Resumo
Este artigo pretende fomentar o debate sobre os reflexos sociais negativos das políticas de proibição das drogas, começando pelos primeiros atos proibicionistas iniciados pelos Estados Unidos e seguido pelo resto do mundo. Em seguida são abordados temas que evidenciam o caráter racista e genocida da proibição das drogas, bem como seu disfarce de política de saúde pública através do governo Nixon onde as drogas viraram o “inimigo público número um”, causando um aumento no consumo e a superlotação das penitenciárias. Após falaremos sobre o impacto da lei antidrogas no Brasil, mais precisamente o seu artigo 33 da lei 11.343/2006 que não diferencia o usuário do traficante, sendo o maior problema da política de drogas. Por fim serão abordados o custo financeiro e social da política proibicionista no Brasil, bem como uma possível forma de lidar com um problema tão complexo quanto as drogas.
Palavras-chave: Direito penal, criminologia, política de drogas, tráfico de drogas.
Abstract
This article intends to stimulate debate about the negative social consequences of drug prohibition policies, beginning with the first prohibitionist acts initiated by the United States and followed by the rest of the world. Next, we address issues that show the racist and genocidal character of drug prohibition, as well as its disguise as a public health policy through the Nixon administration where drugs became "public enemy number one," causing an increase in consumption and overcrowding in prisons. After that we will speak about the impact of the anti-drug law in Brazil, more precisely Article 33 of Law 11.343/2006 that does not differentiate between users and traffickers, being the biggest problem of drug policy. Finally, the financial and social cost of prohibitionist policies in Brazil will be addressed, as well as a possible way to deal with a problem as complex as drugs.
Keywords: Criminal law, criminology, drug policy, drug trafficking.
Introdução
O presente trabalho pretende debater se o modelo proibicionista adotado pelo Brasil é, de fato, a solução mais adequada dentro das perspectivas de um Estado Democrático de Direito, tendo em vista que os reflexos trazidos pelo excesso de coerção estatal, além de não demonstrar nenhum resultado positivo, agem de forma completamente oposta através de um genocídio da população negra nas favelas, um aumento no poder bélico das facções criminosas ligadas ao comércio ilegal de entorpecentes e a superlotação nos presídios.
Em um primeiro momento, vamos analisar a primeira política de proibição em que se tem registro, que data o ano de 1914 nos Estados Unidos, onde o Estado inicia uma perseguição aos usuários e comerciantes de ópio e cocaína e seus reflexos negativos naquela sociedade, seguindo da Lei Seca que perdurou do ano de 1919 até 1933, onde ficou conhecida pelo aumento do número de mortos e um fortalecimento do crime organizado.
Seguindo esta linha do tempo, falaremos brevemente sobre o endurecimento da guerra as drogas, que se deu através do governo Nixon em 1971, que declarou as drogas como o “inimigo número um dos Estados Unidos” e levou ao encarceramento em massa da população de negros, latinos e trabalhadores de baixa classe social moradores dos subúrbios americanos.
Por fim, iniciaremos um debate sobre os efeitos e consequências da proibição das drogas no Brasil durante nas últimas décadas. Analisaremos o papel exageradamente punitivo do legislador para o comerciante de substâncias ditas ilícitas ao se comparar com um consumidor de drogas.
1 O início da proibição das drogas
A guerra as drogas é um fato historicamente recente, pois há cerca de pouco mais de duzentos anos atrás, não existia nenhuma política de caráter punitivo acerca dessas substâncias, não existia o encarceramento em massa de uma população minoritária e não se ouviam falar em organizações criminosas que conhecemos por narcotráfico. Sendo assim, se faz importante conhecermos o início dessa política proibicionista para trazermos um debate sobre a seriedade do assunto, pois consumidores ou não, há um impacto bastante severo em toda a sociedade.
Antes da primeira política de proibição americana, houve o primeiro tratado internacional de controle de drogas que data o ano de 1912 chamada “Convenção do Ópio”, assinado em Haia, onde diversos países, principalmente os Estados Unidos, solicitaram esforços em conjunto para controlar a produção, importação, venda, distribuição e exportação de morfina, cocaína e seus produtos derivados.
Em 1914, nos Estados Unidos, o número de pessoas viciadas em ópio e cocaína crescia ano a ano e, em virtude disso, o país decide restringir o consumo dessas substâncias pelo que é conhecida como a primeira política que se tem registro para colocar as drogas na ilegalidade, que foi o Harrison Narcotic Act, no mesmo ano.
Em princípio, o Harrison Narcotic Act não era proibicionista, pois, apenas colocou a cocaína e o ópio como substâncias de uso restrito através de prescrição médica, já em 1918 já se percebia o crescimento vertiginoso de um comércio ilegal de compra e distribuição de narcóticos, mesmo com a restrição parcial do ato.
Nos anos de 1919, foi ratificada a 18ª emenda à Constituição americana, que proibia a manufatura, venda e transporte de bebidas “intoxicantes”, que ficou conhecida como a Lei Seca. Como consequência da proibição, milhares de pessoas adquiriram cegueira, paralisia e muitas outras vieram a óbito, pois as bebidas feitas clandestinamente, chamadas de moonshine, conseguiam alcançar um teor alcoólico de até 80%. Como justificativa, a lei seca foi aprovada para diminuir a criminalidade e evitar acidentes de trânsito, fato que, novamente, trouxe um efeito contrário ao esperado, pois acabou eliminando muitos empregos legais, houve um aumento nos homicídios, no fortalecimento de organizações criminosas e uma despesa muito alta de dinheiro público para o mantenimento da lei, que foi revogada apenas em 1933.
A Lei Seca demonstrou que quanto maior forem os esforços para acabar com a distribuição de uma substância proibida, mais potente ela tende a se tornar, visto os moonshines com seu teor altíssimo de álcool. Os contrabandistas, por sua vez, se arriscavam na fronteira canadense e preferiam transportar substâncias mais concentradas, como, por exemplo, o whisky ao invés do vinho ou da cerveja.
Não à toa, houve um aumento significativo no consumo de destilados no país, pois os jovens achavam “charmoso” transgredir as leis e os adultos simplesmente se recusaram a parar de consumir bebida alcoólica. Em suma, a proibição aumentou o preço das bebidas alcoólicas, diminuiu sua qualidade, tornando o consumo muito mais arriscado e fortaleceu o lucro das organizações criminosas, ao custo de milhões de dólares oriundos de dinheiro público e principalmente com as vidas ceifadas pela violência.
O ópio e a cocaína foram totalmente criminalizados em 1920, por uma alteração no Harrison Narcotic Act, já a maconha passou a elencar o rol das substâncias mais perigosas como a cocaína e a heroína em 1937. Com o nascimento das primeiras leis de proibição em 1914, iniciou-se um ciclo de repressão, aumentando o preço das substâncias proibidas, tornando o tráfico de narcóticos uma atividade financeiramente viável, pois o consumo não parava de crescer, mesmo com as condenações com longas penas.
Na esfera internacional, a questão da proibição das drogas passou a receber uma legislação de caráter punitivo na Convenção de Genebra, ocorrida em 26 de junho de 1936, onde foi estabelecido um acordo com os países presentes que visava penalizar com prisão ou outras penas privativas de liberdade a fabricação e comercialização de diversos tipos de substâncias ilícitas.
A estigmatização, a exclusão social e o preconceito com o usuário já estavam formados na sociedade, sendo um embrião da mundialmente conhecida Guerra as drogas, política que se tornou ainda mais dura com o governo Nixon em 1971 sendo sobre essas consequências que falaremos daqui para a frente.
2 Drogas – O inimigo público número um.
Durante os anos de 1950 e 1960, Martin Luther King Jr e Malcon X foram expoentes da luta do movimento negro para aquisição de direitos civis e o fim da segregação racial nos Estados Unidos, que apesar de a escravidão americana ter sido abolida em 1865, ainda existiam leis estaduais de segregação racial. Somente em 1964, uma lei passou a proibir que brancos e negros fossem separados em escolas ou em transportes públicos, já as restrições ao direito ao voto, como, por exemplo, o nível de escolaridade foi removido apenas em 1965.
Isso demonstra uma sociedade extremamente racista, que se aproveitava da mão de obra das populações negras, mas sem inserir essas pessoas em uma convivência social plena, as isolando nos guetos, conforme diz o sociólogo Loïc Wacquant:
“O gueto desempenhou o papel de “prisão social”, garantindo, assim, o ostracismo social sistemático de afroamericanos e ao mesmo tempo permitindo a exploração da sua força de trabalho na cidade. Após a crise de debilitação do gueto, simbolizada pela grande onda de revoltas urbanas que varreram o país em meados da década de 1960, a prisão preencheu o espaço que se abriu, servindo como um “gueto” substituto para armazenar as parcelas do (sub)proletariado negro que têm sido marginalizadas pela transição à economia de serviços duplos e às políticas estatais de retração do welfare e de retirada das cidades. (WACQUANT, P.06, 2008)”
Em junho de 1971, o então presidente americano Richard Nixon, em um discurso, declarou que o abuso do uso de drogas ilegais era o “inimigo público número um”, dando início ao que hoje conhecemos como guerra as drogas, colocando os EUA em uma posição defensiva, enquanto país consumidor e os países latino-americanos como uma enorme ameaça a saúde pública americana, devido às características climáticas que proporcionaram o cultivo de substâncias tornadas recentemente ilícitas.
Essa conduta foi uma resposta a uma suposta crise de saúde pública envolvendo usuários de drogas, o que demonstrou não ser verdade, pois em uma entrevista a Harper’s Magazine, John Ehrlichman que foi chefe de política interna de Nixon declarou:
Sabíamos que não podíamos transformar em crime ser contra a guerra, muito menos ser negro, mas podíamos fazer o público associar os hippies à maconha e os negros à heroína e, em seguida, criminalizar a maconha e a heroína de maneira tão cruel que conseguiríamos acabar com a força dessas comunidades. Nós poderíamos prender seus líderes, invadir suas casas, acabar com suas reuniões, difamá-los dia após dia nos noticiários. Sabíamos que as drogas eram só uma desculpa? Claro que sabíamos.”
Assim percebemos que a guerra as drogas de Nixon, em nenhum momento teve seus esforços direcionados para um suposto bem-estar social e sim uma guerra aos negros e aos ativistas contrários à guerra do Vietnam, com o intuito de enfraquecer toda essa comunidade. Nunca foi uma guerra as drogas e sim uma guerra contra pessoas, sejam de cores, classes ou opiniões diferentes.
Segundo o departamento de justiça americano, em 2018, o sistema carcerário abrigava nada menos do que 1,46 milhão de pessoas em 1.833 prisões estaduais, 110 prisões federais, 1.772 centros de detenção juvenil e 3.134 cadeias locais, que por ano, custam aos cofres públicos a quantia de US$ 52 bilhões por ano.
Ainda analisando os dados carcerários dos Estados Unidos em 2018, os crimes envolvendo entorpecentes representam cerca de 47,1% de toda a população carcerária, sendo 46,3% de homens e 57,9% de mulheres.
No ano de 2020, 1.155,610 pessoas foram presas por conta de entorpecentes, destas, 1.001,913 por posse e 150,299 por tráfico, segundo o Federal Bureau of Investigation. Dentre os presos, 24% da população negra são encarcerados, apesar de representarem apenas 13% dos americanos, isso sabendo que brancos e negros vendem e consomem entorpecentes de uma forma similar.
A organização sem fins lucrativos Drug Policy Alliance estima que apenas os Estados Unidos gastam cerca de 51 bilhões de dólares anualmente na guerra contra as drogas. Felizmente a mentalidade mundial está começando a mudar, por exemplo, o estado de Nova Iorque que descriminalizou o uso da maconha para fins recreativos para maiores de 21 anos em 2021. Com isso, estima-se a descriminalização gere por volta de 1.3 bilhão de dólares em impostos e 76 mil empregos até 2027.
3 O início da repressão no Brasil
A maconha foi trazida ao Brasil pelos negros da África durante o período da escravidão e ficou conhecida como “fumo de Angola”, pois fazia uma parte importante da sua cultura. Seu consumo se popularizou bastante nos quilombos – núcleos de resistência formados por escravos fugidos – onde durante os momentos de tristeza, de saudade, de luto, se consumiam a chamada “liamba”. Em comunidades como o Quilombo dos Palmares, a maconha era consumida em cachimbos de barro, que levou a ser conhecida como “Pito do Pango”. O Rio de Janeiro, local com o maior número de escravos no mundo, foi o primeiro lugar do mundo a criminalizar a maconha, de forma racista, como veremos a seguir.
Para compreendermos as raízes da repressão das drogas no Brasil, precisamos retornar ao ano de 1807, onde a Coroa Portuguesa, fugindo das tropas de Napoleão, desembarcou no litoral brasileiro com cerca de 15 mil pessoas. No início, os portugueses se assustaram ao permanecer em uma cidade em que a maioria da população era formada por escravos. Com a finalidade de manter a ordem pública, em 1809 foi criada a Guarda Real de Polícia, cuja truculência era conhecida por reprimir festas com aguardente, música afro-brasileira e, obviamente, maconha. Um de seus membros, o policial Miguel Nunes Vidigal, ficou conhecido por prender 200 pessoas, entre homens, mulheres e crianças, de maioria escrava em um “batuque” em um quilombo no Morro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro.
Oficialmente criada em 1808 com a vinda da família real, a polícia brasileira nasceu sem nenhum tipo de limitação legal, tendo em vista que o primeiro código penal somente entrou em vigor em 1830. Se por um lado já se identificava um início na valoração aos Direitos Individuais na metrópole através do progresso do despotismo esclarecido, na colônia vigorava um aumento da fiscalização e repressão do Estado desde o início das reformas de Marquês de Pombal.
Antes do Código Criminal do Império (1830) vigorar, as penas para pequenos delitos variavam entre 100 e 300 açoites e eram aplicadas pela Guarda Real e pelo Intendente da polícia. Não era incomum o risco de o escravo morrer durante a execução dos castigos, dado a brutalidade das penas.
Em 1824 foi outorgada por Dom Pedro I a primeira Constituição do Brasil e nela já se encontravam princípios completamente antagônicos, pois se por um lado já se encontravam a primeira geração dos Direitos Humanos, no primeiro Código Criminal do Império (1830), estavam presentes a crueldade das penas de galés, conforme o artigo 44 do mesmo código:
A pena de galés sujeitará os réus a andarem com calceta no pé, e corrente de ferro, juntos ou separados, e a empregarem nos trabalhos públicos da província, onde tiver sido cometido o delito, à disposição do governo.
(CÓDIGO CRIMINAL, 1830).
O Brasil foi pioneiro na proibição de drogas em todo o planeta, pois a primeira política coercitiva nasceu em 4 de outubro de 1830, onde foi inserido o §7º nas Posturas da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, Seção Primeira Saúde Pública, Título 2º, sobre a Venda de Gêneros e Remédios, e sobre Boticário, que dizia o seguinte:
“É proibida a venda e o uso do “Pito do Pango”, bem como a conservação dele em casas públicas: os contraventores serão multados, a saber, o vendedor em 20$000, e os escravos, e mais pessoas que dele usarem, em 3 dias de cadeia.”
Não é preciso pensar muito para identificarmos o caráter racista da lei, que além de criminalizar a cultura da população negra escravizada, ainda oferecia penas distintas pelo mesmo “delito”. O vendedor do boticário recebia apenas uma multa, enquanto os escravos iam presos por três dias por consumir maconha.
A alta sociedade, embora tivessem apoiado a Independência do Brasil, por conta da preocupação com a paz social e a estabilidade, as elites brasileiras não desejavam romper com os preceitos da sociedade colonial, pois temiam a ameaça representada pela maioria da população composta de negros. Havia muitos conflitos em busca de uma suposta “ordem pública” nas ruas da Capital e para reforçar a repressão social, foi criada a organização paramilitar da Guarda Municipal e Nacional em 1831. Extintos os cargos de capitães-do-mato, seus representantes agora integravam as novas instituições oficiais, ganhando legitimidade estatal para oprimir a população negra e a sua cultura.
Apesar da Abolição da Escravatura em 1888 e a promulgação da primeira Constituição Republicana (1891) que introduziu o federalismo e o presidencialismo, através do sistema representativo de eleições diretas, não existia representatividade para as classes sociais mais carentes, o que garantiu que a repressão migrasse do período imperial para o republicano.
As ideias racistas de Cesare Lombroso (1835-1909) influenciaram fortemente o Direito Penal positivista de primeira geração, onde, segundo sua teoria eugênica, os criminosos possuíam características físicas propensas a cometer delitos. Sejam elas a cor da pele, formato do crânio, disposição das orelhas, resistência a dor etc. Não é necessário dizer que esse pensamento etnocêntrico “caiu como uma luva” para uma sociedade preconceituosa. Em sua pesquisa, Lombroso não conseguiu identificar as características em comum de um criminoso, mas sim um etiquetamento social daqueles que eram criminalizados que perduram até hoje.
4 Quanto custa proibir?
Com base neste contexto histórico, vamos debater os males causados no Brasil pelas práticas proibicionistas internacionais que começaram com os Estados Unidos e se espalharam pelo resto do mundo. No ano de 2014, aconteceu um marco histórico na Convenção das Nações Unidas em Viena, onde pela primeira vez não houve uma unanimidade em manter a política de proibição de drogas como a melhor escolha para redução de danos causados pelas drogas.
O Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) informou que, no ano de 2017, os estados de São Paulo e Rio de Janeiro gastaram, juntos, o equivalente a 5,2 bilhões de reais apenas para a aplicação da lei de drogas. Esse orçamento equivale a 12% de todas as despesas com justiça criminal, prisões e segurança pública nos dois estados. Esses valores, se fossem aplicados em benefício da sociedade, poderiam custear cerca de 77 Unidades de pronto atendimento, 4 hospitais de referência, a construção de 114 escolas estaduais ou o benefício de 138.000 famílias em programas de renda básica.
A venda de drogas é uma atividade extremamente importante das organizações criminosas, pois a proibição que a torna altamente lucrativa, afinal, se olharmos a maconha, por exemplo, não possui um alto custo de produção, mas conseguem valores muito atraentes financeiramente por conta do risco da proibição.
Os crimes relacionados ao tráfico de drogas também são os que mais causam encarceramento em massa. Segundo os dados das Informações do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, em São Paulo, de julho a dezembro de 2021, 37,97% dos homens cumprem pena por tráfico de drogas, já a com a população feminina, esse número sobe para 58,82%. Em números totais, 83.065 pessoas perderam a sua liberdade por conta de crimes relacionados as drogas. O custo médio do preso também precisa ser considerado. Ainda segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, cada preso, custa, em média aos cofres públicos, a quantia de R$ 2.688,68 mensais.
Segundo estudos do Instituto Sou da Paz e pelo Núcleo de Estudos de Violência da USP, revelam que cerca de o foco de 40% das ações policiais em São Paulo é para reprimir o usuário de drogas. Dentre os presos, a maioria não portava armas, não tinham antecedentes criminais, não estavam relacionados a crimes violentos e possuíam pequena quantidade de drogas.
Podemos apontar que a falta de objetividade do artigo 33 da lei 11.343/06 (Lei de Drogas) é a responsável pelo encarceramento em massa da população mais pobre, pois não deixa claro a diferença entre um usuário e um traficante, como podemos ver no texto do artigo:
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
Atualmente, em 2015, o Supremo Tribunal Federal iniciou a discussão sobre a descriminalização do porte de drogas para o uso pessoal, mas ainda não existe um critério objetivo para a distinção entre uso e tráfico.
A falta desse critério objetivo deixa o usuário a mercê de uma convicção pessoal dos executores da lei. Segundo o Instituto Sou da Paz, no estado de São Paulo, 50% das ocorrências policiais que envolvem entorpecentes (maconha) não apreendem mais do que 40 gramas das substâncias. Essas condenações seguem sempre um tenebroso padrão, e são, geralmente, negros, jovens, moradores de periferias e de baixa renda. Considerando os crimes hediondos (como estupro, tortura, sequestro), 54,01% dos presos cumprem pena pelo tráfico de drogas.
No Brasil, também não conseguimos desassociar a política de repressão às drogas com o racismo e preconceito. Segundo dados da Rede de Observatórios da Segurança, no Rio de Janeiro, 86% dos mortos em operações policiais no estado são de pessoas negras. As incursões policiais em comunidades de alta densidade populacional são feitas com o uso indiscriminado de força letal, através do emprego de fuzis, helicópteros e veículos blindados.
Em maio de 2021, o Rio de Janeiro presenciou a operação policial mais letal ocorrida na cidade. A chacina do Jacarezinho, que ocorreu na favela homônima e deixou 29 mortos durante o conflito com o tráfico de drogas local. Para a operação, foram empregados 2 helicópteros, 4 veículos blindados e cerca de 250 policiais. A comissão de direitos humanos da ALERJ fez inúmeras críticas a operação policial, pois “a polícia não pode combater o crime praticando crimes contra a humanidade”. Foram 29 pessoas mortas com a aprovação do Governador do Estado e a anuência do Ministério Público.
Logo após a chacina do Jacarezinho, mais um triste fato relacionado à política de repressão às drogas, que foi o assassinato da Kathleen Romeu e seu bebê ainda na barriga. Kathleen foi vítima de uma bala perdida durante uma troia policial, que significa quando os policiais ficam “escondidos” em casas de moradores, nas matas, estabelecimentos ou em qualquer outro local esperando alguém que pareça suspeito e atiram para matar sem nenhum tipo de advertência ou ordem de prisão, mesmo sendo ilegal, a prática ainda é bastante utilizada pelas forças policiais e como resultado temos a morte de uma futura mãe e seu filho em nome de uma “proteção” inexistente do Estado.
O tráfico expõe a fragilidade causada pela falta de atuação do Estado nas comunidades periféricas da cidade. Os jovens crescem sem nenhuma estrutura familiar, onde muitas das vezes não se conhece nem o pai. A mãe, por sua vez precisa sair de casa muito cedo e cumprir extensas horas de trabalho para sustentar seus filhos, que acabam por ficar sozinhos ou na companhia de um irmão mais velho. As ofertas de escolas e creches são insuficientes para atender toda a demanda das comunidades. São crianças que nascem na pobreza extrema e acabam enxergando no tráfico de drogas uma forma mais fácil de aliviar o sofrimento material em que foram expostas desde o nascimento.
Como o Estado pode exigir que esse mesmo jovem tenha uma conduta idêntica à de outro morador das áreas mais abastadas da cidade? O Estado não ofereceu saúde, educação ou condições de ter uma vida minimamente digna e agora a solução é uma operação policial? O remédio para conter a violência causada pela ausência do Estado é um genocídio da população periférica? Renato Russo do Legião Urbana em sua música “Mais do mesmo” relata o descaso com a população das favelas:
“Ei, menino branco, o que é que você faz aqui. Subindo o morro pra tentar se divertir(...) desses vinte anos nenhum foi feito pra mim(...)é mesmo, como vou crescer se nada cresce por aqui?"
Como dito anteriormente, o tráfico existe porque a demanda por essas substâncias. Aqui não nos cabe julgar o motivo em que cada pessoa possui ao buscar entorpecentes, mas o que não se pode aceitar a banalização da vida da população periférica por uma conduta genocida do Estado, como aconteceu com a jovem Kathleen Romeu e seu filho.
5 O perigo das drogas sintéticas e da dependência química
Não há como deixar de citar o aumento no consumo das drogas sintéticas, que aumenta exponencialmente no Brasil e no mundo. Ultimamente temos visto o aparecimento de drogas como a K2, conhecida como “maconha sintética” ou mesmo “spice”, que consiste em uma mistura de produtos químicos, juntamente com o THC sintético (versão industrializada do Tetrahidrocanabinol) que é pulverizada sobre qualquer erva seca. Esta droga foi projetada para se parecer com a maconha, mesmo não tendo nenhuma similaridade com a erva natural. Dentre seus efeitos potencialmente perigosos, podemos citar a paranoia, alucinações, convulsões, falência renal, acidente vascular encefálico, infarto agudo do miocárdio e até mesmo a morte. Durante a atuação da droga, o usuário experimenta o famoso “efeito zumbi”, onde já não há qualquer tipo de controle sob o sistema nervoso central, fazendo com que o dependente fique “vagando” pelas ruas sem conseguir se comunicar, perdendo o controle sobre a própria vida.
O próprio PCC, sigla que denomina a facção criminosa Primeiro Comando da Capital que, apesar de comercializar a “maconha sintética” vulgo K2, proibiu seu consumo nas imediações dos locais de venda, justamente por conta do estado deplorável que o usuário experimenta após o consumo da determinada substância, o que certamente iria atrair o movimento de ambulâncias e possíveis operações policiais, atrapalhando a comercialização de entorpecentes.
A cocaína também está sofrendo com a adulteração de seu composto químico, onde, além do talco, gesso, cimento e bicarbonato de sódio, são adicionadas substâncias como o fentanil, que é o mais poderoso anestésico utilizado em humanos, podendo ser cinquenta vezes mais forte que a heroína e até cem vezes mais potente que a morfina, fazendo que o usuário tenha uma ampliação dos efeitos e consequentemente aumentando o risco de overdose. Não existe uma margem segura para a administração de fentanil, pois doses de apenas 2mg já podem ocasionar uma parada respiratória fatal.
Podemos citar também o “krokodil”, droga derivada da desomorfina que começou a ser produzida na Rússia em meados da década de 90 e ficou conhecida como “heroína dos pobres” por conta do seu baixo custo. Além de euforia e demais efeitos similares da heroína, seus usuários desenvolvem necrose nos membros, alguns inclusive ficando com ossos expostos. Há um caso famoso de canibalismo em Miami nos Estados Unidos no ano de 2002, onde um usuário de “krokodil” atacou um morador de rua, comendo partes de seu rosto. O absurdo ato só cessou quando a policial disferiu um tiro letal no agressor.
É notório que os traficantes não se preocupam com a saúde de seus consumidores, cabendo ao Estado lidar com o problema da dependência química, que nas palavras do Dr. Drauzio Varella, podemos entender como causa:
A dependência química acontece porque determinadas substâncias acionam o sistema de recompensa do cérebro que vai, com o tempo, vai se interessando somente pela sensação de prazer provocada pela droga.
Existem diversas substâncias que causam dependência química, partindo de um inocente cafezinho ou mesmo o próprio cigarro vendido livremente em quase todas as padarias pelo Brasil, passando pela maconha, cocaína, remédios antidepressivos ou estimulantes como as populares Ritalina e Venvanse chamados de “drogas da inteligência”. Qualquer produto que ocasione a excitação do sistema nervoso central é capaz de desencadear um quadro de adicção em maior ou menor grau.
Para se ter uma ideia, o medicamento para tratamento do TDAH (Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) Venvanse, nome comercial da substância lisdexanfetamina possui uma similaridade molecular se compararmos com a da cocaína, com o agravante de induzir ao vício muito mais rapidamente e com maior intensidade do que acontece com a própria cocaína. Não é o intuito demonizar esse tipo de medicamento, pois existem inúmeros benefícios terapêuticos se for usada de forma correta e por profissional qualificado.
Tratar a dependência química pode ser algo extremamente complexo, pois envolve a atuação de equipes multidisciplinares de médicos, psicólogos e assistentes sociais, inclusive, em alguns casos há até a necessidade de internação para garantir a eficácia do tratamento.
Não é preciso refletir muito para chegar à conclusão que a maior parte do custo desse tipo de tratamento ficará por conta de o Estado, pelo fato da saúde ser um direito constitucional exposto no Art. 6, caput da Constituição Federal de 1988:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Por mais que seja um direito constitucional devidamente garantido, sabemos que o Estado não possui verba para sustentar esse tipo de gasto, o que corrobora com a necessidade de revermos o tipo de conduta adotada quando o assunto é a consequência do abuso de drogas, conforme veremos a seguir.
Considerações Finais
Precisamos tornar público o debate sobre drogas, afinal em um Estado democrático de direito, nenhum assunto pode ser considerado tabu e virar as costas para o problema não irá fazer com que ele desapareça. Infelizmente não existe solução fácil ou “mágica” quando se trata de drogas. Por mais de décadas o Brasil adota a mesma política proibicionista, com polícia, violência, mortes e inúmeras prisões.
Segundo um relatório do Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (UNODC), "A descriminalização do consumo de drogas pode ser uma forma eficaz de 'descongestionar' as prisões, redistribuir recursos para atribuí-los ao tratamento e facilitar a reabilitação". Isso demonstra uma mudança de mentalidade ao perceber que não é eficaz lançar os usuários, pequenos produtores e comerciantes para prisões que de nada servem.
Partindo deste princípio, a mentalidade de combate as drogas mudou e a única certeza que temos é que o que foi adotado até agora não funcionou. Não existe nenhum dado que comprove a eficácia da política de guerra as drogas, que conforme vimos, sempre possuiu o caráter racista e genocida, nunca visando o bem-estar social.
Com o debate feito a luz do dia, podemos começar a experimentar novos pontos de vista para tentar reduzir o impacto do modelo tradicional da guerra as drogas. Como opção, poderíamos tentar descriminalizando, regulando e taxando a venda e produção da maconha, já que de todas as drogas, é que possui o menor potencial lesivo, inclusive se compararmos com o álcool, vendido e incentivado em larga escala. A partir do resultado, poderíamos inserir outras demais drogas que possuam certa segurança em seu uso, um passo de cada vez. Obviamente as drogas sintéticas listadas no capítulo anterior ficariam de fora desta lista por conta de seu extremo poder de induzir ao vício e a facilidade de levar o usuário à morte.
Por mais “absurdo” que pareça, a regulamentação das drogas é muito menos danosa para a sociedade do que a proibição, pois com o consumo regulado, impostos serão gerados e poderão ser aplicados em políticas de desincentivo ao consumo de drogas, bem como o tratamento de dependentes químicos. Sem o emprego da violência das operações policiais, não existirão fatalidades como o da jovem Kathleen ou o genocídio da chacina do Jacarezinho.
A inserção de qualquer política que regulamenta a produção, distribuição e consumo de drogas deve ser feita com seriedade e profissionalismo, inclusive aproveitando os resultados dos países que já adotam tais políticas, como no caso de alguns países da Europa, Estados Unidos e Canadá.
A regulamentação de drogas ajudaria a gerar receita através dos impostos para tratar essas pessoas com hospitais, clínicas de reabilitação e escolas técnicas para uma ressocialização realmente efetiva. Conforme vimos anteriormente, os estados de São Paulo e Rio de Janeiro gastaram em 2017 a quantia de 5,2 bilhões de reais em uma política genocida que não trouxe nenhum benefício para a sociedade. Se esse valor fosse revertido para o tratamento de usuários, ressocialização e políticas de desincentivo ao uso de drogas, estaríamos vivendo em uma realidade muito mais humana. Segundo dados do INCA (Instituto Nacional do Câncer), o consumo de cigarros e outros derivados do tabaco caiu cerca de 65% nas últimas duas décadas, sem precisar de qualquer operação policial para proibir as pessoas de fumarem.
Entretanto, seria uma ingenuidade acreditar que um problema tão grave se resolveria “apenas” com a descriminalização das drogas, mas algo precisa ser feito. Não há mais espaço para justificarmos uma operação policial que deixa dezenas de mortos como se aquelas vidas não importassem e é uma obrigação do legislativo, portanto é um debate que se faz urgente, pois pessoas estão morrendo diariamente por conta de uma utopia punitiva que nunca funcionou em nenhum lugar do mundo.
Referências
BARROS, André. O Racismo e o pito de pango, Smoke Buddies, 24 de novembro de 2019. Disponível em: <https://smokebuddies.com.br/o-racismo-e-o-pito-do-pango/>. Acesso em: 01/12/2022.
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