Extravio de arma de fogo e peculato culposo: considerações jurídicas sobre aplicação conforme a jurisprudência e a doutrina.

13/07/2023 às 20:55

Resumo:


  • O artigo aborda a aplicação do Código Penal Militar nos casos de extravio de arma de fogo e peculato culposo.

  • Destaca-se a análise dos requisitos para um conflito aparente de normas penais e as possíveis soluções pelo magistrado.

  • São apresentados exemplos de jurisprudência e doutrina, evidenciando a distinção entre extravio de arma de fogo e peculato culposo, especialmente em relação à presença de terceiros.

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Extravio de arma de fogo e peculato culposo: considerações jurídicas sobre aplicação conforme a jurisprudência e a doutrina.

Vinícius Costa de Moraes1

O presente artigo pretende realizar uma abordagem comparativa e como a jurisprudência tem entendido quando configura o crime de extravio de arma de fogo e peculato culposo no âmbito militar. Ambos os crimes estão previstos no Código Penal Militar, o primeiro no artigo 266 e o segundo no artigo 303, §3º.

Aparentemente, poderia estar-se-á diante de um conflito aparente de normas penais. Antes de passar a análise dos crimes em questão, é importante relembrar quando se configura tal conflito. Segundo o professor Rogério Greco (2015) o citado conflito pode ser assim conceituado como aquele que ocorre quando duas normas aparentam incidir sobre o mesmo fato. Ele é dito aparente, pois na verdade não existe conflito algum – efetivamente, não existe um conflito ao se aplicar a norma ao caso concreto.

Para que haja um conflito aparente de normas penais exige a presença de três requisitos. O primeiro trata-se da unicidade do fato, em que existe apenas um crime, o que diferencia do concurso de crimes, quando existe mais de um crime no contexto. O segundo requisito é a pluralidade de leis, que aparentemente se aplicam ao caso e o terceiro é a vigência simultânea de leis possivelmente aplicadas, necessariamente vigentes ao tempo da ação.

Pois bem, o magistrado ao deparar-se com um conflito aparente de normas poderá resolver o caso pelo critério da especialidade, subsunção, alternatividade ou subsidiariedade. Para o estudo em questão o conflito se resolve com o critério da especialidade, o que mais na frente será melhor explicado.

No momento, vamos trazer conceitualmente a definição do crime de extravio de arma de extravio de arma de fogo e peculato culposo, a luz do código penal militar. O primeiro crime está posicionado no art. 265 do código substantivo castrense, dentro dos crimes contra o patrimônio, no capítulo VII de dano. Vejamos o que diz o citado artigo:

Art. 265. Fazer desaparecer, consumir ou extraviar combustível, armamento, munição, peças de equipamento de navio ou de aeronave ou de engenho de guerra motomecanizado:

        Pena - reclusão, até três anos, se o fato não constitui crime mais grave.

O verbo extraviar segundo a doutrina significa desencaminhar, dar destinação diversa do objeto material do crime. Assim caso o militar tenha de forma dolosa contribuído para destinação diversa de combustível, armamento, munição e peças de equipamentos deve incidir sobre ele a pena do crime 265 do CPM.

O propósito do legislador foi proteger de forma especial a capacidade bélica das unidades militares, de modo a preservar os artefatos que são essenciais a proteção e segurança nacional. Por esse modo, não previu para este tipo de crime a extinção da punibilidade pelo ressarcimento ao erário. É de salientar, que o caput do art. 265 do CPM diz claramente que tais munições, equipamentos, combustível são referentes a partes de navio, aeronave ou de engenho de guerra motomecanizado. Ou seja, seria um delito voltado exclusivamente para as forças armadas. Em que pese, essa análise, os tribunais aplicam corriqueiramente para os casos de extravio de arma de fogo envolvendo policiais militares.

O art. 266 do CPM traz a previsão da modalidade culposa aplicada ao crime de extravio de arma de fogo. Necessariamente deve haver a falta de do dever objetivo de cuidado, dando margem por sua conduta não cautelosa, a destinação diversa da munição, equipamento, combustível ou peça.

Já o crime de peculato culposo previsto no art. 303, §3º do CPM está topograficamente previsto nos crimes contra administração militar. Senão vejamos o que diz o referido artigo:

 Peculato culposo

        § 3º Se o funcionário ou o militar contribui culposamente para que outrem subtraia ou desvie o dinheiro, valor ou bem, ou dele se aproprie:

        Pena - detenção, de três meses a um ano.

Para melhor compreensão do que se trata de peculato culposo, valioso é o ensinamento de Enio Luiz Rosseto:

“peculato culposo há ação dolosa de terceiro de subtrair o objeto material, que deveria estar sob a vigilância atenta do militar. Ex: comete peculato culposo, e não extravio culposo, o militar que, por negligência, deixar sua arma de fogo em local inseguro, de modo a contribuir para que terceiro dolosamente a subtraia...”

Assim sendo, para que haja o crime de peculato culposo é necessária a presença de um terceiro no ambiente do crime. Além disso, deve haver o nexo causal entre a conduta negligente do policial, que facilitou a ação delituosa de um terceiro.

A jurisprudência faz a distinção entre o crime de extravio de arma de fogo e peculato culposo especificamente pela presença ou não do terceiro depois da conduta negligente do policial militar. A título de informação, a 3ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios em sede de apelação criminal de nº. 0013035-85.2015.8.07.0016, alinhado com o entendimento da procuradoria de justiça criminal entendeu que quando a negligência e imprudência do militar subsume-se ao disposto no art. 303,§ 3º, do Estatuto Substantivo Militar, quando existe a presença de um terceiro com conduta dolosa. No caso em questão o militar estava em bar com arma da corporação e já completamente embriagado, transeuntes aproveitaram e subtraíram sua arma. Segue a ementa do julgado:

APELAÇÃO CRIMINAL. PENAL MILITAR. DESAPARECIMENTO, CONSUNÇÃO OU EXTRAVIO CULPOSO DE ARMAMENTO. ART. 265 C/C ART. 266 DO CPM. DESCLASSIFICAÇÃO PARA PECULATO CULPOSO. ART. 303, § 3º, DO CPM. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. CONDENAÇÃO PELO CRIME DE EXTRAVIO DE ARMAMENTO. INVIABILIDADE. MANTIDA A DESCLASSIFICAÇÃO. REPARAÇÃO DO DANO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. 1. Comete crime de peculato culposo, tipificado no art. 303, § 3º, do CPM, e não extravio culposo (art. 265 c/c art. 266 do CPP), o militar que, culposamente, não observa o dever de cuidado e porta a arma de fogo da corporação, que tinha sob sua guarda e vigilância, em horário de folga, em uma casa noturna, de modo a contribuir para que terceiro dolosamente a subtraia. 2. Efetivamente comprovado que o acusado promoveu o devido ressarcimento ao erário, a extinção da punibilidade pelo pagamento é medida que se impõe, nos termos do art. 303, § 4º, do Código Penal Militar e do art. 439, alínea "f", do Código de Processo Penal Militar. 3. Apelação conhecida e não provida.

Apesar da doutrina e jurisprudência entender na maioria dos casos que a presença de terceiro que subtrai de forma dolosa arma de fogo de militar negligente ou imprudente seria peculato culposo, o Supremo Tribunal Federal em alguns julgados entendeu que seria também caso de extravio de arma de fogo, pelo bem em si, qual seja, arma de fogo. É como julgou o STF, no RE 1110828/SP, de relatoria do Ministro Celso de Melo. No caso subjudice o militar portava arma de fogo da corporação e adentrou de madrugada, em via freqüentada por travestis, que segundo relatos, um dos travestis subtraiu a referida arma. É o que se extrai do voto no eminente Relator:

“Assim, temos que as versões acima referenciadas dão conta que trafegava com seu veículo em uma rua frequentada por travestis, com as janelas abertas, momento em que um deles, não identificado, colocou o corpo dentro do seu carro e apoderou-se de sua arma de fogo, que estava localizada sob sua perna, sobre o banco. …................................................................................................... Com efeito, a razão não assiste ao apelante . O que temos de concreto é que a arma de propriedade da Corporação, entregue em carga e sob a responsabilidade do recorrente, restou extraviada. A única explicação apresentada pelo militar para o caso é a apresentada na fase inquisitorial, e inexiste qualquer elemento que autorize a desconsideração das versões apresentadas pelo miliciano no IPM e no BO/PC. A culpa do apelante é absolutamente caracterizada pela sua própria narração dos fatos, obtida nos seus Termos de Declaração e no BO/PC. Toda arma de fogo tem dispositivo próprio para seu acondicionamento seguro junto ao corpo (coldre), e não há nenhuma justificativa para que conduza seu veículo com ela depositada sob sua perna, como descreveu. Até mesmo porque, em caso de escorregamento, pode provocar acidente de trânsito, na hipótese de deslizar para a área sob os pedais de comando do veículo. Em complementação, vale reproduzir trecho da r. Sentença: ‘está claro que o réu sabia que havia vida noturna naquele local por onde transitava. Voluntariamente parou para conversar com os travestis durante a madrugada. Qualquer policial militar pronto para o serviço conhece a reputação das pessoas que frequentam as ruas durante as madrugadas. O homem médio tem a atenção redobrada com os cuidados que deve ter durante as madrugadas, até mesmo para obedecer ao semáforo vermelho nas ruas da capital paulista. Aventura parar o carro para conversar com pessoas que ganham a vida na rua, durante o período noturno. Qualquer pessoa sabe os riscos a que está sujeita ao proceder dessa forma. O réu, não só como cidadão, mas também como profissional de segurança, sabia dos riscos que corria ao aquiescer ao sinal de parada de travestis que lhe pediam carona‘. E prossegue: ‘Houve falta de atenção e cautela a que estava obrigado em face das circunstâncias. Saiu armado porque quis. Parou para os travestis porque quis’.”

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Um ponto importante que vale relembrar é que cabe a acusação o ônus de demonstrar a conduta dolosa ou culposa do militar. Isso é importante, porque não raras as vezes o crime de extravio de arma de fogo ou peculato culposo acontece em contextos que não há testemunhas, quando muito se tem câmeras disponíveis. Mas em respeito ao princípio fundamental do in dúbio pro reo, consubstanciado no art. 386, II, do Código Processo Penal, não é responsabilidade da defesa apresentar testemunhas para provar a versão do acusado, mas sim a autoridade policial militar judiciária, bem como em sede de ação penal, ao membro do ministério público.

Quanto ao ônus da acusação em provar a conduta delituosa do militar, o Tribunal de Justiça do Piauí, em acordão nº. 0703789-27.2019.8.18.0000, absolveu o militar acusado do crime de extravio de arma de fogo. Em voto bem didático, o eminente Relator, analisou que nos autos não constava nenhuma prova testemunhal, apenas um boletim de ocorrência noticiado um dia útil depois do suposto roubo da arma de fogo do militar acusado. Além disso, a vida profissional do réu não continha condutas que demonstrava uma conduta social voltada para o crime, muito pelo contrário, nos autos a defesa juntou vários elogios e comendas concedidas ao acusado. Segue abaixo a ementa do acórdão acima mencionado:

APELAÇÃO CRIMINAL. RECURSO MINISTERIAL. DESAPARECIMENTO DE ARMAMENTO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO DO RÉU, DOLOSA OU CULPOSAMENTE, NO DESAPARECIMENTO DA ARMA QUE CUSTODIAVA. APELAÇÃO IMPROVIDA. 1. Na espécie, o órgão ministerial afirma inexistir provas suficientes para sustentar a versão defensiva, segundo a qual o Apelado teria sido vítima de roubo. Entretanto, extrai-se do lastro probatório que o acusado logrou apresentar narrativa coerente, embasada em elementos probatórios, dentre os quais se destaca o Boletim de Ocorrência noticiando o roubo. É importante, inclusive, destacar que o Boletim de Ocorrência foi noticiado no dia útil imediatamente seguinte ao assalto, circunstância que torna ainda mais firme a versão defensiva. 3. Ademais, também é conveniente apontar que o acusado demonstra mais de vinte anos na corporação militar, sem o cometimento de nenhuma transgressão grave e com a comenda de diversos elogios (certidão de punições e elogios - id. 412496, págs. 119-121), tornando ainda mais inverossímil que tenha contribuído para a prática criminosa. 4. Desta feita, ante a ausência de demonstração inconteste de que o Apelado tenha contribuído, dolosa ou culposamente, para com o extravio da arma que custodiava, faz-se mister a manutenção de sua absolvição, inclusive em respeito ao princípio fundamental de direito penal do in dubio pro reo, consubstanciado no art. 386, II, do Código de Processo Penal (correspondente ao art. 439, “c”, do CPPM), ex vi: “o juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: (…) VII – não existir prova suficiente para a condenação”. 5. Apelo conhecido e improvido, em divergência do parecer ministerial.

Em síntese, apesar de alguns julgados do STF, como colocado neste artigo, tipificar a conduta negligente ou imprudente do militar sempre como extravio de arma de fogo, em razão da critério da especialidade, para a doutrina majoritária e a jurisprudência em sua maioria, para que haja o crime de peculato culposo, é imperiosa a presença de um terceiro. Vale mencionar, que a acusação não pode de desincumbir do dever de trazer aos autos provas, não podendo se valer apenas de instrumentos preparatórios, como um boletim de ocorrência.

REFERÊNCIAS

Comentários ao Código Penal Militar. 9. Ed. Curitiba: Juruá, 2017.

MACEDO, Amilcar. Extinção da punibilidade por peculato culposo ao extravio de arma de fogo. Observatório da Justiça Militar. Disponível em:< https://www.observatoriodajusticamilitar.info/single-post/extin%C3%A7%C3%A3o-da-punibilidade-por-peculato-culposo-ao-extravio-de-arma-de-fogo>. Acesso em: 13 de julho de 2023.

NEVES, Cícero Robson. Manual de direito processual penal militar: (em tempo de paz). São Paulo: Saraiva, 2014.


  1. 1º Tenente QOPM formado pela Academia da Polícia Militar do Piauí. Bacharel em Direito pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina – CEUT. Bacharel em Segurança Pública pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI. Especialização em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhanguera – UNIDERP. E-mail: [email protected]

Sobre o autor
Vinicius Costa de Moraes

Bacharel em Direito pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina – CEUT. Bacharel em Segurança Pública pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI. Especialização em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhanguera – UNIDERP. Oficial formado pela Academia da Polícia Militar do Piauí. Ex-Diretor Administrativo adjunto do HPMPI. Atualmente Gerente de Recursos Humanos e coordenador do projeto HPM nos Bairros.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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