqueles que afetam a locomoção e autonomia da pessoa), psicológicos (redução na autoestima e autoconfiança podendo gerar ansiedades) e sociais (problemas para se relacionar com os outros e prejuízos de ordem acadêmica ou laboral). Além disso, existe também a negligência que se encaixa nas situações em que uma pessoa deixa de prestar auxílio ou fornecer cuidados básicos afetando o bem-estar e sobrevivência desse indivíduo, sendo que quem deveria fornecê-los estava em uma posição de cuidador em relação ao vulnerável, com isso se encaixa em situações que envolvam crianças, adolescentes ou idosos, por exemplo.

Cumpre salientar que existem vários tipos de violência, principalmente quando relacionadas a mulher ou ao ambiente familiar, sendo indispensável identificar e diferenciar cada um deles para que o Poder Público e a sociedade possam se planejar visando desenvolver medidas, projetos, ações preventivas e formas de atendimento especializado para as vítimas. Ademais, nessa lógica existem ainda 3 grupos de categorias de violência: autoinfligida/autoprovocada/autodirecionada (condutas consideradas como agressão que a pessoa pratica contra si mesma que se materializam por meio, por exemplo, de automutilação e abuso de substâncias ilícitas que causam vício ou ainda pensamentos suicidas); interpessoal (direcionadas a um grupo de pessoas como é o caso da violência intrafamiliar e na comunidade) e coletiva (violências que tenham como motivação aspectos religiosos ou valores sociais ou ainda violências geradas pelo Estado, podendo então ser política ou social ou econômica).

Destaca-se que, conforme mencionado existem diversos tipos de violência, entretanto considerando a temática em análise importante focar no que seria violência sexual. Trata-se de qualquer conduta que possa se manifestar como um constrangimento da vítima a presencia, manter ou participar de atos libidinosos contra sua vontade através do uso da forma, intimidação, coação ou ameaça. Além do mais, situações como obrigar ao casamento, uso de método contraceptivo, realização de aborto ou se submeter a prostituição por chantagem, suborno ou manipulação também se encaixam como violência sexual, sendo que os exemplos expressamente previstos no Código Penal são: estupro, estupro de vulnerável, importunação sexual e assédio sexual.

De acordo com o Manual de Capacitação profissional para atendimentos em situações de violência (2018, p.12) a violência sexual pode ser conceituada como:

(...) todo ato ou jogo sexual, homo ou heterorrelacional, cujos agressores estejam em estágio de desenvolvimento psicossexual mais adiantado que a vítima. As ações de violência sexual caracterizam-se por situações em que não existem contatos físicos (e.g., assédio verbal, exposição à material pornográfico, voyeurismo) e situações em que ocorre contato físico sem penetração (e.g., sexo oral, carícias) ou com penetração (e.g., digital, intercurso genital ou anal). As ações do(a) agressor(a) têm por finalidade estimular sexualmente ou utilizar a criança1 ou adolescente para obter estimulação sexual. Estas práticas eróticas e sexuais são impostas às vítimas por meio de violência física, ameaças ou indução de sua vontade. O comércio de crianças e adolescentes, a situação de exploração sexual e a pornografia visando o lucro também são consideradas formas de violência sexual.

Ademais, interessante enfatizar que a violência sexual também ocorre quando a mulher tem seus direitos reprodutivos violados como, por exemplo, o marido escode sua pílula anticoncepcional para que ela esqueça de tomar seus remédios e acabe ficando grávida sem sua vontade, sendo que a violência sexual e geral contra mulheres é considerada como violência de gênero e as mulheres casadas e comprometidas não estão imunes a elas, inclusive costumam ser as mais afetadas se encaixando na denominada violência conjugal (quando existe relacionamento íntimo, ainda que a união não seja legalizada/registrada, nas situações em que as pessoas coabitam).

Por fim, insta evidenciar que a violência contra a mulher é um fenômeno multidisciplinar, uma vez que envolve aspectos pessoais, interpessoais, contextuais, sociais, culturais e em alguns casos até econômicos, sendo que todos esses fatores devem ser devidamente analisados para que seja possível compreender profundamente essa situação e enfrenta-la corretamente de maneira que culpar a vítima não soluciona o problema e não comprova sua justificativa.

2.2 - Escala evolutiva da violência sexual no Brasil

Considerando a temática em discussão interessante fazer uma breve análise sobre a evolução da violência sexual contra a mulher no Brasil. Percebe-se que o problema da violência contra a mulher não é uma exclusividade dos tempos atuais, devido as questões culturais e o patriarcado que vigorou por muitos anos no país, afinal até a promulgação da Constituição Federal de 1988 existia diferenciação entre homens e mulheres, sendo que de acordo com o Código Civil de 1916 a mulher era considerada incapaz e para trabalhar, por exemplo, precisava da autorização do marido.

Enfatiza-se que a Constituição Federal de 1988 representa a consolidação dos direitos das mulheres superando aspectos como a superioridade do homem dentro das relações familiares, posto que ele era considerado o chefe da relação conjugal, bem como a imposição da igualdade jurídica entre os gêneros, reconhecimento de direitos reprodutivos, extensão do conceito de família para além do casamento levando-se em consideração o afeto (abrangendo as uniões estáveis e concedendo direitos às companheiras sucessórios e a prestação de alimentos, por exemplo), assegurar a mulher tratamento especial pelo mercado de trabalho, proteção estatal contra a violência doméstica e familiar.

Outrossim, o texto constitucional em seu artigo promover a igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres (artigo 5º, inciso I) no ordenamento jurídico brasileiro, com isso elas deixaram de ser consideradas como relativamente incapazes durante o casamento para determinados atos (conforme previa o artigo 6º, inciso II do Código Civil de 1916), sendo que cabia ao marido tomar diversas decisões relacionadas a vida delas.

Dessa forma, a Constituição Federal de 1988 foi promulgada com a finalidade de reduzir e eliminar qualquer tipo de tratamento discriminatório com base no gênero para que a desigualdade de entre homens e mulheres seja devidamente superada de forma que elas possam receber salário equivalentes a eles ao desempenharem as mesmas funções, com similaridade de oportunidades e sem sofrerem em razão da maternidade e eventual gravidez.

Destarte, os reflexos da construção social e cultural brasileira implicaram na visão deturpada do homem em relação a mulher que, na grande maioria dos casos, apresentam um sentimento de posse sobre elas, bem como com a repressão sexual (pois, sexualidade e sexo são temas considerados “tabu” pela sociedade) o ser humano ao invés de exercer com liberdade seus desejos acaba contendo seus desejos e, posteriormente os externando inadequadamente. Com isso, devido ao sistema de dominação e produção aplicados de maneiras diferenciadas entre pessoas do gênero feminino e masculino causou uma significativa discrepância no tratamento entre eles.

Outrossim, apesar da mentalidade coletiva as mulheres se esforçaram durante o passar dos anos para desenvolverem papéis relevantes na sociedade, bem como conseguir a aprovação de diversos direitos, além de demandarem iniciativas específicas para problemas como a violência doméstica e o feminicídio. Por essa razão em 2004 foi estabelecida a Política Nacional de Atenção à saúde da mulher de maneira a dar prioridade para as vítimas de violências sexual e doméstica e promover ações multidisciplinares e intersetoriais; o Ministério da Saúde começou a implementar medidas para redução de vulnerabilidades e riscos à saúde para busca da paz e respeito aos direitos humanos com participação da sociedade civil; em 2005 o Ministério da Justiça criou a Secretaria de Políticas para as Mulheres, a Norma Técnica de Padronização das Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres, demonstrando a preocupação do governo da época em desenvolver políticas públicas específicas para esse público.

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Ademais, em 2006 entrou em vigor a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) promulgada com a objetivo de enfrentar e advertir a sociedade através de ações e políticas relativas à violência doméstica e familiar contra as mulheres, independentemente de critérios como raça, orientação sexual, nível de instrução e classe social, visto que seu intuito é assegurar o exercício de seus direitos fundamentais e humanos, cabendo ao Poder Público, a sociedade e a família atuarem em prol desse intuito.

Cumpre destacar que em 2007 foi promulgada a Lei nº 11.530 responsável pela criação do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania que em seu artigo 4º colocou as mulheres em situação de violência como um dos focos principais de políticas, projetos e ações da área; também em 2007 foi criado o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres como uma agente social da Administração Pública Federal manifestado como um pacto federativo (entre todos os entes – União, Estados, Municípios e Distrito Federal) visando o planejamento de atividades e execução de políticas públicas para garantir a observância da Lei Maria da Penha, fortalecimento e aumento da rede de serviços para mulheres em situação de vulnerabilidade social, garantia de exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos, combate ao tráficos e exploração sexual, assegurar a autonomia feminina e ampliação de seus direitos fundamentais; a Norma Técnica sofreu atualizações em 2010 em razão da edição da Lei Maria da Penha, sendo que essas modificações tiveram a participação de diversos órgãos específicos de proteção as mulheres; em 2011 foi criada a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as mulheres com a finalidade precípua de determinar conceitos, princípios, diretrizes e ações para prevenção e combate a situações de violência contra o gênero feminino com a devida observância de instrumento normativos internacionais e nacionais.

Interessante ressaltar que em 2011 foi editado o Decreto nº 7.508 para dar efetividade a Lei nº 8.080/1990 (Lei Orgânica do Sistema Único de Saúde) de maneira a desenvolver serviços específicos para atendimento a mulheres em situação de violência sexual, sendo que as determinações da Norma Técnica sobre Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual passaram a ser devidamente executados para que as mulheres que desse entrada no SUS após sofrerem esse tipo de violência possam receber atendimento especializado, com profissionais preparados (o que nem sempre acontece) e que tenham acesso a medicamentos e tratamentos voltados para essas circunstâncias.

Nesse sentido, uma medida interessante desenvolvida pelo Ministério da Saúde foi a Norma Técnica referente aos Aspectos Jurídicos do Atendimento às vítimas de violência sexual – perguntas e respostas para os profissionais da saúde para atualização dos profissionais em conformidade com as legislações em vigência na época e entendimento dos tribunais sobre o assunto. No ano de 2013 foi editado o Decreto nº 7.958 referente a inclusão de diretrizes de atendimento das vítimas de violência sexual de maneira individualizada e humanizada pelos profissionais da Saúde e da Segurança Pública; nesse mesmo ano entrou em vigor a Lei nº 12.845 que foi resultado da atuação da sociedade civil em articulação com os Poderes Executivo e Legislativo para uniformização das medidas e do trabalho de saúde pública por meio de atendimento integral, obrigatório e imediato nos hospitais e rede pública, não sendo necessária a apresentação de Boletim de Ocorrência para realização dos procedimentos e cuidados.

Assim, aos poucos o Poder Público através dos Ministérios de Saúde e da Justiça foram fazendo adequações nos termos legislativos e nas normas de atuação dos profissionais da Saúde e da Segurança Pública nos casos de violência sexual com a finalidade de promover atendimento humanização e qualificado com as vítimas, sendo que o Sistema ainda não se encontra de acordo com a necessidade, nem o atendimento é completamente adequado, pois muitos profissionais ainda não têm a sensibilidade que os casos exigem, todavia as mudanças vem acontecendo gradualmente.

Contudo, apesar das medidas promovidas pelo Poder Público os dados mais recentes sobre a violência contra a mulher e a violência sexual contra elas não são satisfatórios, uma vez que segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2021 e o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 a violência sexual e letal contra menores e mulheres no país apontam aumento nos casos de estupro e estupro de vulnerável com cerca de 56.098 casos do tipo apontando um crescimento de 3,7% em relação ao ano anterior, sendo que o isolamento social promovida pela pandemia do Covid-19 impactou diretamente nos casos e registros demonstrando que a sociedade brasileira e o Governo devem ser atentar a essa situação por meio da aplicabilidade de políticas púbicas mais efetivas para preservação e garantia dos direitos básicos das mulheres.

Evidencia-se que de acordo com os dados apresentados pelos veículos mencionados acima em 2021 a cada 10 minutos uma menor ou uma mulher foram alvo de violência sexual, isso considerando apenas os casos que foram levados a conhecimento das autoridades policiais. Importante considerar que durante o período de 2019 a 2020 os casos tiveram queda de 12,1%, porém durante o período de 2020 a 2021 verificou-se um crescimento de 3,7% nos números.

Importante frisar a razão da queda nos registros dos casos e alguns dados levantados pelo documento denominado Violência contra as mulheres em 2021 (p.10-11):

A análise dos registros mensais de estupro e estupro de vulnerável indica forte queda dos registros nos primeiros meses da pandemia de covid-19. Observa-se que o mês de abril de 2020 marca o menor número de registros de estupro de mulheres em todo o período. Trata-se do mês de intensificação das medidas de isolamento social na maior parte dos estados brasileiros, o que sugere que a redução dos casos está relacionada a uma maior dificuldade de acesso das mulheres às delegacias para registro de Boletins de Ocorrência. Após abril de 2020, inicia-se a retomada nos casos de estupro registrados, tendência que permanece em 2021. A taxa média de estupros e estupros de vulneráveis foi de 51,8 para cada 100 mil habitantes do sexo feminino no país. Em 12 estados a taxa ficou acima da média nacional em 2021, sendo eles: Piauí (56,7), Rio Grande do Sul (59,5), Pará (68,6), Goiás (71,8), Paraná (85,4), Santa Catarina (90,0), Tocantins (90,5) e Mato Grosso (97,4). Os Estados de Rondônia (102,3), Amapá (107,7), Mato Grosso do Sul (129,7) e Roraima (154,6) apresentaram taxas superiores a 100 estupros para cada 100 mil mulheres.

Outro estudo importante sobre a violência contra a mulher denominado Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil edição 2023 que demonstra que as mulheres que se encontram na faixa etária dos 25 aos 34 anos foram as mais afetadas com a violência, pois 48,9% relataram terem sofrido algum tipo de violência por parte de seus parceiros e especificamente sobre a violência sexual 24,8% delas vítima desse tipo de situação, isso significa que 1 a cada 4 mulheres na faixa dos 25 aos 34 anos sofreram algum tipo de ofensa aos seus direitos sexuais ou tentativa forçada de ato sexual. Além disso, mulheres nas faixas etárias de 35 a 44 anos e 45 a 59 anos também costumam ser vítimas de violência doméstica (436% e 44,2% respectivamente), bem como o relatório em análise demonstra que quanto a violência sexual todas as faixas etárias apresentam dados semelhantes, no entanto quanto a violência física as mulheres negras são as maiores vítimas.

Por fim, os dados da pesquisa apontam que cerca de 99,6% das mulheres brasileiras já foram alvo de algum tipo de assédio, portanto isso demonstra que no país as mulheres têm seus direitos diariamente violados, não podem exercer tranquilamente sua liberdade e direito à locomoção e dados de 2022 informa que mais de 30 milhões de mulheres oram assediadas sexualmente no Brasil, sendo que as que se encontram na faixa dos 16 anos são as mais afetadas (46,7%). Com isso, percebe-se que apesar da movimentação constante do Governo a situação permanece preocupante, sendo necessário urgentemente medidas e políticas públicas de conscientização coletiva e combate ao machismo.

3. POSSÍVEIS TIPIFICAÇÕES PENAIS

Conforme demonstrado ao longo do hodierno trabalho, a prática do Stealthing não é tipificada no ordenamento jurídico pátrio, todavia, tal conduta pode ser adequada e alicerçada pelo direito penal brasileiro e entendimentos jurisprudenciais, por ser um tipo de violência sexual, bem como seus efeitos, uma vez que há a possibilidade de ser feito analogia ao estupro e, posteriormente, ser autorizado a realização do aborto legal decorrente desse tentante.

A defensora pública Mariana Bianco (2020) relata que em nossa legislação atual o ato de retirar o preservativo sem a aprovação em uma relação não é enquadrada como estupro, pois “não existe um tipo penal para essa situação, há uma lacuna na lei”. Não obstante, a partir do momento que algo é feito sem a anuência do outro, este comportamento pode ser caracterizado como tal.

Primeiramente, no Código Penal pátrio, o artigo 130, aduz acerca do perigo de contato venéreo intencional que é quando um indivíduo que possui uma infecção sexualmente transmissível realiza uma relação sexual a fim de transmitir essa doença para o parceiro. Porém, não são todas as vezes que a retirada do preservativo sem aceitação é com esse intuito.

Ocorre que é importante trazer algumas considerações sobre esse tipo penal. O sujeito ativo será a pessoa contaminada por doença sexualmente transmissível que busca transmitir o agravo, o sujeito passivo pode ser qualquer pessoa (nesse caso específico a mulher), o objetivo jurídico é a vida e a saúde, o objeto material é a conduta de manter relação sexual com uma pessoa contaminada e o elemento subjetivo do tipo:

Expor significa colocar em perigo ou deixar a descoberto. O objeto da conduta é o contágio de moléstia venérea (doença transmissível através de contato sexual). Atinge-se pela prática de relação sexual (é a união estabelecida entre duas pessoas por meio de prática sexual, constituindo expressão mais abrangente do que conjunção carnal, que se limita à cópula pênis-vagina. Abrange, pois, o sexo anal ou oral) ou outro ato libidinoso (qualquer ação que dá ao autor prazer e satisfação sexual). A pena é de detenção, de 3 meses a 1 ano, ou multa (NUCCI, 2023, p.1.156).

Salienta-se que o elemento subjetivo do crime é dolo de perigo, sendo que também pode ser configurado o logo de dano quando for crime qualificado (parágrafo 1º - intenção do agente ativo de transmitir a moléstia que tem), o tipo penal indica dolo direto em caso de o indivíduo ter consciência da doença que tem e dolo eventual quando deveria saber. Trata-se de crime próprio, formal, comissivo, instantâneo, de perigo abstrato, unissubjetivo, plurissubsistente que admite tentativa e pode ser simples (pena de detenção de 3 meses a 1 ano ou multa) ou qualificado (pena de reclusão de 1 a 4 anos e multa). A ação penal desse crime é pública condicionada à representação, sua consumação acontece no momento da prática da relação sexual ou do ato libidinoso independentemente de seu resultado e apresenta como qualificadora a intenção do autor em transmitir a moléstia.

A segunda hipótese é quando a vítima não percebe e o agente continua o ato sexual sem o preservativo, como previsto no artigo 215 do CP, configurando assim o crime de violação sexual mediante fraude em que sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, bem como o sujeito passivo, o objeto jurídico é a liberdade sexual e o objeto material é o indivíduo que sobre o constrangimento, quanto aos elementos objetivos do tipo:

Ter (obter ou conseguir) conjunção carnal (cópula entre pênis e vagina) ou praticar (realizar, executar) outro ato libidinoso (qualquer contato apto a gerar prazer sexual) com alguém (pessoa humana), mediante fraude (manobra, engano, logro) ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima. A pena é de reclusão, de dois a seis anos (NUCCI, 2023, p.1.530)

Urge salientar que o elemento subjetivo do tipo penal é o dolo, sendo que o elemento subjetivo específico do tipo é a intenção de satisfazer a lascívia através de conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso. Dessa forma, mesmo que exista um intuito de vingança ou qualquer outra razão para realização de ato libidinoso a vontade de satisfazer a prazer sexual não é afastado, com isso esse crime pode ser classificado como comum, material, de forma livre, comissivo, instantâneo, unissubjetivo, plurissubsistente e que admite tentativa.

Destarte, especificamente quanto ao momento de sua consumação constata-se que ela acontece a introdução do pênis na vagina, ainda que parcialmente, mesmo que não ocorra a ejaculação e a efetiva satisfação do prazer sexual do agente ativo, assim como a realização do ato libidinoso é suficiente nãos sendo necessária a concretização da efetiva satisfação sexual do criminoso. Percebe-se que na forma qualificada deve-se observar a intenção do delinquente em obter alguma vantagem econômica que implicaria na aplicação de multa, entretanto de forma prática a concretização dessa situação é pouco palpável.

Nesses casos, as mulheres, além de vivenciarem a violência do estupro, ainda ficam sujeitas a uma gravidez indesejada na qual grande parte dos homens desaparecem sem deixar notícias, atribuindo a responsabilidade apenas para elas.

A terceira hipótese, alicerçada no artigo 213, também do CP, aduz que se a vítima percebe a retirada do preservativo, tenta evitar a continuidade do ato sexual, mas é obrigada a seguir com a prática sexual mediante violência ou grave ameaça, caracterizando o estupro. Em relação a esse crime tem como sujeito ativo qualquer pessoa, igualmente o sujeito passivo, seu objeto jurídico é a liberdade sexual da pessoa humana, o objeto material é o ato de submeter um indivíduo a constrangimento e os elementos objetivo do tipo:

constranger (tolher a liberdade, forçar ou coagir) alguém (pessoa humana), mediante o emprego de violência ou grave ameaça, à conjunção carnal (cópula entre pênis e vagina), ou à prática (forma comissiva) de outro ato libidinoso (qualquer contato que propicie a satisfação do prazer sexual, como, por exemplo, o sexo oral ou anal, ou o beijo lascivo), bem como a permitir que com ele se pratique (forma passiva) outro ato libidinoso. A Lei 12.015/2009 unificou os tipos penais dos arts. 213 e 214 em uma só figura (art. 213), tornando-o tipo misto alternativo. Portanto, a prática da conjunção carnal e/ ou de outro ato libidinoso, contra a mesma vítima, no mesmo contexto, é crime único. A pena é de reclusão, de seis a dez anos.

Vale destacar que o elemento subjetivo do crime é o dolo; o elemento subjetivo do tipo específico é a o intuito de concretizar a conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso para satisfazer sua lascívia, mesmo que seja o caso de realizar vingança ou qualquer outra motivação, não impede a caracterização da vontade de satisfação do prazer sexual. Quanto a classificação pode ser definido como um crime comum, material, de forma livre, comissivo, instantâneo, unissubjetivo, plurissubsistente que admite tentativa, no entanto é de difícil comprovação.

Ademais, sobre a consumação ela ocorre com a introdução, mesmo que parcial, do pênis na vagina não sendo necessário que aconteça a ejaculação ou satisfação efetiva do prazer sexual ou de qualquer ato libidinoso. Existe a qualificadora que se encaixa quando a vítima é maior de 14 e menor de 18 anos em que apena será de 8 a 12 anos de reclusão, sendo que em caso de menor de 14 anos quadra-se o crime de estupro de vulnerável do artigo 217-A do Código Penal; em caso de lesão grave também será aplicada a mesma pena e em caso de resultado morte a pena será de reclusão de 12 a 30 anos.

Diante do exposto, constata-se que no caso de a mulher consentir com a prática de relação sexual com uso de preservativo, porém o parceiro sem que ela veja faz a retirada dele ocorre uma violência moral e sexual, sendo que mesmo que inicialmente a relação tenha sido permitida, a partir do momento que esse acordo mútuo se desfaz, tal ato poderá, sim, ser classificado/tipificado como estupro. Com isso, o enquadramento do tipo penal vai depender das particularidades do caso concreto.

4. POSSIBILIDADE DE ABORTO EM CASOS DE STEALTHING

Destaca-se que, conforme mencionado anteriormente, a violência sexual representa as situações em que a vítima é intimidada a presenciar, manter ou fazer parte de atos libidinosos ou conjunção carnal através de ameaças, intimidações, coações ou uso da força, ou seja, meios de redução ou renúncia de sua vontade, com isso situações como retirada de preservativo durante o ato sexual sem o consentimento se encaixam como violência sexual, portanto considerando que o Código Penal aceita como excludente de ilicitude o abordo necessário ou o aborto decorrente de gravidez resultante de estupro (artigo 128) devido a relativização do direito à vida, pois no ordenamento jurídico pátrio não existe nenhum direito absoluto.

Dessa forma, o Direito Penal brasileiro reconhece a existência do aborto terapêutico em que a interrupção da gravidez acontece para preservar a vida da mãe, pois em caso de manter a vida do feto pode levar ao óbito de mulher. Além disso, existe o aborto humanitários ou piedoso em que, para resguardar a dignidade da pessoa humana, a interrupção da gravidez é permitida para que a mulher possa preservar sua saúde mental (psicológica) ao optar por não dar continuidade a uma vida decorrente de um ato de violência sexual.

Vale ressaltar que o ordenamento jurídico brasileiro vem reconhecendo a analogia in bonam partem em caso de violação sexual mediante fraude (uma das possibilidades de enquadramento do Stealthing):

Quando a gravidez for decorrência do crime de violação sexual mediante fraude (art. 215, CP), pode-se utilizar a analogia em favor da parte para se aplicar o disposto no art. 128, II, do Código Penal. Nesta norma, autoriza-se o aborto da mulher que engravidou vítima de estupro. No passado, quando o atentado violento ao pudor (caracterizado por outras formas de atos libidinosos diversos da conjunção carnal, obtidas por meios violentos ou ameaçadores) era distinto do estupro, caso houvesse gravidez resultante disso, usava-se a autorização para o aborto concedida ao estupro, valendo-se de analogia in bonam partem. Ora, a mulher que engravidar por ter sido vítima do crime de violação sexual mediante fraude também pode não desejar manter a gravidez. De toda forma, foi violentada. Então, pode-se valer do disposto pelo art. 128, II, do CP para a realização do aborto (NUCCI, 2023, p.1126-1127).

Desse modo, constata-se que os requisitos para a configuração do artigo 128, inciso II do Código Penal para concretização do aborto humanitário são: gravidez resultado de estupro ou violação sexual mediante fraude, portanto ser uma gestação decorrente de violência e indesejada, a vítima estar de acordo com a realização do procedimento (ou seu representante legal se for menor) e seja devidamente realizado por um médico.

Interessante frisar o posicionamento do Ministro Roberto Barroso no julgamento do Habeas Corpus nº 124.306 – Rio de Janeiro em que o jurista destacou a necessidade de se respeitar a escolha/autonomia da mulher em relação ao seu corpo, com isso ele demonstrou ser favorável ao aborto, por considerar que a mulher somente deverá seguir com a gestação em caso de vontade, pois o Estado não deveria interferir na seara particular do indivíduo afinal deveria caber a mulher as decisões relacionadas ao próprio organismo e colocar seu útero a serviço da sociedade e de seus preconceitos, principalmente religiosos.

Outrossim, cumpre enfatizar em encontra-se pendente de julgamento perante o Supremo Tribunal Federal a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442 – Distrito Federal (que encontra-se conclusão desde 13 de Abril de 2023 para o relator – Ministra Rose Weber) que desde 2017 aguarda decisão sobre a legalização do aborto em até 12 semanas de gestação, entretanto considerando as polêmicas e tabus que existem sobre o tema é difícil saber quando esse processo será julgado ou qual será seu resultado.

Urge evidenciar que a Organização Mundial da Saúde (OMS) em seus estudos defende a possibilidade de aborto até as 20 ou 22 semana de gestação (caso o feto tenha menos de 500 gramas ou em caso de risco de vida), pois consideram o assunto interesse coletivo como assunto de saúde pública, com isso cabe ao Poder Judiciário e a Administração Pública assegurarem ao menos o cumprimento das determinações do Código Penal fornecendo as possibilidades de aborto legalizadas por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) de maneira a possibilitar a realização do procedimento corretamente.

Destarte, existe apenas uma decisão sobre a possibilidade de aborto em caso de Stealthing é do Tribunal de Justiça do Distrito Federal que considerou que, a partir do momento em que o preservativo foi retirado, a relação deixou de ser consentida e com isso ocorreu uma violência sexual (abuso), portanto deve-se enquadrar no caso do artigo 128, inciso II do Código Penal, sendo que no próximo capítulo será abordado mais sobre essa decisão.

De acordo com a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento (2011, p.10) ele representa:

um grave problema de saúde pública. Estima-se que ocorram, considerando apenas o Brasil, mais de um milhão de abortamentos induzidos ao ano, sendo uma das principais causas de morte materna no País. Por atravessar um emaranhado de aspectos sociais, culturais, econômicos, jurídicos, religiosos e ideológicos, é tema que incita passionalidade e dissensão, parecendo, sob consideráveis perspectivas, distante de saída. Compreender sua abrangência e (re)pensar soluções demanda tanto investimento em educação e informação – vitais no aprimoramento da capacidade crítica – quanto o comprometimento constante do Estado, dos profissionais de saúde e da sociedade em geral com o ordenamento jurídico nacional e alguns de seus mais basilares princípios: a democracia, a laicidade do Estado, a igualdade de gênero e a dignidade da pessoa humana.

O Ministério da Saúde, atento à primazia dos direitos humanos e sensível às reivindicações dos movimentos feministas e de mulheres, que não arrefecem na luta histórica por tais direitos, ganhou, nos últimos anos, visível e inexorável fôlego no compromisso com a garantia dos direitos reprodutivos e dos direitos sexuais das mulheres. Vem pautando-se, para tanto, pelo zelo no seguimento dos acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário e pela legislação nacional vigente, com destaque para a consolidação de garantias constitucionais e pela recente Lei Maria da Penha. Esta última, sendo marco político essencial no enfrentamento não somente à violência doméstica em geral, mas também ao estupro ocorrido em âmbito doméstico, que não raro provoca gestações incestuosas, produzindo traumas indeléveis em crianças e adolescentes.

Com isso, cabe ao Poder Judiciário quando se deparar com casos de possibilidade de aborto legal colocar o processo em tramitação de segredo de justiça de maneira a preservar a vítima do julgamento da sociedade. Além do mais, cabe ao Poder Público direcionar a mulher para atendimento adequado no Sistema Único de Saúde que deve se preocupar em não deixar aspectos pessoais como religião e moral influenciarem no andamento do procedimento, pois o abortamento deve ser realizado com acolhimento, humanização, sem julgamentos e com escuta qualificada para que a mulher não se sinta pressionada ou inibida de exercer seu direito legalmente assegurado.

Ocorre que com o avanço do conservadorismo no Brasil, recentemente alguns casos acabaram tomando proporções midiática como, por exemplo, o caso da menina de 10 anos em que a então ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, supostamente vazou dados para impedir que a menor pudesse exercer seu direito reconhecido pela Justiça de Recife (em que o crime teria sido praticado pelo tio da menina), uma vez que alguns populares apareceram no hospital designado para realização do procedimento e tentaram impedir o ato.

A consequência prática disso foi a ingresso de 4 entidades da sociedade civil com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 989 – Distrito Federal perante o Supremo Tribunal Federal para resguardar as mulheres que tenham autorização para realização de aborto previsto no Código Penal como causas de excludente de ilicitude para devida proteção de meninas e mulheres vítimas de abuso e violência sexual protegendo-as de violências judiciárias, médicas e sociais.

Portanto, cabe a Administração Pública e ao Poder Judiciário visando respeitar aspectos como a dignidade da pessoa da mulher, seus direitos sexuais e reprodutivos, sua autonomia privada, sua integridade mental e física para abranger uma visão mais contemporânea, atual e apartada de elementos morais, religiosos e culturais, proteger as vítimas de eventuais exposições indevidas, pois esse tipo de procedimento deve ocorrer em sigilo para proteção da mulher. Nesse sentido, foi o entendimento do Ministro Luís Roberto Barroso (2018, p.529) no julgamento do Habeas Corpus 124.306 mencionado anteriormente:

É preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do Código Penal – que tipificam o crime de aborto – para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade. (...) A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria.

Nessa perspectiva, percebe-se que a dignidade da pessoa humana também está intimamente relacionada com a autonomia de vontade. O princípio da autonomia de vontade (para alguns autores também denominado como autonomia privada ou consensualismo) é oriundo do Direito Privado, especificamente do Direito Civil (Teoria Geral dos Contratos), sendo considerado um axioma próprio dos Contratos. Ele preleciona que as partes têm liberdade para contratar, ou seja, a faculdade de formalizar ou não um negócio jurídico, bem como a liberdade contratual que representa a possibilidade de em acordo com a parte contrária definir o conteúdo do contrato celebrado, isto é, os indivíduos têm o direito a optar por uma contratação e por fixar suas regras e modalidades. Nesse sentido, é o entendimento de Carlos Roberto Gonçalves (2021, p.1.304):

Tradicionalmente, desde o direito romano, as pessoas são livres para contratar. Essa liberdade abrange o direito de contratar se quiserem, com quem quiserem e sobre o que quiserem, ou seja, o direito de contratar e de não contratar, de escolher a pessoa com quem fazê -lo e de estabelecer o conteúdo do contrato.

O princípio da autonomia da vontade se alicerça exatamente na ampla liberdade contratual, no poder dos contratantes de disciplinar os seus interesses mediante acordo de vontades, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica. Têm as partes a faculdade de celebrar ou não contratos, sem qualquer interferência do Estado. Podem celebrar contratos nominados ou fazer combinações, dando origem a contratos inominados.

Destaca-se que, esse princípio é decorrente das ideias liberalistas do Iluminismo (1685-1815), sendo que seu apogeu foi durante a Revolução Francesa (1789-1799), em que se propaga a redução do intervencionismo estatal, o livre-mercado, o individualismo e a liberdade em geral, pois a vontade livremente expressa faz lei entre as partes. Ademais, por essa razão, a autonomia de vontade visa promover a bilateralidade dos contratos, ou seja, a equivalência de obrigações, direitos e deveres para concretização do consensualismo, visto que “o encontro das vontades livres e contrapostas faz surgir o consentimento, pedra fundamental do negócio jurídico contratual” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2022, p.617).

Vale ressaltar que a autonomia de vontade rege a celebração dos denominados contratos atípicos, isto é, aqueles que não têm forma expressa prescrita na legislação, sendo assim os negócios jurídicos pautados especificamente pela vontade e interesse das partes serão orientados pelas disposições desse princípio. Destarte, seu fundamento no Código Civil é o artigo 421 que prevê a possibilidade livre de realização de contratos, colocando como limitação somente a função social dos contratos e eventuais regras do ordenamento jurídico como, por exemplo, a impossibilidade de estipular objeto ilícito.

Desse modo, de acordo com a autonomia de vontade cabe a mulher exercer seus direitos de liberdade sexual e reprodutiva para tomar decisões relacionadas com sua saúde, gravidez e manutenção ou não da vida intrauterina, desde que ela esteja em pleno gozo de suas faculdades mentais sua vontade deve ser devidamente respeitada, uma vez que no direito brasileiro não existe nenhum direito absoluto (o próprio direito à vida apresenta relativizações como, por exemplo, a pena de morte em caso de guerra, a legítima defesa e o aborto legal), assim a autonomia de vontade nesse caso representa a liberdade de decisão, de gerenciar seus desejos e não ser influenciado por terceiros.

Além do mais, a dignidade da pessoa humana como um princípio representa uma garantia inerente à pessoa que lhe resguarda contra eventual tratamento degradante, desumano ou discriminatório, bem como implica na salvaguarda de que o indivíduo terá acesso aos meios materiais indispensáveis e mínimos para a manutenção de sua vida com qualidade e também à possibilidade de pleno desenvolvimento de sua personalidade sem interferências e com autodeterminação (respeito à herança histórica da pessoa).

Segundo Alexandre de Moraes (2020, p. 80-81) o princípio da dignidade da pessoa humana é:

um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.

Outrossim, a dignidade da pessoa humana representa também um norte para a aplicabilidade dos direitos e garantias fundamentais, posto que essas prerrogativas individuais e coletivas devem ser aplicadas para certificar que as pessoas terão acesso ao mínimo existencial para uma vida digna, livre e igualitária. Ademais, ele implica também em promover limitações ao exercício do Poder Estatal ao simbolizar um desdobramento da soberania da população (todo poder emana do povo).

Salienta-se que, os direitos fundamentais foram idealizados para dar plenitude à dignidade da pessoa humana, pois a violação a quaisquer dos direitos individuais ou coletivos expressamente e implicitamente assegurados na Constituição representam violações à própria dignidade da pessoa. Dessa maneira, a dignidade da pessoa humana em conjunto com a paternidade responsável fundamenta o exercício do planejamento familiar por parte do casal, sendo que cabe ao Estado proporcionar recursos científicos e educacionais para que os indivíduos possam exercer esse direito (artigo 226, parágrafo 7º da Constituição Federal de 1988).

Enfatiza-se que considerando as informações apresentadas acima resta claro que a dignidade da pessoa humana apresenta uma dimensão normativa tripla, pois é uma metanorma (é uma diretriz para interpretação, criação e aplicação de todas as legislações brasileiras); um princípio (cabendo à Administração Pública o dever de proteção e promoção da vida digna) e uma regra (dever de respeito, posto que as pessoas não podem ser tratadas com desprezo não podendo ser tratado como um objeto).

Por fim, analisando-se amplamente o impacto social de se considerar a dignidade humana da mulher e seus direitos fundamentais (como autonomia privada, liberdade sexual e reprodutiva) percebe-se que o tema seria tratado como um interesse coletivo, como relevante para saúde pública, reduziria consideravelmente a incidência de abortos clandestinos (caso fosse oferecido pelo SUS), poderia levar a diminuição de crianças abandonadas, representaria respeito a vida digna da mulher, dentre outros importantes impactos sociais.

5. DA ANÁLISE JURISPRUDENCIAL SOBRE STEALTHING

Primeiramente, cumpre destacar que o Stealthing ainda não apresenta uma regulamentação específica no ordenamento jurídico pátrio, sendo que até então existe somente uma decisão específica sobre um caso, com isso interessante analisar essa decisão.

Salienta-se que se encontra em tramitação o Projeto de Lei nº 965/2022 de autoria do Deputado Federal Delegado Marcelo Freitas do partido União Brasil de Minas Gerais em que se pretende alterar o Código Penal acrescentando o artigo 215-B para reconhecer expressamente o crime de Stealthing tipificando a conduta de remoção intencional de preservativo, sem o consentimento da parceira ou parceiro, com provável pena de 1 a 4 anos de reclusão caso a situação não se enquadre em crime mais grave. A proposta atualmente aguarda análise da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados (desde 28 de Abril de 2022).

Cumpre destacar a justificativa de propositura do Projeto de Lei descrito pelo deputado:

O autor desse tipo de ação induz a vítima a acreditar que está em um ato sexual seguro. Entretanto, de maneira escondida ou camuflada, retira o preservativo e dá continuidade ao ato, em desconformidade com a vontade da vítima.

O que se pretende com o presente projeto de lei é a tipificação da conduta de ter relação sexual com alguém, de forma diferente da consentida, por meio de uma verdadeira enganação ou ato que contrarie ou distorça a vontade da vítima.

Ainda que a relação tenha sido, inicialmente, consentida, a partir do momento em que o autor retira ou deixa de colocar o preservativo, sem o consentimento da outra pessoa, muda a situação de fato, passando a relação sexual a ser abusiva, por não contar com o consentimento da parceira ou do parceiro.

Sem uma legislação específica tratando do tema, pessoas que, de fato, são abusadas sexualmente, continuarão sem o amparo que deveriam receber de nossa sociedade (FREITAS, 2022, p.02).

Logo, percebe-se que a aprovação do referido Projeto de Lei seria indispensável para a devida regulamentação dos casos e dar um desfecho mais satisfatório para as vítimas que, atualmente, acaba ficando à mercê do Poder Judiciário e seu entendimento das particularidades do caso concreto. Com isso, essa triste realidade vivenciada, em grande maioria, pelas mulheres que é a prática denominada como Stealthing deve ser caracterizada como uma violência de gênero que viola diretamente os direitos fundamentais da mulher além de ignorar o consentimento dela e coloca-la em risco quanto a sua integridade física e mental.

Assim, a importância do reconhecimento do Stealthing como conduta tipificada relaciona-se com a proteção dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, sendo que o assunto é pouco discutido pelo Poder Judiciário, uma vez que existe somente uma decisão específica sobre essa situação que permite a prática de aborto legal proferida em 2020 pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal que entendeu:

REMESSA NECESSÁRIA. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. VIOLÊNCIA SEXUAL. GRAVIDEZ. REALIZAÇÃO DE ABORTO HUMANITÁRIO NA REDE PÚBLICA DE SAÚDE. CP, ART. 128II. POSSIBILIDADE. DIREITO À SAÚDE. DEVER ESTATAL.SENTENÇA MANTIDA. 1. Cabe ao Estado prestar assistência integral à mulher em situação de gravidez decorrente de violência sexual, por meio de um atendimento emergencial, integral e multidisciplinar em todos os hospitais integrantes da rede o Sistema Único de Saúde- SUS, visando o controle e ao tratamento de agravos físicos e psíquicos decorrentes da violência, além do encaminhamento aos serviços de assistência social, compreendendo a profilaxia as gravidezes nas hipóteses legais (CRFB, arts. 196 e 197; LODF, arts. 204 e 207, XV; Lei n. 12.845/13). 2. A situação descrita configura o fato típico previsto pelo art. 213 do Código Penal, haja vista que, embora o ato sexual tenha sido inicialmente consentido com o uso de método contraceptivo, deixou de sê-lo no momento em que o agressor retirou o preservativo (?stealthing), obrigando a vítima a continuar a relação sexual, sendo legítima a postulação para realização do aborto humanitário, com fulcro no art. 128II, do Código Penal, não podendo o Estado se furtar desse direito. 3. Remessa necessária desprovida.

(TJ-DF 076032091120198070016 – Segredo de Justiça 0760320-91.2019.8.07.0016, Relator: LEILA ARLANCH, Data de Julgamento: 28/10/2020, 7ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no PJe: 20/11/2020. Pág.: Sem Página Cadastrada.

Interessante frisar que nos fatos, a vítima relata que a relação sexual foi consentida, inicialmente, perante o uso do preservativo, no entanto, no meio do ato, o parceiro retirou-o por contra própria e não a consultou, obrigando-a a continuar a relação, com isso alguns argumentos utilizados na decisão mencionada acima foram:

Em 2a instância, os desembargadores esclareceram que é dever do Estado prestar assistência integral à mulher em situação de gravidez decorrente de relação sexual involuntária, seja por violência sexual ou coerção nas relações sexuais. Explicaram que o aborto decorrente de crime é um exercício de direito, que independe da condenação do criminoso, basta que a vítima apresente o registro policial ao médico. Quanto à prática do “stealthing”, o colegiado entendeu que a partir da falta de consentimento, o ato passa a ser considerado crime de estupro: No particular, o ato sexual, embora inicialmente consentido mediante o uso de método contraceptivo, deixou de sê-lo no momento em que o agressor retirou o preservativo, ao que a vítima gritou para que este cessasse o ato sexual e teve seu rosto forçado contra a parede, com a ordem de que ficasse quieta.

Assim sendo, a conduta do Stealthing pode ser enquadrada/tipificada em alguns tipos penais, como nos dispositivos apresentados em tela, quais sejam: na violência sexual mediante fraude, podendo resultar no estupro, se a intensão do autor(a) for a de finalizar o ato sexual sem a aceitação do seu parceiro(a) e no contato venéreo intencional.

Por fim, resta claro que o Tribunal de Justiça do Distrito Federal entendeu que quando o parceiro retirou o preservativo ali se encerrou o consentimento da mulher, com isso seria configurado o crime de estupro do artigo 213 do Código Penal, com isso seria possível a aplicação do aborto humanitário previsto no artigo 128 do Código Penal Brasileiro por se tratar de uma violência sexual e abuso sexual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo do presente trabalho, plenamente atingido, foi observar o Stealthing no que tange ao cotidiano feminino brasileiro, levando em consideração a forma como é praticado e os danos causados à intimidade e a dignidade da mulher vítima desse ato, como forma de correlacionar a prática às suas possíveis tipificações no sistema jurídico penal brasileiro, com isso preocupou-se em conceituar o instituto, apontar as possibilidades de tipificação, tratar da possibilidade de aborto e o entendimento jurisprudencial sobre o tema.

Destaca-se que o Stealthing representa a situação em que duas pessoas estão mantendo relações sexuais consentidas com uso de preservativo, entretanto durante o ato a camisinha é retirada sem comunicar a outra parte expondo-a a riscos de doenças, gravidez e praticando um violência sexual. Esse tipo de prática não é muito discutida no Brasil, sendo que somente nos dias atuais é que a comunidade jurídica e acadêmica começou debater o assunto.

Em relação ao conceito de violência sexual constata-se que representa as situações em que a vítima é constrangida a assistir, participar ou praticar ato sexual ou ato libidinoso com outrem através do uso de força, coação, ameaça ou outros meios de intimidação, sendo que situações como obrigar a contrair matrimônio, deixar de usar método contraceptivo ou realizar aborto também se encaixam na definição desse tipo de abuso.

No tocante a evolução da violência sexual no pais, observa-se que a maneira como a mulher foi tratada e percebida pela sociedade passou por diversas mudanças e modificações, sendo que a partir do momento que as mulheres começaram a alcançar direitos e ocupar determinados espaços é que determinadas questões começaram a ser pauta na sociedade e no meio jurídico. Um exemplo disso é a violência sexual que a partir da Constituição Federal de 1988 em que o gênero feminino e o masculino foram igualados formalmente (em lei), bem como diversos movimentos nacionais passaram a discutidos em nível federal pelo Ministério da Saúde e da Justiça de maneira a criar mecanismos, ações, políticas públicas e formas de lidar com esse tipo de problema.

Ocorre que, apesar da implementação de algumas medidas, orientação de profissionais e da luta de muitas mulheres a violência sexual continua sendo um grande problema para o Brasil. O Stealthing, por exemplo, não apresenta tipificação específica no ordenamento jurídico pátrio, com isso pode se enquadrar em 3 tipos penais: artigo 130 (perigo de contato venério), artigo 215 (violação sexual mediante fraude) ou artigo 213 (estupro) dependendo das circunstâncias específicas do caso concreto.

Outro tema que surge com o Stealthing é a possibilidade de aborto. A questão é complexa, posto que o aborto no Brasil é considerado crime, no entanto de acordo com o artigo 128 do Código Penal em duas situações específicas: necessário (para preservar a integridade física e a saúde da gestante) e em caso de resultado de estupro (caso em que será necessária a anuência da gestante ou de seu representante legal), sendo que nos casos de Stealthing têm-se aplicado a analogia in bomam partem para que as mulheres possam abortar sem cometer crime.

Ademais, em relação a análise jurisprudencial nota-se que existe somente um julgado específico sobre o tema em que a prática de aborto legal foi possibilitada em 2020, sendo que a decisão foi proferida pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal. O referido órgão jurisdicional entendeu que a relação se iniciou com consentimento, mas a partir do momento em que o preservativo foi retirado o ato passou a ser resultado de violência sexual possibilitando o aborto.

Dessa forma, conclui-se que, considerando a existência do Projeto de Lei nº 965/2022 para tipificação expressa desse crime é indispensável que ele seja aprovado para dar mais segurança jurídica para as vítimas, bem como para especificar as condutas que abrangem o tipo penal, assegurar a possibilidade de aborto legal e dar um desfecho mais satisfatório para eventuais novos casos.

REFERÊNCIAS

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Sobre o autor
Rilawilson José de Azevedo

Dr. Honoris Causa em Ciências Jurídicas pela Federação Brasileira de Ciências e Artes. Mestrando em Direito Público pela UNEATLANTICO. Licenciado e Bacharel em História pela UFRN e Bacharel em Direito pela UFRN. Pós graduando em Direito Administrativo. Policial Militar do Rio Grande do Norte e detentor de 19 curso de aperfeiçoamento em Segurança Pública oferecido pela Secretaria Nacional de Segurança Pública.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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