RESUMO
O presente estudo aborda o Direito das Sucessões e a inclusão dos bens digitais no processo de inventário. Embora ainda não haja uma regulamentação específica para a herança digital no direito brasileiro, existem duas correntes de pensamento sobre o assunto. Alguns defendem que todos os conteúdos digitais devem ser acessíveis, enquanto outros argumentam que apenas os aspectos patrimoniais devem ser transmitidos. Atualmente, estão em discussão no Congresso Nacional dois projetos de lei relacionados a essa temática. Um deles propõe a alteração do Código Civil para permitir o uso de vídeos como codicilo, ou seja, uma adição ao testamento, no contexto da herança digital. O outro projeto trata dos dados pessoais inseridos na internet após o falecimento do usuário. Vale ressaltar que o testamento tradicional já possibilita ao testador destinar seus bens, sejam eles corpóreos ou incorpóreos, a quem desejar (respeitando-se a legítima), sendo os bens digitais considerados como bens incorpóreos. É importante destacar que serviços digitais como Facebook e Google já oferecem opções para escolher o destino dos dados pessoais após o falecimento do usuário. Contudo, é fundamental analisar como será feita a avaliação do patrimônio digital, como canais monetizados do Youtube, perfis no Twitter, Instagram, entre outros. Se os bens digitais são considerados tão valiosos quanto os bens não digitais, ambos devem ser incluídos na tributação do ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doações). A herança digital, como mencionado anteriormente, é um tema novo que apresentará muitos desafios para o Direito em todo o mundo, uma vez que a tecnologia avança em uma velocidade jamais vista na sociedade.
Palavras-chave: Direito sucessório. Herança digital. Bens digitais. Direito e internet.
1 INTRODUÇÃO
O Direito das Sucessões, atualmente, assim como diversos temas da área jurídica, encontra-se em processo de expansão, é dizer, há novos tipos de bens que deverão ser trazidos para dentro do processo de inventário ou arrolamento para serem transmitidos aos herdeiros ou legatários.
Tradicionalmente, por exemplo, tem-se como objetos de um inventário bens móveis e imóveis (corpóreos), além dos direitos autorais em obras literárias ou artísticas (incorpóreos). No entanto, com a popularização da internet e das redes sociais, há o surgimento dos chamados bens digitais que, segundo ZAMPIER (2021), são bens incorpóreos inseridos na internet, podendo tais bens possuir caráter pessoal e valor econômico.
No Brasil, o Direito das Sucessões é regulado pelo Código Civil de 2002, no Livro V, entre os artigos 1.784 a 2.027, não havendo regulamentação quanto à herança digital, existindo, porém, alguns projetos de Lei sobre o assunto.
O presente trabalho, portanto, tem como objetivo apontar as novas situações jurídicas que deverão ser trazidas para dentro do processo de inventário em decorrência dos avanços da tecnologia.
2 DESENVOLVIMENTO
A sucessão universal é transmitida no momento da morte, sendo um complexo de relações jurídicas patrimoniais que serão transmitidas aos seus herdeiros (ESA OAB RSa, 2021).
Segundo TARTUCE (2020a), em termos gerais, duas são as modalidades básicas de sucessão mortis causa, previstas no art. 1.786 do CC:
Sucessão legítima – aquela que decorre da lei, que enuncia a ordem de vocação hereditária, presumindo a vontade do autor da herança. É também denominada sucessão ab intestato justamente por inexistir testamento;
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Sucessão testamentária – tem origem em ato de última vontade do morto, por testamento, legado ou codicilo, mecanismos sucessórios para exercício da autonomia privada do autor da herança.
Conforme os ensinamentos de José de Oliveira Ascensão, “O Direito das Sucessões realiza a finalidade institucional de dar a continuidade possível ao descontínuo causado pela morte. A continuidade a que tende o Direito das Sucessões manifesta-se por uma pluralidade de pontos de vista. No plano individual, ele procura assegurar finalidades próprias do autor da sucessão, mesmo para além do desaparecimento deste. Mas tão importante como estas é a continuidade na vida social. O falecido participou desta, fez contratos, contraiu dívidas. Não seria razoável que tudo se quebrasse com a morte, frustrando os contraentes. É necessário, para evitar sobressaltos na vida social, assegurar que os centros de interesses criados à volta do autor da sucessão prossigam quanto possível sem fracturas para além da morte deste” (apud TARTUCEb, 2020).
Sabe-se que “com a morte, extinguem-se todos os direitos e deveres”. De fato, não há como negar que, com a morte, a maioria dos direitos instantaneamente desaparece. O primeiro direito a se encerrar no instante da morte é a vida. E o fim da vida põe termo à liberdade de locomoção, ao direito de reunião, de manifestação do pensamento e da propriedade (NUNES JÚNIORa, 2019).
Não obstante, a doutrina constitucional (e, em menor medida, a lei e a jurisprudência) passa a reconhecer a titularidade post mortem dos direitos fundamentais. É o caso do direito à honra e à imagem. Mesmo com o fim da vida, o morto continua com seu direito de imagem e o direito à sua honra, que não poderão ser violados. Não se trata de direito dos familiares, como pensam alguns. A imagem não é da família, sobre a qual recairão apenas reflexos patrimoniais (NUNES JÚNIORb, 2019).
Para além dos direitos fundamentais à honra e à imagem, com a chegada da internet e os avanços tecnológicos, deve-se voltar a atenção aos bens digitais, que vêm ganhando força e visibilidade, a exemplo das redes sociais, dos streaming de vídeos e músicas e dos e-books.
Assim como ocorre no mundo físico, o ambiente virtual também possui bens de valor patrimonial. Diante disto, ZAMPIER (2021) dividiu e conceituou os bens em três categorias, sendo elas: bens digitais patrimoniais, bens digitais existenciais e bens digitais híbridos - patrimoniais-existenciais - (ESA OAB RSb, 2021).
Bens digitais patrimoniais são todos aqueles que têm repercussão econômica, como, por exemplo, um e-commerce ou criptoativos. Por outro lado, bens digitais existenciais são aqueles que estão calcados na dignidade da pessoa humana, como os direitos da personalidade, como, por exemplo, uma foto de uma pessoa em uma rede social. Por fim, os bens digitais híbridos são os bens existenciais que possuem monetização, como, por exemplo, um canal do Youtube com patrocinadores (ESA OAB RSc, 2021).
O debate mundial sobre herança digital surgiu do caso alemão conhecido como “A garota de Berlim” (FRITZa, 2021):
A mãe de uma adolescente entrou com ação contra o Facebook pleiteando o acesso à conta da garota após trágico acidente no metrô. Os pais queriam ter acesso a todo o conteúdo armazenado no perfil para encontrar pistas sobre o fatal incidente, pois havia suspeita de suicídio e, para completar, o condutor do metrô processou os genitores pedindo indenização pelo trauma sofrido.
O juízo de primeiro grau - Landgericht (LG) Berlim - condenou o conglomerado digital a liberar o acesso dos pais à conta, em sentença prolatada em 17/12/2015. Essa decisão foi reformada em segundo grau pelo Kammergericht Berlim, mas restaurada pelo BGH em 12/7/2018.A tese defendida pelo Facebook no caso mencionado foi de que a conta dos usuários das redes sociais não podem ser transmitidas aos herdeiros, sob pena de invasão de privacidade do falecido e de seus interlocutores, violação do sigilo da correspondência e dos dados pessoais (FRITZb, 2021).
O tema da transmissão da herança digital é bastante controverso no Brasil. A primeira corrente, defendida por Karina Fritz e Gustavo Tepedino, entende que a pessoa quando falece deixa acessáveis todo o seu acervo digital, independentemente de ser patrimonial ou existencial. De outro giro, a segunda corrente, defendida por Ana Carolina Brochado Teixeira e Livia Leal, entende que transmite-se apenas situações patrimoniais e aspectos patrimoniais das situações híbridas, como por exemplo, os direitos autorais (ESA OAB RSd, 2021).
Com relação à segunda corrente, importa destacar que a expectativa de privacidade mudou com a era tecnológica. Quando uma pessoa faz um cadastro em um site com login e senha, ela tem a expectativa de que ninguém acessará os dados lá inseridos. Caso ela queira que alguém tenha acesso, poderá fazer backup dos arquivos, anotar o login e senha, contratar empresa para que forneça as senhas de acesso aos familiares após a morte, incluir disposições em testamento ou outra forma de manifestação de vontade prevendo o destino desses conteúdos etc. (LEAL, 2018).
Como forma de ilustrar as duas correntes, no processo nº 1036531-51.2018.8.26.0224, que tramitou perante o Tribunal de Justiça de São Paulo, o juiz concedeu o acesso a todo o conteúdo dos e-mails do de cujus e não somente àqueles requeridos no pedido da inicial, alinhando-se à primeira corrente. De outro giro, no julgamento do recurso nº 1119688-66.2019.8.26.0100, que também tramitou perante o Tribunal de Justiça de São Paulo, os Desembargadores, por unanimidade, entenderam que a escolha pela exclusão do perfil do Facebook pela pessoa falecida deve prevalecer, principalmente por não ter o perfil nenhum conteúdo econômico, mas tão somente enfoque existencial, aplicando, assim, os argumentos da segunda corrente.
Além de existirem essas duas doutrinas sobre o presente tema, há, pelo menos, dois Projetos de Lei em trâmite no Congresso Nacional brasileiro que dizem respeito à herança digital.
O Projeto de Lei nº 5.820/2019, de autoria do Deputado Elias Vaz, dá nova redação ao art. 1.881 do Código Civil, dispondo sobre a herança digital no parágrafo quarto (BRASIL, 2019):
§4º Para a herança digital, entendendo-se essa como vídeos, fotos, livros, senhas de redes sociais, e outros elementos armazenados exclusivamente na rede mundial de computadores, em nuvem, o codicilo em vídeo dispensa a presença das testemunhas para sua validade.
Já o Projeto de Lei nº 1.144/2021, de autoria da Deputada Renata Abreu, dispõe sobre os dados pessoais inseridos na internet após a morte do usuário (BRASIL, 2021):
“Art. 1.791-A. Integram a herança os conteúdos e dados pessoais inseridos em aplicação da Internet de natureza econômica.
§ 1º Além de dados financeiros, os conteúdos e dados de que trata o caput abrangem, salvo manifestação do autor da herança em sentido contrário, perfis de redes sociais utilizados para fins econômicos, como os de divulgação de atividade científica, literária, artística ou empresária, desde que a transmissão seja compatível com os termos do contrato.
§ 2º Os dados pessoais constantes de contas públicas em redes sociais observarão o disposto em lei especial e no Capítulo II do Título I do Livro I da Parte Geral.
§ 3º Não se transmite aos herdeiros o conteúdo de mensagens privadas constantes de quaisquer espécies de aplicações de Internet, exceto se utilizadas com finalidade exclusivamente econômica.”
TEIXEIRA (ESA OAB RSe, 2021) entende que o PL nº 1.144/2021 é o mais completo, inclusive por especificar que somente serão objeto de herança os bens digitais que possuírem valor econômico, não permitindo que se entre na esfera dos direitos da personalidade (bens digitais existenciais) do de cujus.
Sabe-se que por meio de testamento é possível especificar o destino dos bens para depois da morte (art. 1.857, CC), sejam eles corpóreos ou incorpóreos, incluindo-se os bens digitais que, como já mencionado, encontra-se na categoria dos bens incorpóreos.
Nesse sentido, de maneira semelhante a um testamento, o Facebook e o Google já possuem uma espécie de “manifestação de vontade com efeitos post mortem”.
Na plataforma do Facebook há duas opções: a primeira, o usuário pode escolher um contato herdeiro, que administrará o perfil da pessoa falecida que foi transformado em memorial; a segunda, é a exclusão permanente da conta tão logo a plataforma seja informada que o usuário da página faleceu.
Na plataforma do Google, ao acessar o gerenciamento de contas e clicar em “dados e privacidade”, é possível que o usuário escolha o que acontecerá com a sua conta na seção “seu legado digital”. Nesta seção, há a possibilidade de definir quando sua conta do Google deverá ser considerada inativa; escolher quem notificar (até o limite de 10 pessoas) e o que compartilhar, caso a conta fique inativa, além da opção de exclusão da conta. No último caso, os contatos adicionados serão notificados e terão o prazo de três meses para fazer o download dos dados que o de cujus selecionou para serem compartilhados.
O tema da inclusão dos bens digitais no processo de inventário e a discussão sobre o Direito das Sucessões na era tecnológica revelam a complexidade desse assunto emergente. Embora não haja uma regulamentação específica no direito brasileiro para tratar da herança digital, já é possível identificar a existência de duas correntes de pensamento e a apresentação de dois Projetos de Lei, fatos esses que demonstram que ainda há muito debate a ser realizado sobre essa questão.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo traz considerações relevantes sobre a necessidade de uma regulamentação específica para lidar com os aspectos da herança digital. O Legislativo brasileiro já conferiu tutela jurídica adequada aos mais diversos interesses que emergem das novas relações sociais, como a aprovação do Marco Civil da Internet (MCI) e da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). No entanto, ainda existem questões a serem discutidas e definidas para garantir a adequada destinação e uso dos bens digitais após a morte do titular dos dados.
Um dos principais desafios é a avaliação do patrimônio digital, considerando diferentes tipos de contas e plataformas online, como redes sociais, e-mails e aplicações financeiras. Além disso, é necessário estabelecer parâmetros hermenêuticos para determinar o acesso aos conteúdos das contas, que pode variar entre questões patrimoniais e informações pessoais.
A privacidade de terceiros e a proteção dos dados do falecido são aspectos que devem ser considerados, pois podem influenciar a transmissão dos bens digitais no âmbito sucessório. Essa questão levanta a necessidade de equilibrar a tutela da privacidade com os direitos dos herdeiros. Além disso, é importante observar que diferentes aplicativos e provedores de serviços digitais podem possuir termos de uso específicos, o que pode gerar conflitos com a vontade expressa do titular da herança e com a ordem jurídica.
Outro ponto relevante é a tributação dos bens digitais no Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD). A avaliação e tributação adequadas desses ativos são desafios a serem enfrentados no contexto da herança digital.
Por fim, é necessário discutir se há diferença de tratamento entre contas de e-mail ou aplicativos profissionais e pessoais, considerando possíveis implicações legais e sucessórias.
Esses problemas apontados demonstram a complexidade do tema da herança digital e a importância de se estabelecer uma regulamentação específica que contemple todos esses aspectos, garantindo a proteção dos direitos dos envolvidos e a devida destinação dos bens digitais após o falecimento do titular.
REFERÊNCIAS
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