Mais do que um simples "tapinha": entenda o que a "Lei da Palmada" realmente visa coibir - Parte 4:

O estado emocional alterado dos pais ao aplicar o castigo físico.

31/07/2023 às 16:11
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Para se conduzir um veiculo motorizado, há regras bem definidas sobre onde, quando e como isto deve acontecer, tendo em vista o bem comum. E uma destas regras implica em não dirigir sob estado emocional alterado. Do mesmo modo, deve-se ter o mesmo cuidado quando tratamos da condução de algo muito mais valioso: a vida de um ser humano em formação.

Os pais "pró-palmada" defendem que o Estado "se intromete" em seu direito familiar de educar os filhos, argumentando que são contra espancamentos, mas que são favoráveis a castigos físicos "moderados" em crianças e/ou adolescentes que se comportam mal. Todavia, na prática, a história muitas vezes é outra.

Num cenário ideal, o castigo físico funcionaria assim: um dos pais (ou ambos) diz ao filho que ele não deve desobedecer. Em seguida, o filho desobedece. Na sequência, um dos genitores (ou os dois juntos) dá um aviso de que, numa segunda desobediência, o filho será castigado fisicamente. Numa segunda vez, o filho desobedece e é punido com uma ou mais palmadas. O filho chora um pouco, mas, depois de um tempo, cai em si, se dá conta de que agiu errado, pede desculpas, os pais aceitam as desculpas e a vida segue (ao menos até a próxima desobediência). Mas, na prática, tudo muda.

Em um cenário prático, é comum que os pais já estejam enervados com uma ou mais preocupações, de modo que a insubordinação do filho vem para deixá-los com o emocional ainda mais alterado. Com isto, são feitas ameaças desproporcionais ao grau do erro cometido pelo menor, de modo que aplicam um castigo físico extremamente pesado, muitas vezes utilizando-se de instrumentos que podem ferir (como, por exemplo, um cinto, que tem fivelas), e/ou, ainda, empregando uma força tal que pode até matar. Neste caso, os pais correm o risco de cometer o crime de lesão corporal (Art. 129 do Código Penal Brasileiro) ou até mesmo assassinato (Art. 121 do CP).

Em seu livro "Meu Pé de Laranja Lima", José Mauro de Vasconcelos conta sobre duas surras "memoráveis" que sofreu, conforme indica o próprio capítulo de seu livro. Em uma delas, ele narra a vez em que respondeu mal à irmã mais velha e, por isto, apanhou dela e do irmão mais velho. Confira abaixo como foi administrada a punição física:

"Ela apanhou a mão de couro sobre a cômoda e começou a me bater sem piedade. (...) Então ele começou a me bater na cara, nos olhos, no nariz e na boca. Sobretudo na boca..." (p. 86)

Ele continua a narrativa, mostrando o estado em que ficou ao sofrer o castigo físico, e os danos físicos que a punição lhe causou.

"Eu jazia no chão sem quase poder abrir os olhos e respirando com dificuldade. (...) E conforme me limpava o sangue, eu cuspi na bacia um pedaço de dente." (p. 86)

No caso, quem limpava o sangue de Zezé (personagem central da história) era Glória, uma de suas irmãs.

Numa outra surra "memorável" sofrida, o escritor conta com detalhes como quase desmaiou ao apanhar do pai, quando simplesmente queria cantar para alegrá-lo e apaziguar a angústia que seu genitor estava sentindo. Veja abaixo, em detalhes, como foi o castigo.

"Desabotoou o cinto. Aquele cinto que tinha duas rodelas de metal e começou a me xingar apoplético. De cachorro, de porcaria, de traste vagabundo, se era assim que falava do seu Pai. O cinto zunia com uma força danada sobre o meu corpo. Parecia que o cinto tinha mil dedos que me acertavam em qualquer parte do corpo. Eu fui caindo, me encolhendo no cantinho da parede. Estava certo que ele ia me matar mesmo. (...) Quando Glória me apanhou do chão, eu desmaiei." (p. 90)

Neste exemplo, Paulo Vasconcelos (pai de Zezé), de acordo com o Código Penal Brasileiro atual, responderia por:

  • Agressão (Art. 129 do Código Penal Brasileiro), já que bateu em Zezé;

  • Lesão corporal (citada no mesmo artigo), por ter deixado marcas físicas no filho e por ter se "empolgado" no castigo que infligiu; e

  • Injúria (Art. 140 do CP), pelos nomes dos quais xingou o garoto.

No mesmo relato, Zezé narra: "Depois eu soube que queriam chamar o médico, mas não ficava bem." (p. 90) Neste caso, configuraria-se o crime de maus-tratos, já que o menino foi privado de receber cuidados médicos, porque os adultos da casa não queriam ter de explicar ao profissional de saúde que o estado debilitado desta criança se deu por causa de uma surra que ele sofreu por parte dos próprios pais e irmãos.

Muitos pais podem jurar que jamais castigariam fisicamente seus filhos a este ponto. Porém é preciso ter em mente que as emoções extremamente intensas são traiçoeiras e que, uma vez fora de controle, podem, sim, levar a desfechos do tipo ou até piores, conforme já aconteceu em casos como este: https://patoshoje.com.br/noticias/pai-perde-a-cabeca-ao-descobrir-mentira-e-esfaqueia-o-filho-de-15-anos-em-patos-de-minas-48148.html

O pai citado acima cometeu o crime de lesão corporal, previsto no Art. 129 do CP, além do que um episódio como este seria, ainda, passível da perda do poder parental, de acordo com o Art. 1638, § I.

Tendo em vista os relatos mencionados neste artigo, fora muitas outras situações que volta e meia acontecem em pleno seio familiar, a Lei da Palmada veio justamente coibir este tipo de desenlace para os nossos menores. Assim como um condutor em estado psicossocial alterado pode causar acidentes fatais no trânsito, um genitor com a psique abalada pode causar danos gravíssimos a crianças e/ou adolescentes sob sua guarda.

Num próximo artigo, falarei sobre como a sociedade tenta justificar os abusos físicos contra crianças e adolescentes, usando como pretexto o desgosto parental.

Créditos da imagem: https://www.mulher.com.br/familia/gravidez-e-bebes/5-razoes-para-nao-bater-no-seu-filho-fazem-bem-para-ele-e-especialmente-para-voce

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Sobre o autor
Ronaldo Duarte

Um ser humano em busca da equidade entre as pessoas.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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