Ocupação de espaço público: detenção ou posse?

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Na doutrina civilista contemporânea, há críticas acerca de se qualificar a ocupação de espaço público exclusivamente em detenção em vez de posse, o que foi feito, aliás, na Súmula nº 619 do STJ, segundo a qual a ocupação indevida de bem público configura mera detenção, de natureza precária, insuscetível de retenção ou indenização por acessões e benfeitorias.

Para Flávio Tartuce (2019), tal entendimento contraria uma avançada teoria quanto à posse, que considera sua função social, de forte cunho sociológico, e que deveria estar incorporada em dispositivo do Código Civil.

A concepção social da posse repercutiria na tutela dos direitos possessórios, e em sede doutrinária, conforme o autor consultado (TARTUCE, 2019), a tal concepção consta de enunciado da V Jornada de Direito Civil (2011), que estabeleceu que “a posse constitui direito autônomo em relação à propriedade e deve expressar o aproveitamento dos bens para o alcance de interesses existenciais, econômicos e sociais merecedores de tutela” (Enunciado n. 492).

Tartuce chega a citar trecho de estudo feito por Rocha Gonçalves que concluiu que a valorização da posse representa um rompimento do formalismo individualista diante de demandas sociais, com a fruição dos bens que atendam às necessidades, desvinculando-se propriedade e posse.  

  Se a posse tem, como assevera o Tartuce, uma função social e um reconhecimento autônomo, dentro do direito civil constitucional os fundamentos da posse precisam levar em consideração os valores sociais constitucionalmente estabelecidos, especialmente os direitos fundamentais e o fundamento da dignidade da pessoa humana.

Essa avaliação levou a um aresto do final de 2016, citado por Tartuce, que, conforme aponta o autor, reconheceu que “a posse deve ser protegida como um fim em si mesma, exercendo o particular o poder fático sobre a res e garantindo sua função social, sendo que o critério para aferir se há posse ou detenção não é o estrutural e sim o funcional. É a afetação do bem a uma finalidade pública que dirá se pode ou não ser objeto de atos possessórias por um particular (...) [e] à luz do texto constitucional e da inteligência do novo Código Civil, a função social é base normativa para a solução dos conflitos atinentes à posse, dando-se efetividade ao bem comum, com escopo nos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana” (STJ, REsp 1.296.964/DF, 4.ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 18.10.2016, DJe 07.12.2016).

É exatamente este tipo de consideração sobre a posse como direito autônomo e de inequívoca função social, que leva parte da doutrina e jurisprudência a entenderem que detentor não deve ser confundindo com possuidor, na melhor interpretação do art. 1198 do CC de 2002, exercendo o detentor sobre o bem não uma posse própria, mas em nome de outrem. Já a posse se trata do exercício em nome próprio de um poder do domínio. Claramente, detenção não se confunde com posse.

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Porém, mesmo diante de tal entendimento, o Superior Tribunal de Justiça tradicionalmente, conforme Tartuce, decidiu reiteradas vezes que a ocupação irregular de área pública não induziria posse, mas ato de mera detenção, com objetivo de afastar pretensão de usucapião de bens públicos, havendo ocupação irregular. A ocupação de área pública, quando irregular, não poderia ser reconhecida como posse, mas como mera detenção.

Apesar dessas decisões do STJ, Tartuce avalia que o caso não é de detenção, mas de POSSE PRECÁRIA, por ser injusta, não podendo gerar a usucapião, mas, por haver posse, o ocupante-invasor poderia propor ações possessórias contra terceiros, o que houve em 2016, em decisão do STJ no Informativo nº 579,  que considerou cabível o ajuizamento de ações possessórias por parte de invasor de terra pública contra outros particulares, mesmo diante da jurisprudência do STJ no sentido de que a ocupação de área pública sem autorização expressa e legítima do titular do domínio constituiria mera detenção (REsp 998.409/DF, Terceira Turma, DJe 03.11.2009).

Afinal, se a posse não se dá em nome de outrem, que ostente o jus possidendi ou jus possessionis, não poderia ser detenção nos termos do art. 1198 do CC de 2002. Por isso, de acordo com Tartuce, aquele que invadir terras públicas e construir sua moradia jamais exercerá a posse em nome alheio, não havendo entre ele e o ente público uma relação de dependência ou de subordinação e, por isso, não havendo que se falar em mera detenção.

O que há é um animus domni juridicamente infrutífero. Daí que, para Tartuce, os interditos possessórios seriam adequados à discussão da melhor posse entre particulares, mesmo em se tratando de terras públicas.

        É este o entendimento doutrinário que se opõe ao entendimento do STJ que aprovou, em outubro de 2018, a Súmula 619, segundo a qual, “a ocupação indevida de bem público configura mera detenção, de natureza precária, insuscetível de retenção ou indenização por acessões e benfeitorias”.

Bibliografia consultada:

TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2019.

Sobre o autor
Carlos Eduardo Oliva de Carvalho Rêgo

Advogado (OAB 254.318/RJ). Doutor e mestre em Ciência Política (UFF), especialista em ensino de Sociologia (CPII) e em Direito Público Constitucional, Administrativo e Tributário (FF/PR), bacharel em Direito (UERJ), bacharel e licenciado em Ciências Sociais (UFRJ), é professor de Sociologia da carreira EBTT do Ministério da Educação, pesquisador e líder do LAEDH - Laboratório de Educação em Direitos Humanos do Colégio Pedro II.

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