A nova lei de abuso de autoridade e a atuação dos agentes públicos diante dos tipos penais abertos e vagos

27/06/2023 às 10:48

Resumo:


  • A nova Lei de Abuso de Autoridade, Lei nº 13.869/2019, entrou em vigor em 03 de janeiro de 2020, revogando a antiga Lei nº 4.898/1965.

  • A nova legislação trouxe mudanças significativas, tipificando crimes funcionais cometidos por agentes públicos e exigindo a presença de dolo específico nas condutas para configurar o abuso de autoridade.

  • A nova Lei de Abuso de Autoridade tem sido alvo de críticas por sua redação vaga e imprecisa, além de ter sido aprovada de forma acelerada, levantando questionamentos sobre sua real finalidade e impacto na atuação dos agentes públicos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

RESUMO:

Este artigo tem como objetivo principal analisar a Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b), que em seu texto original retrata sobre os crimes de abuso de autoridade, bem como analisar a atuação dos agentes públicos diante dos tipos penais abertos e vagos contemplados na referida lei. Dispõem-se, em perspectiva, as consequências que a nova lei traz, que impactam na atividade dos que atuam na persecução penal, no primeiro momento no quesito investigativo realizado pelo delegado de polícia, no combate à criminalidade e a corrupção, bem como suas ações nas operações policiais. Vale destacar os exemplos de casos de abuso de autoridade que acontecem em quase todas as localidades brasileiras, bem como apontam autores que discorrem em uma vasta literatura sobre o assunto em questão, além de pontuar e comparar a antiga Lei de Abuso de Autoridade com a nova Lei. Observa-se ainda as condutas que foram acrescentadas pela nova Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b) como crime de abuso de autoridade, por exemplo, a divulgação de imagens de presos.

Palavras-chave: Abuso de autoridade. Combate à criminalidade. Ética na aplicabilidade da Lei. Quebra da Lei.

ABSTRACT:

The main objective of this article is to analyze Law nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b), which in its original text reports on crimes of abuse of authority, and to analyze the performances of public agents in the face of open and vague criminal types contemplated in the referred Law. It presents, in perspective, the consequences that the new Law brings, which impact in the activity those who are current in criminal prosecution, at first in the investigative aspect carried out by the police chief, in the fight against crime and corruption, as well as his actions in police operations. It is worth highlighting the examples of cases of abuse of authority, which occur in almost all Brazilian locations, as well as point out authors who discuss a vast literature on the subject in question, in addition to punctuating and comparing the old Law of Abuse of Authority with the new law. It is also observed the behaviors that were added by the new Law nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b) as a crime of abuse of authority, for example, the dissemination of images of prisoners.

Keywords: Abuse of authority. Fight crime. Ethics in the applicability of the Law. Breaking the Law.

1. INTRODUÇÃO

Este artigo tem o foco principal na análise crítica e estudo da criação da nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869 de 5 de setembro de 2019) que passou a vigorar no dia 03 de janeiro de 2020, após discorrer o prazo legal dos 120 dias da vacatio legis. A atual lei revogou a antiga Lei de Abuso de Autoridade (Lei 4.898/65) e também trouxe algumas modificações relevantes na Lei de Prisão Temporária, na Lei das Interceptações Telefônicas, no Código Penal e no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil.

O embrião do seu surgimento foi o PLS nº 85/2017, apresentado pelo Senador Randolfe Rodrigues, que foi aprovado pelo Senado em 26/04/2017 em carater urgente. Sem completar um ano de aprovação pelo Senado, seguiu-se para a Assembleia Legislativa, recebendo a nova designação de PL nº 7596/2017.

O referido texto da nova Lei de abuso de Autoridade apresenta alguns tipos penais vagos e imprecisos, o que faz necessário repensar e refletir sobre a atuação dos agentes públicos que poderá ser limitada ou engessada diante dela na prática. Haveria limitações de atuação de autoridades e dos agentes públicos diante da possibilidade de criminalização por tipos penais vagos descritos na Nova Lei de Abuso de Autoridade. Diante dessas limitações, a problemática que se quer esclarecer neste artigo diz respeito ao modo como a atuação destes agentes públicos pode ser influenciada e afetada pelo entendimento e interpretação destes artigos abertos e vagos a partir da vigência da nova Lei de Abuso de Autoridade.

A princípio considera-se o processo de criação em etapas de debate e discussão até ser finalmente aprovada pelo Congresso Nacional. A aprovação ocorreu rapidamente após curto período de discussão e debates nas duas Casas Legislativas, sendo apontada por muitos juristas e operadores do direito, bem como por boa parcela da sociedade cível, que a sua criação possa ter atendido a algum interesse escuso de grupos políticos. Portanto, as verdadeiras intenções da sua criação teriam o escopo de intimidar promotores públicos, juízes ou delegados e assim estancar ou comprometer investigações nos quais muitos políticos são alvos.

Destarte passa-se a analisar o contexto de surgimento e as principais distinções e traços comparativos das duas leis, a revogada (Lei n° 4.898/1965) e a nova (Lei n° 13.869/2019).

O que difere ou assemelha ambas as leis no que concerne às autoridades e sansões estabelecidos?

No final pretende-se analisar, na teoria, se de fato a nova Lei de Abuso de Autoridade terá uma aplicação prática efetiva, sendo realmente eficiente para combater e coibir abusos, ou será sua aplicação apenas simbólica, sendo que sua existência serviria apenas como meio intimidador. Como a nova Lei de Abuso de Autoridade possui vários tipos penais abertos e imprecisos, possibilitando várias interpretações por parte de magistrados, seriam um ponto primordial para influenciar na atuação dos agentes públicos, quando na realização de seus trabalhos, sobretudo os que atuarem na persecução penal, como policiais, delegados e promotores públicos. Estes tipos penais são abordados e analisados neste trabalho e busca-se também uma análise sobre a aplicação prática da Lei 13.869/19. Em resumo, trata-se de uma análise quanto a estas questões baseadas em estudos de doutrinas, jurisprudências e artigos publicados.

A Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b) surgiu com o intuito de modernizar e representar novas condutas que caracterizam o crime de abuso de autoridade. Esse foi o objetivo do legislador ao redigir a nova Lei de Abuso de Autoridade, que tem como tentativa de corrigir erros e omissões das legislações anteriores.

Tal legislação discorre sobre crimes de abuso de autoridade, típicos daqueles cometidos por agente público, que, no exercício de suas funções ou a subterfúgio de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído. Após entrar em vigor, apareceram vários questionamentos da comunidade jurídica, uma mistura de preocupação e insegurança, analisando algumas das escolhas do legislador, que ensejaram na problematização da nova Lei de Abuso de Autoridade.

A nova Lei de Abuso de Autoridade é vista por muitos intérpretes, doutrinadores, agentes públicos e pessoas da sociedade civil como um meio de coibir a atuação dos agentes responsáveis, em especial, pelo combate à corrupção, já que passou a criminalizar algumas condutas relacionadas à Operação Lava Jato, afetando diretamente investigações e julgamentos (BRASILEIRO, 2020).

Sendo assim, o presente artigo pretende tratar as novas condutas que abrangem e configuram o crime de abuso de autoridade inseridas pela Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2021), além de fazer a associação com a antiga Lei nº 4.898/1965 (BRASIL, 2021), recentemente revogada.

Com isso, faz-se necessário iniciar o contexto histórico que envolve o surgimento e a vigência da lei, além de apontar os acontecimentos marcantes que a desencadearam. Em suma, se faz necessário examinar a constitucionalidade da lei. Resumindo, é necessário realizar uma análise comparativa entre as duas Leis de Abuso de Autoridade, a antiga (Lei nº 4.898/1965) e a nova (Lei nº 13.869/2019), associadas aos desdobramentos práticos na atuação dos que atuam na persecução penal.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1. MARCO LEGAL

A criação da Nova Lei de Abuso de Autoridade alterou diversos pontos legislativos e introduziu novos tipos penais, bem como trouxe um novo marco legal para a atuação do poder público, com ênfase para as instituições de polícia judiciária nas áreas de segurança pública e justiça criminal. A referida lei incluiu 23 novas infrações penais em seu escopo e ainda insere o artigo 7º- B no Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/1994), criminalizando a violação de algumas prerrogativas advocatícias. Incorpora algumas alterações pontuais em algumas leis extravagantes. Para Cogan e da Silva (2020) a nova Lei de Abuso de Autoridade nasceu de espírito de emulação, e que os principais problemas do povo não estão aí contemplados.

É público e notório que a nova Lei começou a ganhar força em resposta de setores e grupos insatisfeitos com investigações e ações penais que atingiam altos escalões político-sociais do Brasil, sendo fruto de dois anos de debates na sociedade, na Câmara de Deputados e no Senado Federal. Muitos dos seus desafetos e críticos consideram que a Nova Lei de Abuso de Autoridade tem um extenso rol de tipos abertos e indeterminados que podem apontar afronta ao princípio da legalidade (LESSA; MORAES, 2020).

“A Lei contempla comandos vagos e imprecisos que prejudicam a verdadeira compreensão prévia do que foi criminalizado, colocando a autoridade pública sujeita, na maioria das vezes, à forma de pensar e interpretar do magistrado que vai julgá-lo” (PINHEIRO; CAVALCANTI; BRANCO; 2020, p. 16). É o que os autores chamam de indevida delegação legislativa em branco, incompatível com o princípio da legalidade penal. Citam os referidos autores alguns artigos que incidem nesses graves vícios de inconstitucionalidade:

Artigo 9º, que diz ser crime “decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”; artigo 20, cuja redação criminaliza “impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com seu advogado”; artigo 25, segundo o qual é crime “proceder à obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito.”; artigo 27, segundo o qual é crime “requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa.”; artigo 30, cuja redação criminaliza a ação de “dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente.”; artigo 31, caput, que penaliza aconduta de “estender injustificadamente a investigação, procrastinando-a em prejuízo do investigado ou fiscalizado.”; artigo 36, segundo o qual configura crime de abuso de autoridade “decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi- la.”. (PINHEIRO; CAVALCANTI; BRANCO; 2020, p. 16 a 21 )

Aponta-se que o trabalho de pesquisa contido neste artigo abordará estes tipos penais que resumem o quanto é vago a interpretação, e as suas implicações para que os agentes públicos (delegados, promotores, autoridades judiciárias e policiais) possam atuar, considerando-se a possibilidade de responsabilização e criminalização em face das múltiplas interpretações que estes tipos penais podem trazer aos magistrados. A insegurança juridíca não está somente no judiciário, nem mesmo para os agentes públicos, mas também para a sociedade, que teme uma omissão por parte dos agentes públicos por medo de agirem fora do que rege a lei, ou sofrerem punições por causa disso.

Leitão Filho e Oliveira (2020) não veem com bons olhos muitos dos dispositivos da nova lei, onde se constata um objetivo nítido-velado de coagir os órgãos repressores da criminalidade organizada, sendo um tanto lacunosa e imprecisa, com dispositivos vagos e abertos por demais sem qualquer técnica jurídica a esmerar pelo princípio da taxatividade.

A nova lei não foi vista com bons olhos e muito menos bem recebida pelos agentes públicos, o que diz respeito aos antecedentes da sua aprovação e a alguns tipos penais nela incluídos, ambos relacionados com a reação da classe política ao contínuo trabalho de combate à criminalidade do colarinho branco e organizações criminosas instaladas no âmbito do Estado (SOUZA; SILVA, 2020). Os autores também concordam que a Lei 13.869/19 comete os mesmos erros da lei anterior revogada, ao trazer tipos penais abertos que desafiam o princípio da taxatividade.

Para Lima (2020), a aprovação da Lei de Abuso de Autoridade pelo Congresso Nacional não teve unicamente ou exclusivamente como objetivo o interesse em coibir o abuso de autoridade. É fato que ao passo em que o ordenamento jurídico confere poderes, também deve impor deveres aos agentes públicos, que atuam em nome do poder público.

De fato a Lei anterior revogada (Lei nº 4.898/65) já não era mais compatível com a gravidade das condutas, tratando-as como infrações de menor potencial ofensivo, da competência dos Juizados Especiais Criminais. Vale citar que a pena privativa de liberdade cominada aos crimes de abuso de autoridade na antiga lei era a detenção por dez dias até seis meses (art. 6º, § 3º, alínea “b”). A prescrição da pretensão punitiva ocorria em apenas três anos, de acordo com o art. 109, Inciso VI, do Código Penal, redação dada pela Lei nº 12.234/10.

Portanto, conforme o referido autor, a nova Lei de Abuso de Autoridade não foi aprovada pelo Congresso com o intuito de modificar tais situações, mas para coibir o exercício dos órgãos de soberania. Uma resposta privada contra os órgãos de persecução penal, fiscal e administrativa. Tanto é que, corroborando com os autores mencionados anteriormente, a Lei 13.869/19 surge viciada por diversos tipos penais abertos e vagos, de duvidosa constitucionalidade, o que transforma o exercício de qualquer função pública numa atividade de risco, pois os agentes públicos tendem a se abster de exercer sua função regular para não serem objetos de algumas representações criminais.

Lima (2020), notadamente, acresce que não há que se temer a nova Lei e nem permitir que ela sirva de obstáculo ao escorreito exercício de toda e qualquer função pública. O que se deve fazer é buscar o equilíbrio e sensatez na interpretação dos diversos dispositivos legais, e não permitir que os tipos penais abertos e indeterminados sejam utilizados como instrumento de constrangimento ilegal contra agentes públicos no exercício regular de suas funções. Dessa forma, não permitindo que o revanchismo do Congresso Nacional atinja seu desiderato.

A grande crítica dessa Lei, feita por agentes públicos, representantes do Ministério Público e da Magistratura, reside em suposto ataque parlamentar a essas Instituições, criminalizando boa parte de sua atuação cotidiana, como forma de retaliação política pela prisão de grande parte do Parlamento, na Operação Lava Jato. “A nova Lei é necessária, pois os agentes públicos se valem de seus cargos, funções e mandatos eletivos para constranger ilegalmente os cidadãos, por motivos pessoais, egoísticos, por mero capricho, para prejudicar terceiros ou, ainda, para benefício próprio ou alheio” (MARQUES; MARQUES; 2020, p. 13).

A nova Lei de Abuso de Autoridade não foi muito bem construída e traz zonas nebulosas de ausência de taxatividade. Essa carência de taxatividade poderá, em tese, na prática, dificultar o trabalho da persecução penal para investigar, processar e punir os agentes públicos. Acreditam que as verdadeiras intenções para coibirem as práticas de abuso são boas, porém sob a conduta técnica terá pouca efetividade. Não apresenta um procedimento especial para os crimes nela previstos, apenas indicando a aplicação natural do Código de Processo Penal e da Lei 9.099/95 naquilo que couber, ou seja, de acordo com as regras desses dois diplomas legais. (MARQUES; MARQUES; 2020, p. 21).

Já no artigo 1º, a nova Lei de Abuso de Autoridade dispõe que todas as condutas descritas em seu texto constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas com a finalidade específica de prejudicar outrem, beneficiar a si mesmo ou a terceiro, por mero capricho ou satisfação pessoal. Dessa forma, todos os crimes previstos nos dispositivos da nova lei estão atrelados a estes cinco dolos específicos. Uma vez não demonstrados no caso concreto, a conduta é atípica. Os autores questionam sobre os motivos de se pautar, em regime de urgência e com votação simbólica, não nominal, um tema tão importante e sensível, após ter ficado dois anos parado no Congresso Nacional, pois que no dia 14 de agosto, foi aprovado o requerimento de urgência e, nesta mesma data, o Plenário da Câmara dos Deputados votou a matéria através de procedimento simbólico, sequer possibilitando aos deputados federais a votação nominal do tema ou a apresentação de emendas ou críticas. O texto foi elaborado em mandato anterior do Congresso Nacional e não pela maioria dos parlamentares da nova legislatura.

Segundo Marques e Marques (2020) a referida Lei foi feita para não funcionar, sendo a mesma simbólica. Todos os crimes da lei são de ação penal pública incondicionada, ou seja, dependem da análise do Ministério Público para verificar se o agente público agiu, ou não, com os dolos específicos do art. 1º, ou seja: – prejudicar outrem; – beneficiar a si mesmo; – beneficiar terceiro; – por mero capricho; ou – por satisfação pessoal. Segundo eles é muito difícil comprovar tais intenções no plano concreto, pois existe a presunção de que os agentes públicos só podem fazer o que a lei determina (seus atos possuem fé pública). Junto com a dificuldade em comprovar os dolos específicos, há ainda as reais e boas intenções por trás de seus atos (segurança pública, fazer justiça ou busca pela verdade processual). A intenção que move o agente para a prática do ato habita o plano subjetivo, sendo de complexa comprovação. Amiúde a lei não foi feita para prender ninguém, pois em todos os crimes, a pena mínima é igual ou inferior a um ano, o que viabiliza, preenchidos os requisitos do art. 89 da Lei 9.099/95, a suspensão condicional do processo que, se não revogada e cumprida na íntegra, extingue a punibilidade do agente, que continuará primário de bons antecedentes. Se não for hipótese de sursis processual, o agente será processado criminalmente. Nenhuma pena dos novos tipos penais é superior a quatro anos e, sendo o agente primário, será proibido prendê-lo preventivamente, nos termos do art. 313, I, do CPP. Se não será preso durante o processo, também não será preso em relação à pena privativa de liberdade. Os crimes possuem pena máxima de quatro anos, ou seja, todos os agentes condenados, se primários, receberão o regime aberto de cumprimento de pena. Ou seja, nada de prisão.

Greco e Cunha (2020) afirmam que as principais críticas que a lei anterior revogada (Lei 4.898/65) sofria, era a de que o legislador, ao descrever os crimes, os fez de forma vaga e imprecisa, com conteúdo indeterminado, abrangendo as mais diversas formas de abuso de autoridade e ferindo o princípio da taxatividade. Ressaltam os autores que o mesmo ocorreu com a nova Lei 13.869/19, usando o legislador a mesma técnica legislativa em muitos dos seus tipos penais.

Nucci (2020) ao comparar os artigos da Lei 4.898/65 com os da Lei 13.869/2019, diz que a lei revogada tem sido inoperante há muitos anos e que a Lei nova surgiu para blindar, ainda mais, o agente público e o operador do direito. O que era inútil, pois a Lei 4.898/65 não era utilizada, passa a ser inútil e, mais, produtora de uma blindagem jamais vista em qualquer outra lei penal aos agentes da autoridade.

Desta feita chega-se à constatação de que há uma unanimidade entre autores sobre as verdadeiras intenções e objetivos acerca da criação da novel legislação e que de fato há muitos artigos em seu corpo que são abertos e imprecisos deixando margens para suscetíveis ou diferentes interpretações por parte do magistrado. Assim, o presente trabalho abordará mais detidamente e com maior rigor de detalhes as implicações destes tipos penais vagos e abertos para o escorreito exercício do trabalho dos agentes públicos diante do risco de criminalização e responsabilização que poderão sofrer.

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2.2. SURGIMENTO E VIGÊNCIA DA LEI

A Ditadura Militar no Brasil deu-se no início no ano de 1964. Entre os dias 31 de março e 9 de abril desse ano, houve a tomada de poder, contrapondo a ordem existente no país e dando início ao regime ditatorial que se estendeu no Brasil de 1964 até 1985, caracterizando um momento de muitas divergências na nossa História. Considerando este cenário, em 1964, o presidente então empossado, João Goulart, foi destituído de seu cargo (HISTÓRIA DO MUNDO, s.n.).

Então, surge a primeira Lei de Abuso de Autoridade. Em 09 de novembro de 1965 foi sancionada pelo então Presidente da República Humberto de Alencar Castello Branco, a Lei nº 4.898/1965 (BRASIL, 2020), tendo como finalidade prevenir os abusos de autoridade, principalmente por policiais no exercício de sua função, na qual os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos eram usurpados constantemente. É muito importante e unânime a existência, no ordenamento jurídico, de uma lei para regulamentar e quando necessário punir o abuso de autoridade. Afinal, todo aquele que tem poder tende a abusar dele, por isso a necessidade desse mecanismo de controle.

A legislação deve conferir não apenas poderes, mas também deveres àqueles que agem em nome do Estado, criando instrumentos de punição para as hipóteses em que o agente não paute sua atuação em nome do interesse público (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021). Todavia, a Lei nº 4.898/1965 (BRASIL, 2020), editada durante o regime militar, continha vários tipos penais abertos, além de cominar penas irrisórias. Todas as 19 infrações penais eram de menor potencial ofensivo, ou seja, não acarretavam prisão em flagrante, nem instauração de inquérito policial, apenas Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) e ensejavam prescrições de apenas 3 anos.

Em 05 de setembro de 2019, com vacatio legis de 120 dias, entrando em vigor em 03 de janeiro de 2020, passa a ser cumprida a Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2020), que revoga a Lei nº 4.898/1965 (BRASIL, 2020) e estabelece a nova Lei de Abuso de Autoridade. Com essa nova orientação jurídica, o abuso de autoridade continua a prever tríplice responsabilidade: administrativa, civil e penal. No âmbito penal, com a entrada da Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2020), houve a tipificação de crimes funcionais cometidos pelo agente público, quando esse se utiliza de suas funções para cometer o ilícito.

A nova lei, a seu turno, exige que as condutas criminalizadas sejam praticadas com as finalidades específicas de (i) prejudicar a outrem; (ii) beneficiar a si mesmo; (iii) beneficiar a terceiros; e/ou (iv) atender um mero capricho ou ter satisfação pessoal (art.1º, §1º da Lei nº 13.869/2019).

2.3. CONSTITUCIONALIDADE

A nova legislação é motivo de preocupação para os membros do Poder Judiciário, seus auxiliares e demais usuários do Direito, uma vez que a utilização da nova Lei de Abuso de Autoridade gera controvérsias. Embora a necessidade de punir os excessos seja indiscutível, alguns pontos geram polêmicas: o modo de produção da lei, a forma de criminalizar o abuso de poder e a destinação dos delitos (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

Em matéria penal, há que se ponderar com as expressões indeterminadas, que carecem de interpretação valorativa por parte dos julgadores e intérpretes, além de afrontarem os princípios constitucionais, em especial os da legalidade, da taxatividade e o da reserva legal. Criam-se as chamadas zonas cinzentas sobre a adequação das condutas e a aplicação da lei, pois, ao se utilizar de conceitos genéricos, vagos e ambíguos, o Legislador contradisse o seu próprio objetivo, já que a indeterminação gera grave insegurança jurídica na atuação dos profissionais da justiça (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

Por conseguinte, os tipos penais devem ser certos, taxativos, não sendo lícito ao legislador conceber o crime com redação vaga cujo conteúdo seja definido por outrem. Assim sendo, o problema da utilização de conceitos vagos ou ambíguos para a descrição de tipos penais reside na abertura interpretativa do texto legal (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021). No caso da Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b), cria-se um verdadeiro paradoxo jurídico, em que o mesmo agente responsável por interpretar e valorar a lei pode, em contrapartida, tornar-se sujeito ativo perante ela. Sendo assim, há que se observar o princípio da legalidade, em que uma parte mínima do texto penal deve ser vinculada e expressamente determinada, não sendo passível de valoração por parte do agente público.

No caso do julgador, cabe a realização da análise do caso concreto frente ao extraído do texto legal, realizando a subsunção do fato à norma, com certo grau de subjetividade, mas não além do que já prevê expressamente a norma, uma vez que essas considerações determinarão o trâmite da demanda (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

Além disso, a circunstância de a lei anterior conceber tipos mais abertos do que a lei atual não muda o fato de persistir a violação à taxatividade, ainda que de forma menos escancarada. Segundo Nucci (2020), os tipos penais não devem deixar margens a dúvidas, nem abusar do emprego de normas muito gerais ou tipos incriminadores genéricos, vazios.

Nesse sentido, a única forma de aplicar esses delitos de constitucionalidade duvidosa é observando a limitação interpretativa de tais termos vagos. A nova lei colocou o princípio da intervenção mínima sobre risco, no momento em que transformou certas infrações disciplinares dos agentes públicos em crimes. O Direito Penal só deve ser utilizado quando as demais formas de controle, de natureza não penal, tenham sido gastos, o que não é o caso em questão.

Um ponto que precisa ficar acentuado é que o legislador selecionou alvos preferenciais para sofrer a aplicação dos tipos penais abertos, como policiais, delegados, juízes e membros do Ministério Público, ao criminalizar condutas como: decretar condução coercitiva manifestamente descabida; requisitar instauração de procedimento investigatório à falta de qualquer indício da prática de crime e decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

Enfim, parte-se da premissa de que a Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b) não criminaliza nenhuma conduta legítima por parte de um agente público, mas tão somente aquelas que excedem os limites de sua competência ou que são praticadas com finalidade diversa daquela que decorre explícita ou implicitamente da lei. Assim, não agindo com o propósito específico de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal, não há por que se temer a Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b), muito menos permitir que sua entrada em vigor sirva como obstáculo ao escorreito exercício de toda e qualquer função pública.

2.4. LEIS DE ABUSO DE AUTORIDADE: ANTIGA vs NOVA

2.4.1. A ANTIGA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE

A Lei nº 4.898, DE 9 DE DEZEMBRO DE 1965, segundo Zaffaroni (2004), os delitos de abuso de autoridade constituem expressão do Direito Penal Subterrâneo, terminologia usada para se referir aos crimes decorrentes do exercício arbitrário do direito de punir por determinados agentes públicos, a exemplo de torturas e homicídios cometidos pelas agências executivas de controle. Esse fenômeno surge e ganha corpo notadamente em face da ineficácia dos órgãos estatais (Polícias, Ministério Público, Poder Judiciário, etc.).

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No que tange à Lei de nº 4.898/1965 (BRASIL, 2021a), antiga e primeira lei a tratar da prática dos crimes de abuso de autoridade cometidos no Brasil, é indispensável mencionar que essa foi editada durante o regime militar com a finalidade de conter excessos que viessem a cometer os membros das Polícias. Logo, ela surgiu em momento no qual o Brasil apontava rumos promissores no prisma democrático, a população não mais aceitava qualquer tipo de repressão originária do governo ou de suas autoridades competentes.

Nessa atmosfera de mudanças, foi firmada, de forma enfática, a legislação reprimindo os abusos de poder e autoridade. Contudo, dotada de dispositivos vagos e abertos, a revogada Lei nº 4.898/1965 (BRASIL, 2021a) dispensava aos crimes de abuso de autoridade uma sanção penal absolutamente incompatível com o desvalor do injusto, deixando-a, assim, desprovida de qualquer poder dissuasório sobre os agentes públicos. Com efeito, a pena privativa de liberdade cominada aos crimes de abuso de autoridade pelo antigo diploma normativo já não guardava mais compatibilidade com a gravidade de tais condutas, pois tratava a integralidade desses crimes como infrações de menor potencial ofensivo, logo, da competência dos Juizados Especiais Criminais, sujeitos, portanto, aos institutos despenalizadores previstos na Lei nº 9.099/1995 (BRASIL, 2021a). Contribuía, ademais, para o advento da prescrição da pretensão punitiva, que ocorria em apenas 3 (três) anos (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

Destaca-se que, embora a mencionada lei padecesse com dificuldades de aplicabilidade em seu real escopo, ela não deixa de estampar relevância histórica, especialmente após a paulatina abertura governamental aos movimentos populares, com o reparo de direitos individuais, os quais vieram a conceber uma base para as conquistas mais recentes. Em assuntos processuais, a otimização dos fatos apontados como criminosos já se dava mediante ação pública incondicionada, em que há acusação produzida pelo Ministério Público, sendo desnecessária a queixa por parte da vítima ou de qualquer outra pessoa. Demonstra-se, assim, uma das características da sua utilidade na salvaguarda da sociedade como um todo.

Nessa linha de pensamento, como já mencionado anteriormente, no período em que vigorou essa primeira legislação sobre o abuso de autoridade, contava-se com penas de no máximo seis meses de detenção e multa, além da provável perda do cargo público e da inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por prazo de até três anos. Portanto, conclui-se que esse tipo de ilícito fora tratado então como de menor potencial ofensivo (BRASILEIRO, 2020).

Desse modo, levando em consideração a sanção é que se pode entender a Lei nº 4.898/1965 (BRASIL, 2021a) como de limitada utilidade. Pois o seu cumprimento ocorria, sobretudo, nos casos de exercício de atividades abusivas de servidores, padecendo do rigor inibitório a práticas lesivas por parte das autoridades, de forma que, inclusive, gerava uma sensação de impunidade em relação às autoridades com maior poder de decisão (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

É importante frisar que na Lei nº 4.898/1965 (BRASIL, 2021a), de forma diversa ao previsto no art. 1º da Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2021a), a referência era apenas aos agentes públicos no exercício das suas funções, não trazendo a condição daquele agente público que pratica ato de abuso de autoridade a pretexto de exercê-las. Ou seja, na primeira situação, o agente público está realmente no exercício da função, por exemplo, o policial que está num plantão numa delegacia. Já na segunda, esse mesmo policial coagiria alguém a pretexto de ser policial e abusaria dessa autoridade (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021)

A lei anterior, que fora editada em plena ditadura militar, tinha necessidade de ser atualizada já que não atendia mais às demandas vigentes. Deste modo, é relevante destacar que os tipos penais da antiga lei eram abertos, e não taxativos, e, para se certificar disso, basta a leitura do Art. 3º da lei anterior que diz: constitui abuso de autoridade qualquer atentado à liberdade de locomoção. Seria amoldável a esse tipo toda e qualquer prisão preventiva decretada sem justa causa ou uma condução coercitiva fora das hipóteses legais. (NUCCI, 2019). Assim, com a nova lei, o ordenamento torna-se mais claro e taxativo.

Toda lei penal pode apresentar defeitos em sua redação. Todavia, as falhas na antiga lei eram mais claras do que as da atual. Em virtude dos fatos mencionados, esclareceu-se que só ocorreria o abuso de autoridade quando a atitude do agente público for manifestamente excessiva. Portanto, esses pontos não eram abrangidos pela antiga Lei de Abuso de Autoridade (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

2.4.2. A NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE

Publicada em 05 de setembro de 2019 e em vigência desde 03 de janeiro de 2020, a Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019) surge em momento turbulento na história do Brasil. Logo após vários casos de corrupção envolvendo autoridades políticas do país, assim como procedimentos policiais, a exemplo da Lava Jato, que atingiram a arcada política e econômica brasileira, o Congresso Nacional deliberou pela aprovação da referida lei. Cabe destacar que, ao comparar a nova Lei de Abuso de Autoridade com a Lei nº 4.898/1965 (BRASIL, 2019), houve situações importantes referentes à aplicação da lei penal no tempo, ou seja, algumas condutas continuaram criminosas (princípio da continuidade normativa - típica), com ou sem modificação da redação que prejudique ou beneficie o agente.

Além disso, houve novatio legis incriminadora, o que significa que condutas que não eram consideradas criminosas pela antiga lei passaram a ser com a nova. Por fim, também houve a incidência da abolitio criminis, a qual tornou algumas condutas criminosas atípicas. Diferentemente da antiga legislação, a Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b), demonstra que os crimes de abuso de autoridade possuem múltipla objetividade jurídica, assim dizendo, há pelo menos 2 bens jurídicos tutelados, tratando-se então de crime pluriofensivo.

De forma imediata ou principal, buscam-se proteger os direitos e garantias fundamentais das pessoas físicas e jurídicas, quais sejam: liberdade de locomoção (arts. 9º, 10 e 12); liberdade individual (arts. 13, 15 e 18); direito à informação (art. 16); direito de petição (art. 19); direito à assistência de advogado (arts. 20 e 32); administração do Estado e da justiça (art. 23); e o direito à intimidade e à vida privada (arts. 13, 22, 28 e 38). Já em relação ao bem jurídico tutelado de maneira mediata ou secundária, essa é a normalidade e a regularidade dos serviços públicos, ou seja, o bom funcionamento do Estado.

Insta destacar, em relação ao âmbito de incidência da nova lei, que o abuso de poder ocorre quando o agente público excede os limites de sua competência (excesso de poder) ou quando pratica um ato com finalidade diversa daquela que decorre explícita ou implicitamente da lei (desvio de poder). Em ambas as hipóteses, a tipificação do delito está condicionada, como deixa entrever o caput do art. 1º, ao fato de o agente público praticar a conduta em questão no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

Art. 1º Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído. § 1º As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. (BRASIL, 2019).

Ante o exposto, com base no art. 1º, §2 da Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019), o elemento subjetivo geral do abuso de autoridade é o dolo. Não há previsão legal de abuso de autoridade culposo. Entretanto, logo em seu artigo inaugural, a lei evidencia que o dolo, por si só, não é suficiente para que o crime se perfaça. Além da consciência e da vontade que compõem o dolo, é preciso algo a mais, uma finalidade específica que deve animar a conduta do agente, tais como: prejudicar outrem, beneficiar a si mesmo ou a terceiro, por mero capricho ou por satisfação pessoal (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

É mister ressaltar que todos os delitos previstos na Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b) são de ação pública incondicionada. Além disso, a própria lei aponta, em norma penal explicativa, as autoridades e agentes públicos que podem ser considerados sujeitos ativos dos crimes de abuso de autoridade. Em seu art. 2º (BRASIL, op. Cit.), está definido quem poderá figurar no polo ativo da ação penal de abuso de autoridade, sendo sujeito ativo do crime qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, compreendendo, mas não se limitando a: servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas; membros do Poder Legislativo, do Poder Executivo, do Poder Judiciário, do Ministério Público, e dos tribunais ou conselhos de contas.

Dado o exposto, em que pese a referida lei ter inserido como sujeito ativo qualquer agente público de todos os poderes e ter sido criada com o objeto de punir todo e qualquer abuso de autoridade, uma simples análise dos tipos penais evidencia que o maior alvo é o servidor do Judiciário, mais especificamente o policial e o delegado, visto que criminaliza condutas como decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais, decretar a condução coercitivamente descabida e requisitar instauração de procedimento investigatório a falta de qualquer indício da prática de crime (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

Por questões como essa, a Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b) vem sofrendo críticas e tendo o seu real motivo questionado por ter sido destinada a somente uma parcela dos agentes públicos. Juízes, membros do MP e agentes penitenciários vêm em segundo lugar. Parlamentares poderiam ser atingidos apenas pelo crime de condução coercitiva ilegal, se decretada no bojo de CPI. Já o chefe do executivo, ministros e secretários não possuem um crime sequer que possa atingí-los, não aparecendo como possíveis sujeitos ativos.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das argumentações expostas neste trabalho, com a entrada em vigor da Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b), surgiram vários questionamentos da comunidade jurídica como um todo, especialmente quanto à real finalidade do referido diploma normativo, bem como qual seria a atuação dos agentes públicos (delegados, promotores, autoridades judiciárias e policiais) diante de alguns dispositivos vagos e imprecisos da referida lei.

O que se espera de um agente público delegado, no exercício de sua função pública, acima de tudo, que seja um assegurador de direitos, não apenas da sociedade, mas também do criminoso. Deve ser garantido aos que atuam na persecução penal a independência para desenvolver suas funções, o que claramente não é observado na Lei nº 13.869/2019. Os agentes públicos são um operador do direito, sendo assim a atuação dos mesmos diante da nova lei é questiononável. Deve ser assegurada ao agentes públicos a autonomia, sem pressões de nenhuma forma, quer seja de outras autoridades, mídia ou da sociedade.

Os agentes públicos em questão têm a tarefa de investigar, isso é uma atividade típica, que requer autonomia e imparcialidade, pois os mesmos funcionam em um processo como cumpridores da lei.

Os agentes públicos que atuam na persecução penal, com a nova Lei de Abuso de Autoridade, podem se sentir coagidos e receosos no que concerne às suas atuações, uma vez que foram trazidos novos dispositivos pela na nova legislação, que antes não eram crimes, mas que agora tais são considerados crimes.

Na lei anterior, que foi revogada, em seu artigo 3°, define-se como crime qualquer atentado à liberdade de locomoção ou à incolumidade física do indivíduo, o que revela um tipo penal extremamente abrangente, o que dava mais garantia a atuação autônoma e imparcial destes agentes, quando estavam desempenhando as suas funções públicas. Considerando a mudança na nova lei, em seu artigo 13, há a definição de que, para se configurar o crime, o constrangimento deve ser mediante violência, grave ameaça ou com a redução de sua capacidade de resistência ao adentrar em qualquer um desses três incisos explicitos neste artigo.

Os agentes públicos em pleno exercíco de suas funções, em um primeiro momento, protegem os direitos e garantias fundamentais das pessoas físicas e jurídicas, nesse caso, especificamente, a integridade moral, a honra e a imagem. Vale ressaltar que é perfeitamente possível a coautoria quando o constrangimento do preso deriva da vontade de múltiplos agentes, mesmo que só um deles possua qualidade exigida pelo tipo.

O abuso de autoridade se trata de um crime bipróprio, visto que o tipo penal exige não só que o sujeito ativo seja agente público ou autoridade, mas também que o sujeito passivo detenha características especiais, ou seja, estar sujeito ao dever de sigilo em razão da função, ministério, ofício ou profissão.

Assim como os demais crimes de abuso de autoridade, como já exposto acima, trata-se de crime pluriofensivo. Sendo assim, pode se extrair do artigo supracitado que o crime pode ser praticado pelo responsável pela determinação ou pela execução do encarceramento de pessoas, a exemplo do delegado, do juiz e do policial penal.

Muitas mudanças foram promovidas com o advento da nova Lei de Abuso de Autoridade em relação ao que pode ser abuso de autoridade na conduta dos agentes públicos, como a inviolabilidade de domicílio. É indispensável mencionar que a lei anterior caracterizava o crime como qualquer atentado contra a inviolabilidade do domicílio. Sabendo que o tipo penal acima protege a inviolabilidade da casa, convém verificar a previsão constitucional dessa proteção e suas exceções (em que autorizam a entrada no imóvel em algumas situações).

É de fundamental importância mencionar que a vedação da utilização de provas ilícitas comporta exceções. É amplamente reconhecida a possibilidade de utilização da prova favorável ao investigado na persecução penal, mesmo que colhida com violação a direitos seus ou de terceiros, por aplicação do princípio da proporcionalidade conhecida como prova ilícita pro reo.

Desse modo, se a vedação probatória consiste em limitação ao direito de punir do Estado, para que não haja imposição de sanções a qualquer custo, esse objetivo também será atingido quando um inocente deixar de ser punido, ainda que com base em prova ilícita. Isso porque o direito de defesa e o princípio da presunção de inocência merecem preponderância face ao direito de punir.

Além disso, também são refutados o modo célere e em regime de urgência como foi inserida, e a insistência em dispositivos vagos, isso tudo sem discussão suficiente do tema. No Brasil, é comum o legislador se utilizar de algumas expressões com certo grau de vagueza, como forma de manter a norma atualizada por mais tempo, frente às evoluções sociais e culturais de uma sociedade.

Destarte, uma lei dessa envergadura deveria ter passado por um debate mais intenso e duradouro junto à comunidade jurídica e à sociedade como um todo. Ao ser feita de modo acelerado, com votação alegórica e em regime de urgência, o processo legislativo fracassou pela falta de transparência, impedindo uma evolução da qualidade da legislação.

Sendo assim, é possível concluir o notável vício de finalidade da Lei nº 13.869/2019 uma vez que a aprovação emergencial, com pouca discussão nas Casas do Congresso Nacional, representa verdadeiro artifício para inibir a prestação jurisdicional, objetivando dificultar as investigações e condenações pela prática dos delitos de corrupção.

Isso porque o legislador priorizou reprimir os abusos e excessos comuns às atribuições dos membros do Poder Judiciário, tendo se omitido em positivar os abusos de autoridade praticados pela classe política. No âmbito penal, com a vigência da Lei nº 13.869/2019, houve a tipificação de crimes funcionais cometidos pelo agente público, que extrapolam os limites de atuação e ferem o interesse público.

A nova lei, a seu turno, elimina alguns problemas, por exemplo, a questão das penas insuficientes, advindas do antigo regulamento. Conquanto, ela exagera em algumas sanções penais, persiste com crimes vagos demais, criminaliza infrações disciplinares e foi editada sem discussão suficiente do tema. Por último, os direitos fundamentais sofrem restrições de algumas espécies de leis e a lei penal é uma delas.

Por isso, deve-se observar os chamados limites dos direitos fundamentais, dentre os quais ganha destaque a reserva de lei proporcional. Quando o legislador age em excesso, por exemplo, cominando penas severas demais, acontecimento marcante na nova Lei de Abuso de Autoridade, fere o princípio da proporcionalidade, impondo medida legislativa inadequada para atingir escopos perseguidos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Sobre o autor
Cláudio Ribeiro de Souza

Acadêmico do curso de Direito da Universidade Federal do Tocantins – UFT;

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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