Direito de Inovar, Transformação Digital e a Desindustrialização.

04/07/2023 às 12:23
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No momento em que a transformação digital bate a porta das nossas casas e das nossas empresas, dar destaque ao processo contínuo de desindustrialização da economia brasileira, parece ser um desafio pra lá de palpitante, afinal como que um dos oito países mais populosos do mundo, com um mercado cativo de 216 milhões de pessoas, onde qualquer nicho de mercado é uma oportunidade gigantesca para indústria ou para o setor de serviços, pode assistir por décadas sucessivas a sua indústria derreter, exatamente quando a oportunidade lançada pela tecnologia é de agregar valor ao produto ou ao serviço?

Segundo dados do Banco Mundial, em 1984 a manufatura representava 34% do PIB brasileiro, tendo despencado para apenas 10% em 2021. Nesse momento, para efeitos comparativos, ficamos no mesmo patamar que o Benin, acima do Afeganistão (9% de participação da indústria) e abaixo da Bolívia (11%). Em março de 2022, a revista The Economist publicou matéria alardeando que em nenhum outro país a indústria teria experimentado um processo tão rápido de perda de importância.

Segundo a literatura especializada uma política industrial contemporânea deve ter três características: (i) ser parte de uma política governamental mais ampla, focada na promoção das novas tecnologias, no aumento da produtividade e na preservação do meio ambiente, ou seja a nova indústria precisa ser sustentável, logo os diplomas legais que tratam da matéria não podem ser vistos como empecilho, mas como uma condição, desde que é claro não burocratize de forma desnecessária, logo ser ESG é um requisito para novos investimentos; (ii) refutar a distribuição de privilégios e sinecuras a setores com maior capacidade de pressão. Ou seja políticas de incentivos fiscais com pressões locais pouco ou quase nada contribuem para o processo de ganhos competitivos, e nesse caso está ai uma das maiores vitórias no projeto de reforma tributária.; e (iii) estar em linha com a necessidade de promover uma política fiscal sustentável. A sustentabilidade fiscal vai ao encontro da condução responsável das finanças públicas, onde o Estado recupera o seu protagonismo de agente das mudanças sociais e econômicas.

Nesse momento o que não faltam são acusações de todos os lados sobre as principais causas, mas antes é preciso analisar alguns números, à título de exemplo como no caso da indústria calçadista, um segmento industrial onde o Brasil possui uma cadeia verticalizada, os em 2022 a média de produção por trabalhador do setor foi de 2.863, acima da média dos quatro maiores fabricantes globais – China, Índia, Vietnã e Indonésia –, de 2.510 pares, ou seja somos eficientes, porém em 2019, antes da pandemia, a média brasileira foi de 3.374 pares, ou seja nosso problema não está na produtividade, pois ao mesmo tempo (política de juros e câmbio nos últimos anos), fez com que o preço médio da produção tenha subido 38% no pós pandemia e as fabricantes passaram a focar mais em produtos de maior valor agregado, que exigem mais mão de obra, ou seja produzimos menos, empregamos menos, para manter a mesma margem, em razão da política econômica dos últimos anos, um claro exemplo do papel do Estado quando intervém mal.

Só para se ter uma deia do “nicho” calçadista, temos indústrias distribuídas em mais de 600 municípios distribuídas em 25 Estados, parte significativa delas, com certificados internacionais de origem sustentável e parque industrial competitivo. Logo qual a política nacional de incentivos para essas indústria que pode ampliar aa sua participação mundial gerando novas centenas de milhares de posições de trabalho? Quanto representaria para o Brasil ter mais de 10% de toda produção de calçados do mundo, e temos todas as condições, por isso usamos esse setor como exemplo da necessidade de uma política de industrialização, ou seja focar em setores onde o Brasil pode verticalizar, onde o emprego da mão de obra intensiva é gigante e onde a tecnologia nós já temos?

Nos últimos 27 anos, a produtividade da indústria de transformação brasileira caiu quase 1% ao ano, em média. Isso significa que, se em 1995 cada hora trabalhada no Brasil gerava R$ 45,50 em produtos, no final do ano passado eram apenas R$ 36,50 por hora trabalhada.

A indústria de transformação é responsável pela produção de roupas, alimentos, eletroeletrônicos, metais, aviões, veículos e máquinas industriais, entre vários outros bens de consumo, e não existe um só segmento desses onde não possamos ser competitivos, mas é preciso que todos os entes federativos falem a mesma língua quando o assunto é política tributária. Veja o exemplo do retrocesso quando se modifica a tributação na importação por pessoa física, desonerando a mesma em até US$50,00. Ou seja quem resolve comprar no Brasil de um fornecedor nacional, paga toda carga tributária, o que não corre com o produto importado comprado pela internet.

Vejamos os dados ofertados pelo Observatório da Produtividade, mostrando que em 1995, a produtividade por hora trabalhada na agropecuária era de R$ 5,90, valor que foi a R$ 25,50 no encerramento do ano passado, obvio que dois pontos precisam ser colocados nesse comparativo, a variação cambial e a alta das comodities que distorcem os ganhos de produtividade de um setor centrado em comodities.

A produção industrial representa apenas 16% do PIB global e vem caindo em toda parte, a favor do setor de serviços. Mesmo na China, pulmão da manufatura global, a indústria é responsável por apenas 27% do PIB, tendo chegado a 32%, sendo que em relação à indústria global, a fatia do Brasil está em 1,4%, número bem inferior aos 2,3% da nossa fatia do PIB global.

A exportação de matérias-primas é importante, mas, em que pese o crescente conteúdo tecnológico associado, é mais vulnerável aos ciclos de preços internacionais. Uma economia baseada no conhecimento depende de recuperarmos nosso setor industrial, em benefício também de nossa soberania em setores como saúde, comunicações, defesa e energia. No entanto, estamos perdendo a corrida da sofisticação produtiva.

Décadas atrás, éramos o 25.º país em complexidade de nossa economia. Hoje, estamos ao redor da 50.ª posição. Países como a China fizeram o caminho inverso: ela se tornou competitiva em setores de ponta, transformou-se numa economia que já é mais complexa que a da Dinamarca e, neste percurso, levantou centenas de milhões de trabalhadores da pobreza.

Políticas como o novo Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores (Padis) e o programa de enfrentamento ao custo Brasil são fundamentais.

A escala de produção agrícola no Brasil, deve servir também pra verticalização da cadeia, seja no processamentos dos produtos, como na produção de todos os insumos, nos permitindo exportá-los em sua maioria, o que só aumenta a necessidade de um plano que nos torne independentes na produção de fertilizantes, que pasme, o último governo não dava a importância para esse item como estratégico.

Ao mesmo tempo devemos estimular a agroindústria e financiar as exportações de maquinário agrícola e de novas tecnologias que estão surgindo no Brasil para atender o campo.

Lembro que no trabalho a “seleção natural” que Charles Darwin explicou a origem das espécies vivas que existem na natureza por meio da seguinte lógica: “Se existem variações nas características dos indivíduos de uma espécie; e se, ao longo do tempo, apenas indivíduos com certas características geram crias capazes de gerar novas crias; então, o mundo se encherá de cópias desses indivíduos, e os demais desaparecerão”. Ou, dito de forma genérica: se existem cópias imperfeitas de alguma coisa, e se apenas algumas dessas cópias são selecionadas (de acordo com algum critério, que no caso é a capacidade de gerar crias) apenas as cópias selecionadas deixarão crias. Ou seja, o que permanece é o que é competente em permanecer, e esse “permanecer” não é nada trivial, para que alguma coisa permaneça é preciso que haja uma “inteligência” capaz de separar continuamente sinal de ruído, sobrepujando a entropia, evitando assim que a coisa deteriore. Darwin identificou um processo que, uma vez instanciado, fica irresistível pois dadas certas condições, ele leva automaticamente ao aparecimento de um “algo” que fica estável no ambiente, ou seja, formará um padrão que não se dilui.

Ou seja, as espécies evoluem e isso é um requisito, pois é antes de mais nada uma mudança ao longo do tempo. Apesar de não sabermos de antemão o que será produzido, podemos garantir que alguma coisa será, porque seu padrão ficará estável. O que garante isso é o algoritmo em ação. Darwin estava interessado em espécies vivas, mas o “algo” que ganha estabilidade pode ser o que for: espécies de organismos, tecnologias, ideias, um “meme” qualquer, se o algoritmo estiver em ação, a evolução terá de ocorrer, como conclui Clemente da Nóbrega em sua obra sobre a transformação digital.

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De forma assustadora o planeta estaria começando a ser conquistado (ainda que sem muito barulho) pelas forças do algoritmo digital com sua habilidade sutil para vencer o ruído na rede. Essa inteligência foi melhor notada pelo Google e por isso, nas diversas narrativas da história do Google, isso é registrado, pois vários autores relatam falas mais recentes dos fundadores do Google. E essas forças podem ditar padrões de consumo e uma nova geografia comercial, o que só acentual a desindustrialização de países como o Brasil, onde essas plataformas correm soltas definindo e influenciando o consumo.

Na construção jurídica do processo de reindustrialização, é fundamental o papel das startups e a sua interação com a economia tradicional, qual incentivo existe para essa integração acelerada que agrega valor aos nossos produtos?

As normas enquanto previsões hipotéticas de conduta, nascem da competência atribuída e distribuída pela Magna Carta que é nossa Norma Fundante, é sobre os Princípios nela previsto que se ergue o universo normativo.

No Art. 1º da Constituição em seu primeiro Enunciado elege os valores sociais de onde se extrai que “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: …IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.”

Eleger o trabalho e a livre iniciativa é imaginar que o desenvolvimento de uma nação ocorre através do trabalho e na iniciativa de através dele produzir o novo, acompanhando todos os avanços que por meio do trabalho e da sociedade coletiva se apresentam para o evoluir social.

Ao mesmo tempo o legislador Constituinte já no Art. 3° na eleição dos objetivos fundamentais elegeu “construir uma sociedade livre, justa e solidária e garantir o desenvolvimento nacional”. Logo a inserção do novo, pela inovação tecnológica deve sempre que possível encontrar esses objetivos, por isso os avanços tecnológicos que ofertem novas relações devem estar permeados por esses valores.

É na Magna Carta como valor fundante do Princípio da Isonomia, previsto no Art. 5°, em seu inciso II que o princípio da legalidade nasce como valorativo da isonomia, onde se lê “II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”

Logo se a norma não proíbe expressamente ao particular é permitido fazer, visto que o contrato social celebrado pelos cidadãos decorre sempre da norma prescritiva de conduta hipotética.

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No mesmo artigo o Legislador Constituinte continua na construção do Princípio da Isonomia, “Art. 5° XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Mais uma vez em plena Norma Fundante a sociedade elege e constrói seu edifício normativo, ao tornar a todos e o livre exercício do trabalho, sendo vedado apenas quando o mesmo estiver limitado por lei.

Recuperar a indústria é fundamental, e o Direito deve servir para criar esse tecido legal de incentivos e métricas aliados a política ESG.

 

Sobre o autor
Charles M. Machado

Charles M. Machado é advogado formado pela UFSC, Universidade Federal de Santa Catarina, consultor jurídico no Brasil e no Exterior, nas áreas de Direito Tributário e Mercado de Capitais. Foi professor nos Cursos de Pós Graduação e Extensão no IBET, nas disciplinas de Tributação Internacional e Imposto de Renda. Pós Graduado em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Salamanca na Espanha. Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário e Membro da Associação Paulista de Estudos Tributários, onde também é palestrante. Autor de Diversas Obras de Direito.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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