O presente artigo tem como objetivo trazer, em linhas gerais, uma análise sobre a usucapião extrajudicial, destacando sua importância e benefícios
Introdução
A usucapião é um instituto jurídico que permite a aquisição da propriedade de um bem por meio da posse prolongada e ininterrupta, desde que preenchidos certos requisitos legais. Até recentemente, a usucapião era um processo exclusivamente judicial, envolvendo ações judiciais para comprovar os requisitos e obter uma declaração de propriedade. No entanto, com o advento da Lei nº 13.105/2015, foi orientada a possibilidade de realizar a usucapião extrajudicial, um procedimento mais ágil e menos oneroso para regularizar a propriedade, dispensando a intervenção do Poder Judiciário. Neste artigo, iremos explorar a legislação e a doutrina relacionada à usucapião extrajudicial, destacando sua importância e benefícios.
Da usucapião extrajudicial
De proêmio, importante destacar que o exercício da jurisdição não é exclusivo do Poder Judiciário e assim ensina Humberto Dalla Bernardino de Pinho:
“O Novo Código de Processo Civil trouxe, em seu art. 3º, o comando de que "não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito", enquanto o texto constitucional, em seu art. 5º, XXXV, entende que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Embora haja similitude entre as duas redações, uma leitura mais atenta revela que o comando infraconstitucional busca oferecer uma garantia mais ampla, extrapolando os limites do Poder Judiciário, a quem incumbe prestar a jurisdição, mas não como um monopólio.”
Assim, cabe ao legislador criar ferramentas que desafoguem o judiciário, e uma delas foi a usucapião extrajudicial, que através do art. 1071 do Código de Processo Civil incluiu o art. 216-A na Lei de Registros Públicos, que oferece uma alternativa eficiente para aqueles que desejam regularizar a situação de imóveis objeto de usucapião. Diferentemente do processo judicial, que envolve ações perante o Poder Judiciário, a usucapião extrajudicial ocorre perante o Cartório de Registro de Imóveis, vejamos:
Art. 216-A- "Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial da usucapião, que será processado diretamente perante o cartório de registros de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado (......)".
Desta feita, cabe ao Registrador de Imóveis a realização do procedimento, análise e decisão de questões relativas à usucapião extrajudicial e neste sentido Leonardo Brandelli:
“O registrador pode e deve presidir os processos de reconhecimento da aquisição da propriedade imobiliária pela usucapião em que não há lide, por ser atividade que lhe é mais afeta do que ao juiz.”
Com efeito, importante destacar que a usucapião extrajudicial é uma alternativa, todavia não afasta a matéria da apreciação do judiciário.
Da Legislação Aplicável
A usucapião extrajudicial encontra respaldo legal no Código de Processo Civil no seu art. 1071, o qual incluiu o art. 216-A na Lei 6015/1973 e previu a possibilidade da usucapião extrajudicial. Ao lado das referidas legislações, o Conselho Nacional de Justiça expediu o Provimento 65 de 2017, o qual tem por escopo estabelecer as diretrizes a serem adotadas para os procedimentos pelos Registrários e mais, tornar o procedimento unificado em âmbito nacional.
Do tempo de posse para Usucapião Extrajudicial
A lei previu diferentes figuras de usucapião e assim para cada um deles, há um prazo.
Quanto a imóveis, temos a usucapião extraordinária (art. 1238, CC) que exige prazo mínimo de posse de 15 anos; a usucapião ordinária (art. 1242, CC) mínimo de 10 anos de posse; a usucapião especial (art. 1239 e 1240, CC) mínimo de 5 anos de posse e por fim, a usucapião especial familiar (conhecida por “abandono de lar”; CC, art. 1.240-A), que se completa em 2 anos.
Assim, é sempre necessária uma análise do caso concreta, feita por advogado especialista, para afirmar se uma determinada situação se enquadra numa figura ou em outra. Ao se definir a figura correspondente, descobrimos o prazo exigido – além dos demais requisitos, que deverão ser todos provados, seja o procedimento judicial ou extrajudicial.
Quando optar pela Usucapião Extrajudicial
O procedimento de usucapião extrajudicial não envolve lide, de modo que é necessariamente baseado na concordância dos envolvidos que deve ser de modo expresso ou tácito em que o possuidor seja reconhecido como novo dono.
A usucapião extrajudicial é vantajosa pela sua maior simplicidade e celeridade, quando comparado ao rito judicial. Uma possibilidade muito interessante desse procedimento é ser uma ferramenta de regularização de imóveis – aqueles não registrados no nome de quem deveria ser reconhecido como dono.
Para exemplificar temos as situações dos imóveis negociados com “contratos de gaveta”, que são aqueles que foram comprados ou herdados e não foram transferidos para a titularidade do adquirente. Outro exemplo são os loteamentos irregulares em que dependendo do caso pode conseguir a escritura através da usucapião extrajudicial.
Com efeito, essa modalidade de usucapião extrajudicial oferece diversas vantagens, tais como celeridade, menor custo e desburocratização do processo de regularização fundiária. Além disso, a possibilidade de realizar a usucapião extrajudicial incentiva a pacificação social, uma vez que a regularização da propriedade permite maior segurança jurídica para o possuidor e evita conflitos futuros.
Todavia, é importante ressaltar que a usucapião extrajudicial não é aplicável em todas as situações. Existem casos em que a via judicial ainda é necessária, como quando há litígio sobre a propriedade ou quando há falta de consenso entre os interessados. Nesses casos, o processo judicial de usucapião continua sendo a opção adequada.
Do procedimento da usucapião extrajudicial
O procedimento de usucapião extrajudicial requer a elaboração de um requerimento, assinado pelo possuidor e por seu advogado, instruído com a documentação necessária, como planta e memorial descritivo do imóvel, certidões negativas, prova de quitação de tributos e recibos de pagamento de despesas condominiais, entre outros. Uma vez apresentados todos os documentos, o Cartório de Registro de Imóveis realizará as devidas averbações e, caso não haja impugnação por parte dos interessados, será possível obter o registro do imóvel em nome do possuidor usucapiente.
O referido requerimento deve conter as seguintes informações: a) modalidade de usucapião requerida e sua base legal ou constitucional; b) a origem e as características da posse; c) a existência de edificação, de benfeitoria ou de qualquer acessão no imóvel usucapiendo, com a referência às respectivas datas de ocorrências; d) o nome e o estado civil de todos os possuidores anteriores cujo tempo de posse foi somado ao do requerente para completar o período aquisitivo; e) o valor atribuído ao bem em questão (valor venal ou de mercado).
De suma importância que anteriormente ao requerimento, o interessado deve procurar o Tabelionato de Notas do local do imóvel e realizar uma Ata Notarial que é um instrumento público que tem por escopo justificar a posse par fins de usucapião, como tempo, os antecessores, nos termos do art. 384 do CPC. E assim ensina Leonardo Brandelli:
“O objeto da Ata Notarial é, portanto, um fato jurídico captado pelo Notário, por intermédio de seus sentidos, e transcrito no documento apropriado; é mera narração de fato verificado, não podendo haver por parte do Notário qualquer alteração, interpretação ou adaptação de fato, ou juízo de valor.”
A ata Notarial é o início de prova para conhecimento posterior do reconhecimento da propriedade pela usucapião.
Juntamente o a ata notarial o interessado deve instruir o requerimento com os seguintes documentos: a) planta e memorial descritivo realizados por um Engenheiro com ART quitada; b) certidões judiciais acerca do imóvel e dos interessados; c) procuração com poderes especiais outorgados ao assistente jurídico; d) documentos complementares que comprovem a posse ou justo título, se houver; e) certidão que demonstre a natureza urbana ou rural do imóvel; f) anuência dos confrontantes e de eventuais titulares de direitos reais inseridos na matrícula.
No que tange à necessidade de anuência de eventuais titulares de direitos reais inscritos na matrícula do imóvel usucapiendo ou na dos confrontantes, nos termos do art. 1071, IV, parágrafo 2º do CPC caso tais anuências não constem na planta ou memoriais descritivos apresentados, caberá ao Registrador notificar pessoalmente ou através do Correio com aviso de recebimento, para que se manifestem no prazo de quinze (15) dias, valendo eventual silêncio como concordância. Contudo, caso tais titulares de direitos reais estejam em lugares incertos ou não sabidos, o parágrafo treze do citado artigo, estabelece o dever do Registrador de proceder, à Notificação por Edital, mediante publicação por duas (02) vezes em jornal de grande circulação, para, a partir daí, iniciar-se o prazo de quinze dias para eventual manifestação.
A partir da apresentação de tais documentos ao registrador de imóveis, caberá a este fazer a prenotação do procedimento e cobrar os emolumentos respectivos.
Cumpre destacar aqui que, no que tange ao prazo de prenotação, este é diverso do usual que são 30 dias. De acordo com o artigo 216-A, § 1º da lei 6.015/73 que o prazo de prenotação fica prorrogado até que haja a análise do pedido pelo Registrador, acolhendo ou não a pretensão.
Após a prenotação do pedido, cabe ao Registrador fazer a autuação deste Procedimento, com termo de abertura, numeração e rubrica de todas as folhas. A partir daí, todos os atos a serem praticados pelo registrador deverão ser certificados nos autos.
Protocolado o requerimento com todas as documentações presentes e autuados, o Registrador de Imóveis fará a sua primeira análise de conformidade do título ou documento com o ordenamento jurídico vigente, ou seja, verificará se há legitimidade, se os documentos acostados nos autos provam a prescrição aquisitiva do imóvel, e se foram apresentados todos os documentos exigidos na lei.
Se não estiverem presentes quaisquer desses elementos citados, o Registrador fará uma nota devolutiva fundamentada, devolvendo os documentos ao interessado. Por sua vez, caso o interessado não concorde, poderá requerer que o Registrador realize o Procedimento de Dúvida, nos moldes do artigo 198 da lei 6.015/73.
Se foram apresentados todos os documentos e a análise probatória constatar que existe a posse com o cumprimento específico do prazo pra aquisição da usucapião na modalidade pretendida, o Registrador fará uma primeira qualificação positiva, certificando nos autos e dando prosseguimento devido ao Procedimento.
Todavia, caso o Registrador entenda necessário ele pode solicitar que o interessado apresente documentos complementares para reforçar o conjunto probatório.
Estando todos os documentos em ordem, todos os confrontantes e supostos titulares de direitos reais inseridos na matrícula concordes e anuentes, caberá ao Registrador notificar os entes públicos, União, Estado ou Distrito Federal e Município, de acordo com o previsto no § 3º do artigo 216-A da lei 6.015/1973.
Neste momento, os Entes Públicos terão o prazo de 15 dias para se manifestarem à respeito do bem ser público ou não. A finalidade da notificação aos Entes Públicos é tão somente de afastar a possibilidade do bem ser público e não privado., uma vez que bens públicos não são passíveis de usucapião.
Se o ente quedar-se inerte dentro do prazo de 15 dias, isto implicará desinteresse tácito, que deverá ser certificado pelo Registrador e o Procedimento continuará no seu tramite normal.
Por outro lado, havendo discordância de algum dos Entes Públicos, ficará vedada a Usucapião pela via extrajudicial, cabendo ao Registrador fazer uma qualificação negativa e remeter os autos ao Juízo competente, por força do previsto no artigo 216-A, § 10 da lei 6.015/73.
Superada esta fase, se silentes os entes públicos, deve o Registrador de Imóveis publicar em jornal de grande circulação do Município local um Edital contendo um resumo do Procedimento e com a descrição do imóvel para fins de publicidade. Através desta publicação, toda a sociedade vai tomar ciência da realização do procedimento, que são os chamados legitimados passivos incertos, definidos nas palavras de Leonardo Brandelli:
“Há, porém, os legitimados passivos incertos que são as pessoas que possam eventualmente ter algum direito afetado pelo acatamento do pedido de usucapião, mas que não são inicialmente conhecidas ou identificadas.”
Nessa toada, há a previsão de um prazo de 15 dias que os legitimados incertos possam se manifestar reivindicando eventual direito conflitante com o do interessado.
Sendo certo, que se existir alguma impugnação dos chamados legitimados incertos, caberá aqui também ao Registrador encerrar o Procedimento e encaminhar os autos ao juízo competente.
E por óbvio, se passado este prazo sem que tenha havido impugnação, o Registrador dará seguimento ao procedimento, certificando nos autos do Procedimento tal situação.
Um ponto que merece destaque é a controvérsia doutrinária existente a acerca da forma de contagem dos prazos a manifestação dos Entes Públicos e dos chamados legitimados incertos se seria em dias corridos ou úteis. Embora haja quem sustente que em razão da celeridade que requer o procedimento, os prazos devem ser computados em dias corridos, a doutrina majoritária entende que os prazos devem ser contados em dias úteis, em atenção ao artigo 15 c/c que trata da aplicação subsidiária do CPC em caso de omissão c/c art. 219 do Código de Processo Civil que trata da matéria de contagens de prazos, determinando a contagem em dias úteis.
Superada a fase das notificações dos entes públicos e legitimados incertos, chega-se a fase da qualificação final do Registrador de Imóveis. Estando o pedido formal e materialmente em ordem, deverá o oficial aceitar o pedido de forma fundamentada e realizar o registro.
Ponto importante que merece destaque é a existência de ônus real ou de gravame na matrícula do imóvel não impede o registro da aquisição da propriedade por usucapião, tendo em vista ser modalidade de aquisição originária.
Embora o Provimento 65 de 2017 preveja que o registro da Usucapião é uma averbação, em verdade como se trata de aquisição imobiliária é objeto de registro e não de averbação, de modo que houve falha técnica quando da elaboração do Provimento. E nesse sentido Leonardo Brandelli:
Restando provada a aquisição do direito real imobiliário pela usucapião, e, sendo assim, acolhido pelo Oficial de Registros o pedido da parte, deverá ser praticado um registro 'stricto sensu' de usucapião, nos termos dos artigos 167,I, e artigo 28 da lei 6.015/73.
Insta esclarecer que por se tratar de modalidade de aquisição originária, que é um direito novo, o usucapiente recebe um imóvel desembaraçado e livre de quaisquer ônus reais ou gravames que porventura recaiam sobre o imóvel.
Inclusive não incide o imposto de transmissão de bens imóveis (ITBI), imposto de competência Municipal para instituir e cobrar em decorrência da modalidade de aquisição.
Diferente das outras aquisições de propriedade, nesta modalidade de não é necessário que a identificação do imóvel seja coincidente com a constante na matrícula; basta que a nova descrição contenha elementos mínimos de especialidade que possibilitem a abertura da matrícula.
Duas questões importantes sobre a aquisição de fração ou totalidade do imóvel matriculado. No caso de fração, deve-se fazer a averbação de destaque na matrícula de origem e abrir nova matrícula só para esta área usucapida com o consequente registro da aquisição. No caso de aquisição da totalidade o registro será na própria matrícula existente, muito embora o Provimento fale em averbação como acima exposto.
Da Importância e Benefícios
A usucapião extrajudicial traz consigo uma série de benefícios para os interessados na regularização fundiária. Em primeiro lugar, o procedimento é mais célere e menos oneroso em comparação à usucapião judicial, pois dispensa a intervenção do Poder Judiciário. Isso contribui para a redução da morosidade processual e para a desburocratização da aquisição de propriedade.
Além disso, a usucapião extrajudicial proporciona maior segurança jurídica, uma vez que o cartório de registro de imóveis, especializado na matéria, realiza uma análise minuciosa dos documentos apresentados, conferindo mais eficácia e validade ao processo. Além disso, a atuação do cartório contribui para a prevenção de fraudes e irregularidades na aquisição de propriedade por usucapião.
Conclusão
A usucapião extrajudicial representa um avanço no âmbito da regularização fundiária, oferecendo uma alternativa mais rápida, simples e econômica para a obtenção da propriedade de imóveis por meio da usucapião. Essa modalidade possibilita a regularização de inúmeras propriedades, promovendo a segurança jurídica e a pacificação social. No entanto, é fundamental que cumpram todos os requisitos legais e que o procedimento seja controlado de forma transparente e ética, garantindo assim a proteção dos direitos de terceiros. A usucapião extrajudicial, aliado a uma política de regularização fundiária eficiente, pode contribuir para a promoção da justiça social e o acesso à moradia digna para muitas pessoas.
Fontes:
BRANDELLI, Leonardo. USUCAPIÃO ADMINISTRATIVA. São Paulo. Saraiva. 2016.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.
CENEVIVA, Walter. LEI DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES COMENTADA. São Paulo. Saraiva, 2010.
LOUREIRO, Luiz Guilherme. REGISTROS PÚBLICOS. TEORIA E PRÁTICA. Salvador. Jus Podium, 2019.
-
PINHO, Humberto Dalla Bernardino de. A DESJUDICIALIZAÇÃO ENQUANTO FERRAMENTA DE ACESSO Á JUSTIÇA NO CPC/2015: A NOVA FIGURA DA USUCAPIÃO POR ESCRITURA PÚBLICA. Revista Eletrônica de Direito Processual. Acessível no site: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/view/26605.