Segundo Faria et al (1962), a palavra mutilação tem origem no latim, cujo significado está relacionado a ideia de “mutilar, cortar um membro” ou ainda “cortar, truncar ou abreviar palavras”. De acordo com Cukiert (2004), o objeto que recebe o corte, no interior do fenômeno psicopatológico denominado de automutilação, não é outro senão o próprio corpo do sujeito, “constituído e atravessado pela linguagem”. No Brasil, denomina-se automutilação “o comportamento de autolesão voluntária”, cujo intuito é realizar cortes no próprio corpo, valendo-se de instrumentos pontiagudos, incendiários ou cortantes, sem a intenção propriamente de suicídio (DALGALARRONDO, 2008).
No Seminário 10, Lacan (2005) expõe o tema da automutilação, ensinando que a existência da angústia está relacionada ao fato de que toda demanda traz sempre algo de enganoso em relação ao objeto de desejo. Isso explica a faceta angustiante daquilo que dá a essa falsa demanda uma resposta crítica. Nesse sentido, a automutilação representa uma resposta a um desejo imposto pela sociedade, o qual diante da impossibilidade de ser atingido produz conflitos intrapsíquicos.
Logo, falar da automutilação não é tarefa fácil, tendo em vista que abrange uma investigação clínica ampla sobre seus sintomas psíquicos. Há um desafio, na perspectiva da intervenção psicoterapêutica, eis que não se deve analisar tão somente o fenômeno sintomático. Mas é necessário analisar ainda as forças impulsivas que conduzem o indivíduo a realização do ato sintomático (REIS). Nesse aspecto, o indivíduo deve compreender o que está fazendo, a fim de ser capaz de estruturar sua fantasia fundamental e captar o porquê anseia aquele determinado objeto ou padrão (GUEGUEN, 1997). Lacan chama esse processo de travessia da fantasia (LACAN, 2005).
Na prática clínica com adolescentes, os psicoterapeutas em regra se deparam com expressões que desvendam o verdadeiro sofrimento:
"Foi como se de repente tivesse uma enorme dor batendo às portas de minha consciência; um sentimento arrebatador, extremo, e sabia que se deixasse, eu entraria em colapso. E então, justamente quando pensava que não tinha controle sobre o que aconteceria, eu percebi duas coisas: primeiro que a dor emocional estava desaparecendo e que, não ia consumir-se, e o segundo era que eu estava pregando a chave de fenda, e estava literalmente me atacando, e que a dor física que eu estava produzindo era melhor do que qualquer um dos sedativos que me deram no hospital" (HOBAN, 2014).
Essas palavras revelam o fenômeno em que a dor física diminui a dor emocional, de forma que aquela seja preferível a esta. Desse modo, a automutilação torna-se uma fuga ao sofrimento psíquico do indivíduo. Logo, o fenômeno volta a se repetir com certa freqüência, antes da intervenção psicoterapêutica. Notamos, portanto, que não é o corpo que o indivíduo deseja lesionar. Mas seu verdadeiro intuito é aliviar a dor de sua alma. Na prática, o sofrimento demonstra a fragilidade do paciente, devendo, assim, ser considerado seriamente. Os cortes físicos possuem significado que ultrapassam o campo físico, pois representam as marcas que estão no psiquismo.
Existe “um mal-estar atormentador” instalado no interior do sujeito contemporâneo (FREUD, 1996). Esse fenômeno gera diversos sintomas, os quais podem culminar em automutilação não suicida ou até em suicídio. Verifica-se aqui uma propensão a comportamentos repetitivos, no anseio desesperado de se libertar das dores psíquicas, através das dores provocadas pelos cortes físicos. Nesse aspecto, quando o indivíduo chega à automutilação significa que cortes não são mais suficientes para “aliviar” suas dores psíquicas. Dois, portanto, se tornam os corpos que sofrem as agressões, um real e outro imaginário. Segundo Forbes (2004), enquanto Körper é o corpo material, mensurável, com que lida o médico, Leib é o corpo-corpo, vida, que não se mede no espaço cartesiano e com o qual, aliás, não podemos operar através de instrumento algum. Nenhum metro se oferece entre nós e o Leib. O Leib é determinante do Körper.
Os casos de automutilação têm surgido com frequência nos consultórios e escolas, tendo como público mais afetado os adolescentes. Muitos pacientes que chegam a quadros de automutilação são encaminhados para tratamento psiquiátrico medicamentoso, tendo em vista que a automutilação também se caracteriza como algum transtorno mental. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) adota a automutilação como um transtorno em si. Nesse aspecto, o sintoma deve ser tratado a fim de que o paciente retorne ao seu estado de saúde anterior.
Utilizado ao redor do mundo por clínicos, pesquisadores e pela indústria farmacêutica, o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) ou Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais ou Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais é um manual para profissionais da área da saúde mental que lista diferentes categorias de transtornos mentais e critérios para diagnosticá-los, de acordo com a Associação Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association - APA). No DSM-5, a automutilação é destacada como um transtorno específico no Transtorno de Escoriação (698.4; L98.1), haja vista ter por critérios: “beliscar a pele recorrentemente, causando lesões; tentativas repetidas de frear esse comportamento; o ato de se beliscar provocando sofrimento significativo ou prejuízo no funcionamento social ou profissional” (American Psychiatry Association, 2014).
A automutilação também é caracterizada como um sintoma do Transtono de Personalidade Bordeline (301.83; F60.3), fazendo parte para os critérios diagnósticos para esse transtorno “a recorrência de comportamento, gestos ou ameaças suicidas ou comportamento automutilante” (American Psychiatry Association, 2014). Na descrição das características desse transtorno, tem-se que:
"As pessoas com Transtorno de Personalidade Borderline apresentam, de maneira recorrente, comportamento, gestos ou ameaças suicidas ou comportamento automutilante (Critério 5). O suicídio completado ocorre em 8 a 10% desses indivíduos, e os atos de automutilação (por ex., cortes ou queimaduras), ameaças e tentativas de suicídio são muito comuns [...] A automutilação pode ocorrer durante experiências dissociativas e frequentemente traz alívio pela reafirmação da capacidade de sentir ou pela expiação do sentimento de ser mau." (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. 2013).
A automutilação também é citada como Amnésia Dissociativa – 300.12 (F44.0). Em suas características, temos: “histórias de trauma, abusos na infância e vitimização; alguns pacientes relatam flashbacks dissociativos; muitos possuem história de automutilação, tentativas de suicídio e comportamentos de alto risco" (American Psychiatry Association, 2014). A automutilação ainda é verificada em Transtorno Dissociativo de Identidade (300.14; F44.81), incluindo depressão, abuso de substâncias e ansiedade. Nesse quadro, o suicídio é visto com frequência (American Psychiatry Association, 2014).
Na seara do Direito, o crime de indução à automutilação é citado da seguinte forma, na Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal de 1940:
"Ao ser configurado o crime de se induzir, instigar ou auxiliar o suicídio, o projeto vem conter inovações. Faz-se punível o fato mesmo que seja frustrado o suicídio, desde que venha resultar lesão corporal grave ao que buscou se matar; e pena cominada se aplicará em dobro caso o crime obedeça a motivo egoístico ou se for praticado contra menor ou sujeito que, por quaisquer outras causas, tenha diminuída a habilidade de resistência" (Brasil, 2012).
Ademais, nas exposições de razões da Parte Especial do anteprojeto do novo Código Penal, justifica-se a permanência do delito no vindouro Diploma Legal, conforme o exposto:
"Não se faz crime o suicídio, e sim o auxílio a ele prestado. Nesse crime, entende-se que os atos executórios de matar se auto infringem. A conduta criminosa se refere à indução, instigação e auxílio. A tipificação vem se limitar ao resultado morte, caso seja produzido, bem como às lesões corporais graves, em quaisquer de suas figuras. Caso não ocorram morte nem lesões, o fato se faz atípico, expressando menção de que não há punição a respeito da tentativa, uma vez que tais resultados não ocorram. No que se refere ao texto atual, a pena que advém das lesões graves aumenta-se, de um a três para um a quatro. É sugerido, ainda, que se faça a retirada do inciso II do parágrafo único do vigente artigo 122 do Código Penal: o aumento da pena caso a vítima seja menor ou se tiver diminuída, por diversas causas, a habilidade de resistência. Em tais casos, não há suicídio, e sim homicídio." (BRASIL, 2012).
Para Pablo Alflen, ao tipificar o delito de induzimento, instigação ou auxílio à automutilação no art. 122 do Código Penal, o legislador brasileiro criou duas formas qualificadas nos parágrafos 1º e 2º do artigo, quais sejam: o delito qualificado pelo resultado lesões graves e gravíssimas e o delito qualificado pelo resultado morte. Nesse sentido, o legislador não estabeleceu, apesar disso, limites precisos entre a forma simples e a forma qualificada do delito. Essa ausência de limites, entretanto, pode levar ao tratamento inadequado de ambas as formas, em casos concretos, isto é, casos que deveriam ser compreendidos pela forma simples podem acabar sendo abarcados pela forma qualificada, devendo, portanto, esse défice ser sanado pelo legislador. Para o autor, esses limites podem ser definidos dogmaticamente através de minucioso exame dos elementos constitutivos do tipo (ALFLEN, 2020).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALFLEN, Pablo. Delito de induzimento, instigação ou auxilio à automutilação: o alcance do tipo fundamental e sua delimitação para com a forma qualificada pelo resultado lesões graves e gravíssimas. Revista de Estudos Criminais. Instituto Transdiciplinar de Estudos Criminais. 2020.
AMERICAN PSYCHIATRY ASSOCIATION (APA). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 5a ed. Porto Alegre, RS: Artmed. 2014.
BRASIL. Código Penal Brasileiro. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm.
CAPEZ, Fernando; PRADO, Stela. Código penal comentado. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007.
______. Curso de direito penal. Parte especial. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
CUKIERT, Michele. Considerações sobre corpo e linguagem na clínica e na teoria lacaniana. Psicologia USP, 2004
DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. Porto Alegre: Artmed, 2008.
FARIA, Ernesto (Org). Dicionário Escolar Latino-Português. Brasília: Campanha Nacional de Material de Ensino, 1962.
FORBES, Jorge. As exposições clínicas: além das teorias e dos protocolos, a diferença clínica é dada por quem trata. Seminário de Jorge Forbes, 2004.
FREUD, S. (1906 [1905]). Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GUEGUEN, Pierre-Gilles. A transferência como logro. In: FELDSTEIN, Richard; FINK, Bruce; JAANUS, Maire (orgs.). Para ler o Seminário 11 de Lacan: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.