Na semana que passou, muito se discutiu no mundo jurídico sobre o julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade acerca do juiz das garantias. Em apertada síntese, o instituto pode ser definido como: é a divisão entre o juiz que vai julgar e resolver o litígio penal e o que vai instruir a investigação na fase pré-processual.
O artigo 3º-B do Código de Processo Penal traz uma série de atividades que estão compreendidas dentro da competência do juiz das garantias. O artigo 3º-C, por sua vez, delimita até onde se alarga essa competência, determinando que esta se encerra com o recebimento da denúncia ou queixa.
Em um país onde a constituição consagra o sistema acusatório como sendo o modelo adotado pelo processo penal, o juiz das garantias não deveria ser novidade, mas sim um corolário lógico da própria divisão de atividades dos integrantes do processo. Contudo, não é assim que ocorre no Brasil.
O nosso ordenamento jurídico processual penal, embora seja formalmente acusatório, possui uma carga inquisitorial gigantesca. A atividade jurisdicional na seara penal é exercida sob a ótica da inquisição, o que influi nos mais variados aspectos do processo.
Para me fazer compreender uma situação prática é sempre muito útil. Exemplo: Durante uma investigação, o juiz pode decretar, segundo o art. 3º da Lei nº 9.296/1996, uma interceptação telefônica a requerimento ou de ofício. Verifica-se assim que o juiz pode ter, nesse caso, uma movimentação ativa na produção da prova. Vejam, não é um contato primário pré-processual com a prova que será produzida, mas sim a busca ativa por ela.
Quem busca, busca algo com a finalidade de confirmar alguma hipótese. O juiz que determina de ofício uma produção de provas dessa envergadura, por exemplo, não o faz acreditando que o investigado é inocente, o faz com um pré-julgamento constituído em seu inconsciente, e sua atividade se dirige no sentido de confirmar a hipótese que ele já formulou. Esse ato consiste em um ato de investigação que é inerente a quem compete a acusação. Não confunda! Não estou, de modo algum, defendendo que o Ministério Público possa violar o sigilo de comunicações sem o controle do judiciário, mas sim que é inadmissível, em um sistema formal e materialmente acusatório, que o juiz o faça de ofício, tampouco que seja ele, na eventual deflagração da ação penal, quem vai julgar o processo.
Ok, mas o que isso tem a ver com o juiz das garantias? Tudo!
O juiz das garantias vem na perspectiva de retirar, de uma vez por todas, todas e quaisquer atividades do juiz que possam contaminar a sua imparcialidade.
Nesse sentido, chamo a atenção para o fato de que o juiz que dirige a produção da prova é orientado por um juízo de valor acerca daqueles fatos, ainda que esse juízo não seja carregado de certeza, ele traz consigo uma mácula da hipótese a qual ele pretende confirmar por meio da perseguição probatória. Ou seja, quando esses elementos de informações chegam na instrução processual, o juiz já está completamente contaminado e localizado dentro da zona de conforto que ele possui de achar que ele sempre teve razão, afinal, ele construiu sumário da culpa em relação ao acusado e capitaneou a produção probatória para confirmar essa tese.
Como eu tenho dito em outras oportunidades, é muito curioso notar que a mentalidade inquisitiva é tão arraigada na cultura jurídica brasileira que faz com que fiquem nebulosos os papéis dos atores no processo penal, o que nos faz erroneamente crer que o dever do Promotor é, pura e simplesmente, acusar.
A bem da verdade, existem limites que não devem ser cruzados no que pertine à boa prática do sistema acusatório e a racionalidade imposta por esse sistema. Essa presunção de prevalência da acusação sobre todas coisas tem que acabar, pois o objetivo primeiro daquele órgão deve ser a promoção da justiça.
O processo judicial, sobretudo o processo penal, deve ser encarado como uma moldura de um quadro da realidade, com inúmeros pequenos quadrantes, uns fechados e outros abertos. Por si só, a moldura do processo penal já não nos permite a visualização de toda a realidade, considerando que a ação penal é uma mera reconstrução histórica daquilo que já se passou.
Assim, no que tange à prova do que ocorreu, é seguro dizer, dentro dessa metáfora, que quanto mais sólida e robusta é a prova judicial produzida, mais quadrantes da moldura nós conseguimos abrir, e, portanto, mais acesso nós temos à realidade dos fatos.
Modernamente, não se admite mais no processo penal a busca por uma verdade real, vez que esta é utópica e inalcançável. O correto, nos dias hodiernos, é a busca pela VERDADE MATERIALMENTE POSSÍVEL, pois não se admite mais que o processo sirva de instrumento de vingança sobre aquele que é submetido ao poder sancionador estatal.
Ainda dentro da metáfora do quadro, se o juiz que preside a investigação é o mesmo que vai julgar, ele pouco esforço fará para abrir o maior número de quadrantes possíveis da moldura, pois ele acredita – ainda que inconscientemente – que já conhece a realidade dos fatos, ao passo que, quando a atividade judicante se separa entre quem pratica atos investigatórios e quem decide o litígio, haverá uma maior lisura no processo cognitivo dessa decisão, uma vez que o julgamento estará marcado pela primariedade da atividade cognitiva de quem irá decidir, separando-se definitivamente as atividades judicante e acusatória.
No nosso dia a dia, com a tecnologia que temos à nossa disposição, não há justificativa válida para a não aplicação do juiz das garantias. Esse instituto tem a capacidade de por fim, de uma vez por todas, ao fantasma do autoritarismo inquisitorial, vez que se tem efetivamente a divisão entre os papéis de julgador e acusador na relação jurídico processual.
Nesse interim, no centro do debate público do controle de constitucionalidade da norma do juiz das garantias está a sua forma de implementação e os custos que gerará para o Estado.
Contudo, conforme defendeu brilhantemente Aury Lopes Junior perante o plenário do STF, o juiz das garantias clama pela sua efetivação dentro do sistema acusatório.
O professor asseverou ainda que, a partir da digitalização dos processos, não persistem óbices para o instituto ser implementado através de núcleos regionais e distribuição cruzada, não havendo qualquer violação ao juiz natural, vide a própria organização judiciária da justiça federal, por exemplo, onde há centralização de competência por meio de Seções Especializadas. Aury Lopes completa dizendo que quem acha que o juiz das garantias é muito oneroso, ignora o alto custo de uma injustiça.
De mais a mais, podemos concluir que o Juiz das Garantias é uma modernização necessária que urge a partir da necessidade de uma melhor qualificação da prestação jurisdicional oferecida no processo penal brasileiro, pois a garantia de um juiz imparcial é direito fundamental, é medida civilizatória, urgente, democrática, necessária e indispensável na plena efetivação do sistema acusatório e, por extensão, do próprio Estado Democrático de Direito.
Em resumo, o juiz das garantias busca separar as funções de instrução e julgamento, a fim de garantir a imparcialidade do juiz que decide o caso. Essa separação é considerada importante para evitar que o juiz que conduziu a investigação pré-processual seja influenciado por suas próprias convicções e hipóteses, garantindo uma decisão mais imparcial e justa. A implementação do juiz das garantias é vista como uma modernização necessária para qualificar a prestação jurisdicional no sistema acusatório brasileiro e fortalecer o Estado Democrático de Direito.