Breves notas sobre os bons costumes no ordenamento jurídico

31/07/2023 às 16:06
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Quando ocorre e o que exatamente significa dizer que um negócio jurídico contrariou os bons costumes? O que seriam, afinal, bons costumes?

A expressão bons costumes possui diferente significação e aplicação dentro da ordem jurídica e mesmo dentro da sociedade.2 Assim, pode-se estar diante de um negócio jurídico celebrado contra os bons costumes e necessitará o intérprete aplicar o direito e atribuir ao contrato a consequência jurídica.

O Código Civil, em cinco dispositivos, expressamente refere-se à expressão bons costumes. (BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002).

Ao disciplinar os direitos da personalidade, o Código Civil, no artigo 13, prevê: “Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes”.

No capítulo que trata da condição, do termo e do encargo nos negócios jurídicos, o Código Civil, no artigo 122, prevê: “São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes”.

Já o artigo 187 do Código Civil dispõe expressamente que “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

O artigo 1.336, inciso IV, utiliza a expressão como balizadora da conduta do condômino ao prever, dentre os seus deveres, o de “dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes”.

Por fim, a expressão é utilizada no artigo 1.638, ao prever, dentre as hipóteses de perda do poder familiar, por ato judicial, ao pai ou à mãe que: “praticar atos contrários à moral e aos bons costumes”.

Por sua vez, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro prevê, em seu artigo 17, que “As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes”.

Percebe-se, a partir dos dispositivos legais supramencionados, que a lei não especifica, para nenhuma das hipóteses em que a expressão é utilizada, qual é o conceito, o significado e o real conteúdo dos chamados bons costumes. A lei não prevê, ademais, quando um negócio jurídico contraria ou não os bons costumes.3

Tampouco a lei expressa quais seriam os bons e – em contrapartida – quais seriam os maus costumes. Pode-se questionar, a partir daí, quem avalia os bons ou maus costumes e quais os critérios que utiliza para tanto. Se houve um tempo em que ao rei era centralizada essa tarefa, mesmo com os abusos daí decorrentes – abuso da função legislativa e monopólio da criação do direito4 –, quem hoje a desempenharia sem que os mesmos erros ocorressem, sem que abusos fossem cometidos ou, em outras palavras e mais especificamente, sem que costumes danosos venham a prevalecer?

As respostas a esses questionamentos, certamente, dependerão da análise do intérprete no caso concreto, de acordo, inclusive, com os valores insertos na própria ordem jurídica. Nesse sentido, os próprios usos e costumes, sim, até certo modo, ao lado da jurisprudência (ou por ela consagrados), podem vir a conformar aquilo que se qualifica como bons costumes. Já que são os usos e costumes utilizados na interpretação dos negócios jurídicos.

Especificamente no que tange ao disposto no artigo 187 do Código Civil, pode-se afirmar, a partir da análise da doutrina e da jurisprudência que referido dispositivo pode ser compreendido como uma “cláusula geral de ilicitude, de índole objetiva”.5

Referida previsão legal deixa claro, no ordenamento jurídico, que há abuso não apenas quando há a intenção de prejudicar, mas sim quando o exercício de um direito exceder manifestamente os limites impostos pelo fim econômico ou social, pela boa fé e pelos bons costumes.

Está, desse modo, contida, no mesmo dispositivo legal, a referência a quatro princípios fundamentais do ordenamento: o abuso de direito, o fim social, a boa-fé e os bons costumes.6 Como cláusula geral que é, contudo, dependerá da pontual aplicação por parte da doutrina e da jurisprudência – ao fim, por parte do intérprete, diretamente – para compor todo o seu alcance e aplicabilidade prática dentro do ordenamento jurídico.

REFERÊNCIAS

AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. Projeto do Código Civil: obrigações e contratos. Revista do Conselho da Justiça Federal. Brasília, v. 3, n. 9, p. 31, set./dez. 1999

BRANCO, Gerson Luís Carlos; MARTINS-COSTA, Judith. Diretrizes teóricas do novo Código Civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 109.

BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

CASTRO, Thamis Dalsenter Viveiros de. Bons costumes no direito civil brasileiro. Coimbra: Almedina, 2017.

FLUME, Werner. El negocio juridico. Parte general del derecho civil. 4. ed. Madri: Fundación Cultural del Notariado, 1992. v. 2.

IÓRA, Natália Inez. Os Usos Negociais e os Contratos Empresariais. O conteúdo, as funções e o alcance dos usos no processo contratual. São Paulo: Quartier Latin, 2020.

SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. História do direito português: fontes de direito. 2.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1991.


  1. Abordando especificamente a cláusula geral dos bons costumes: CASTRO, Thamis Dalsenter Viveiros de. Bons costumes no direito civil brasileiro. Coimbra: Almedina, 2017.

  2. Werner Flume, em sua obra “El Negocio Juridico”, aborda, ao tratar dos negócios jurídicos ilícitos, “el negocio jurídico contrario a las buenas costumbres”, e afirma que “La Ley no especifica cuándo un negocio jurídico contraviene las buenas costumbres”. (FLUME, Werner. El negocio juridico. parte general del derecho civil. 4. ed. Madri: Fundación Cultural del Notariado, 1992. v. 2, p. 435). E, adiante, afirma: “la indeterminación del concepto de buenas costumbres está en contradicción con el postulado de la seguridad jurídica, que exige que todos sepan qué negocio jurídico puede o no puede realizarse eficazmente”. (Ibidem, p. 436).

  3. Essa abordagem do poder do rei na apreciação do costume e dos efeitos daí decorrentes foi utilizada ao abordar os bons costumes no Os Usos Negociais e os Contratos Empresariais, comparativamente ao Direito Português, conforme abordado por: SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. História do direito português: fontes de direito. 2.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1991. p. 239.

  4. BRANCO, Gerson Luís Carlos; MARTINS-COSTA, Judith. Diretrizes teóricas do novo Código Civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 109.

  5. Ibidem, p. 109. Por sua vez, Ruy Rosado de Aguiar Júnior, acerca do dispositivo em comento, afirmou que se trata de “regra quase perfeita, que servirá para iluminar todo o Direito Obrigacional no Brasil”. (AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. Projeto do Código Civil: obrigações e contratos. Revista do Conselho da Justiça Federal. Brasília, v. 3, n. 9, p. 31, set./dez. 1999).

Sobre a autora
Natália Inez Ióra

Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo – UPF. Pós-graduada em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Pós-graduada em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Professora de Graduação e Pós-Graduação. Membro do Instituto de Estudos Jurídico-Empresariais do Rio Grande do Sul. Advogada na Ióra Advogados.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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