As barreiras não tarifárias no Mercosul: retrocesso silencioso da harmonização regulatória

01/08/2023 às 17:46
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Resumo

Na atualidade, em razão dos êxitos sucessivos na eliminação e na redução de tarifas ao comércio, outros aspectos que interferem nos fluxos comerciais passam a concentrar a atenção daqueles que buscam a liberalização do comércio internacional. Um dos aspectos atuais mais importantes do comércio internacional está relacionado à existência de barreiras técnicas ao comércio (TBT) e de medidas sanitárias e fitossanitárias (SPS), que obstam ou encarecem os custos do intercâmbio comercial. A importância das barreiras não tarifárias pode ser identificada no âmbito multilateral de comércio (nas atividades da Organização Mundial de Comércio, OMC) e nos diversos acordos preferenciais, inclusive nos projetos de integração comercial, como, por exemplo, a ALADI e o Mercosul. No presente artigo, o objetivo do autor é verificar como a integração do Mercosul, em governos liberais, careceu de iniciativas de convergência regulatória, paralisando o processo de aprofundamento da integração.

Palavras-chave: barreiras não tarifárias; integração regional; Mercosul; enfraquecimento da convergência regulatória.

 

1. Introdução

Na atualidade, em razão dos êxitos sucessivos na eliminação e na redução de tarifas ao comércio, com as rodadas do General Agreement on Tariffs and Trade (GATT) e da Organização Mundial do Comércio (OMC), outros aspectos que interferem nos fluxos comerciais passam a concentrar a atenção dos projetos que buscam a liberalização do comércio internacional. Um dos aspectos atuais mais importantes está relacionado à existência de barreiras não tarifárias ao comércio, especialmente barreiras técnicas ao comércio (TBT) e de medidas sanitárias e fitossanitárias (SPS), que obstam ou encarecem os custos do intercâmbio comercial. Ao lado dessas barreiras não tarifárias tradicionais, precariamente equacionadas no âmbito do sistema multilateral de comércio, existem as novas barreiras ambientais, que, embora apresentem aparência de TBT e SPS, apresentam dinâmica própria de elaboração e aplicação. O ponto de intersecção entre essas barreiras é a sua característica regulatória, pois incidem sobre bens internalizados nos mercados importadores.

Não por acaso, a proliferação desses obstáculos não tarifários ao comércio, que, em certas situações, pode configurar uma espécie de neoprotecionismo (PRAZERES, 2002), resulta da intensa atividade regulatória dos Estados, os quais são demandados pela sociedade a organizar, mediante instrumentos normativos, as mais diversas dimensões da economia. A importância das barreiras não tarifárias pode ser indiretamente identificada no âmbito multilateral de comércio (OMC) e nos diversos acordos preferenciais, inclusive nos projetos de integração regional, como, por exemplo, a Associação Latino-Americana de Integração (ALADI) e o Mercado Comum do Sul (Mercosul). As regras do comércio internacional buscam, com frequência, mitigar os efeitos dessas barreiras sobre o fluxo de comércio. Partindo-se do pressuposto de que essas barreiras não podem ser eliminadas e de que os reflexos sobre o comércio costumam ser efeitos colaterais de medidas direcionadas a realização de uma aspiração social legítima, as normas de comércio internacional, sejam preferenciais ou multilaterais, buscam simplesmente reduzir os efeitos comerciais negativos das medidas.

No presente artigo, o autor apresenta a tese segundo a qual a perspectiva puramente liberal de integração comercial é progressivamente incapaz de oferecer formas de redução de barreiras comerciais e de integração dos mercados. A natureza das atuais barreiras ao comércio demanda o aprofundamento da integração por meio de mecanismos cada vez mais refinados de convergência regulatória, que requerem menos a supressão de regras do que a produção convergente de novas regras. Fazendo uso do Mercosul como exemplo, buscar-se-á verificar que governos e políticas de orientação liberal não aprofundaram a integração regional por meio de convergência regulatória, resultando em possíveis impactos negativos para o comércio intrabloco.

 

2. A emergência das barreiras regulatórias

 

As necessidades múltiplas da sociedade moderna demandam a intervenção do Estado em diversos setores econômicos. Mesmo nos governos autodeclarados liberais, a lógica do mercado não é a única determinante das atividades produtivas. O Estado, com frequência, intervém na produção e na comercialização de bens e serviços, com o objetivo de tornar as atividades produtivas e os produtos em conformidade com múltiplos e difusos interesses públicos. Por exemplo, a busca pela proteção da saúde pública e do meio ambiente são dois objetivos desvinculados da lógica econômica imediata, mas dotados de importância social crescente. Para alcançar esses objetivos socialmente relevantes, o Estado cria regras que incidem direta e indiretamente sobre os comportamentos dos agentes econômicos, os quais passam a ajustar suas atividades a prescrições jurídicas e aos mecanismos de punição e incentivo institucionalizados pelo Estado.

Na linguagem econômica ortodoxa, com frequência, essa regulação consiste em simplesmente reduzir falhas de mercado, como, por exemplo, externalidades negativas. Em outras situações, no entanto, a regulação resulta de demandas de setores específicos da sociedade, como, por exemplo, associações ambientalistas e de bem-estar animal. A ideia atual de fair trade, por exemplo, está imediatamente relacionada ao atendimento de demandas específicas como as formuladas por Organizações Não-Governamentais (ONGs) e por consumidores engajados que se articulam em redes reais e virtuais e atuam mediante influência sobre a opinião pública e convencimento direto do consumidor comum, dos Estados e das organizações internacionais.

Essa proliferação regulatória tem fortes impactos sobre o comércio internacional. O sistema multilateral de comércio, por sua vez, trata do tema de maneira bastante incompleta. No que se refere ao comércio de bens, há dois importantes acordos que têm como objeto as barreiras técnicas e as medidas sanitárias e fitossanitárias que interferem sobre o comércio internacional. O Acordo sobre Barreiras Técnicas e o Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias, no entanto, ambos assinados na Rodada Uruguai, tratam apenas de parcela dos problemas relacionados aos efeitos da atividade regulatória sobre o comércio internacional. Aspectos não relacionados à discriminação (vedada pelo princípio do tratamento nacional e pela cláusula da nação mais favorecida, previstos, respectivamente, pelos art. 3 e 1 do GATT) são tratados de forma insuficiente pelas disposições dos dois acordos e pelas regras multilaterais de comércio em geral. Mesmo considerando os ativos trabalhos dos Comitês especializados vinculados aos dois acordos e a possibilidade de utilização do eficiente sistema de solução de controvérsias da OMC, os esforços, no âmbito multilateral, têm sido insuficientes para superar o problema das barreiras regulatórias, na visão dos agentes econômicos.

O problema das barreiras ambientais é ainda mais complexo. Primeiramente, embora o tema do meio ambiente seja contemplado pelo sistema multilateral, não há um acordo específico que atrele meio ambiente ao comércio. Em segundo lugar, mesmo que seja contemplado documento normativos importantes como o GATT e o Acordo TBT, o tema ambiental não é disciplinado em sua complexidade atual, sendo mencionado em dispositivos pontuais de acordos voltados para outros temas. Adicionalmente, as barreiras ambientais têm assumido formas que, com frequência, se afastam das barreiras técnicas tradicionais.

Em razão dessa deficiência do sistema multilateral de comércio, muitos acordos parciais de comércio avançam e aprofundam o tema das barreiras regulatórias. Recentes e antigos arranjos comerciais passam a tratar desse tema, com disposições e capítulos destinados às dimensões regulatórias. Paralelamente, eles avançam também para aspectos regulatórios que afetam áreas múltiplas das relações econômicas dos parceiros, não necessariamente relacionadas ao tradicional intercâmbio de bens (HOEKMAN; MAVROIDIS, 2015). Temas direta e indiretamente relacionados ao comércio de bens são profundamente afetados pelas políticas regulatórias dos países. A normativa de alguns desses temas foi formalizada nos acordos da década de 1990: comércio de serviços, investimentos relacionados ao comércio internacional e as políticas de proteção à propriedade intelectual. Outros temas, no entanto, não foram tratados ou satisfatoriamente equacionado no âmbito multilateral. Em todos esses temas, a dimensão regulatória é predominante, o que tem demandado esforço adicional dos atores participantes das negociações comerciais, os quais passam a discutir aspectos diretamente relacionados às políticas domésticas, muitas vezes formulados por reguladores destituídos de experiência internacional (STEGER, 2012). Em vista dessa nova realidade econômica, os Estados e os agentes econômicos privados, por meio de iniciativas múltiplas, intentam aproximar seus sistemas regulatórios. Os acordos preferenciais de comércio, por sua vez, ainda que, geralmente, contenham anexos com cronograma de redução dos valores de linhas tarifárias, tornam-se, progressivamente, mais próximos de códigos de metarregulação, cujo objetivo é a intrusão no universo regulatório domésticos dos Estados partes.

 

3. Convergência regulatória na América Latina: as experiências da ALADI e do Mercosul

 

O tema da convergência regulatória não é central no âmbito da integração latino-americana mais ampla. Embora existam iniciativas normativas e políticas que tratem do tema, ele, por exemplo, não é considerado prioridade para os Estados partes da Associação Latino-Americana de Integração (ALADI), arranjo de integração mais abrangente do continente americano.

Essa pouca importância que o tema recebe no âmbito latino-americano decorre de duas características dos projetos de integração no subcontinente: período em que se iniciaram e falta de flexibilidade das estruturas da integração. Em razão desses problemas, os esforços de convergência regulatória são relegados aos processos de integração sub-regionais, que dispõem de instituições e arcabouço normativo favorável à aproximação de normas domésticas de seus membros.

A convergência regulatória é expressão direta da remoção de barreiras não tarifárias ao comércio. A criação de um livre mercado pressupõe não apenas uma conduta negativa dos Estados, que devem se abster de erigir barreiras tarifárias e não tarifárias, como também uma conduta positiva, que implica a remoção de barreiras existentes, inclusive barreiras regulatórias. Uma forma de remover barreiras regulatórias é por meio da aproximação dos sistemas normativos dos Estados membros, principalmente no que concerne à sua regulação técnica, aos seus procedimentos de avaliação de conformidade e às suas políticas de normalização. Esse tipo de conduta positiva dos Estados, em que há reflexos diretos sobre suas normas internas, requer estruturas de integração sofisticadas e intrusivas, as quais estão disponíveis apenas nos processos de integração sub-regional na América Latina.

 

3.1. ALADI

 

Um dos propósitos da Associação Latino-Americana de Integração (ALADI), conforme disposição do art. 1 do Tratado de Montevidéu (1980) é a formação de um mercado comum na região da América Latina. Seus membros se comprometem a eliminar, progressivamente, barreiras ao comércio, inclusive restrições não tarifárias ao intercâmbio regional de mercadorias (art. 13 do Tratado de Montevidéu), o que pressupõe cooperação regulatória entre os países da região (art. 2 do Tratado de Montevidéu).

O mais importante instrumento acerca de cooperação regulatória na ALADI é o Acordo Quadro para Promoção do Comércio Mediante a Superação de Barreiras Técnicas ao Comércio, assinado em 1997 e em vigor desde 1998[1]. Em linhas gerais, o acordo tem o objetivo de evitar que a elaboração, adoção e aplicação de regulamentos técnicos, normas técnicas e avaliação de conformidade constituam barreiras técnicas desnecessárias ao comércio intra-regional (art. 1.º). Em sintonia com o Acordo sobre TBT da OMC (art. 2.°), os Estados buscaram cumprir esse objetivo por meio da harmonização de regulamentos técnicos que possam atingir o comércio, sem que haja a redução dos níveis de proteção à vida e saúde humana animal e vegetal, ao meio ambiente, à segurança e ao consumidor (art. 3.°)[2]. Reconhece-se, portanto, a necessidade de proteção de determinadas dimensões, ainda que implique alguma restrição ao comércio, de forma similar ao estipulado no art. XX do GATT e no Acordo sobre TBT.

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No processo de harmonização, que é a forma de cooperação regulatória explicitamente adotada, os trabalhos realizados na região são utilizados sempre que possível e as normas técnicas internacionais existentes ou cuja aprovação seja iminente são consideradas (art. 6.º)[3]. A prioridade é atribuída à harmonização dos regulamentos técnicos que possam constituir barreiras técnicas desnecessárias ao comércio intra-regional (art. 7.º).

Verifica-se, adicionalmente, que os Estados da ALADI optaram por uma harmonização seletiva como forma principal de cooperação regulatória. Em outros termos, os membros da Associação escolhem as áreas prioritárias em que se devem se concentrar os esforços de harmonização regulatória, buscando-se, por consequência, áreas economicamente relevantes e bastante vulneráveis às tais barreiras. Dessa forma, o setor automotivo, por exemplo, foi considerado prioritário para os esforços de harmonização regulatória na ALADI.

Seguindo as soluções encontradas em outros acordos preferenciais, uma possível proposta de atuação para a ALADI seria a de adotar a opção de harmonização seletiva, buscando-se a cooperação primeiramente em setores economicamente mais relevantes para as economias da região, bem como seus desafios em matéria de convergência regulatória, levando-se em consideração a capacidade limitada dos Estados.

Conforme o art. 8 do Tratado de Montevidéu, a criação e o fortalecimento de sistemas de avaliação de conformidade e a viabilização do reconhecimento mútuo dos sistemas de avaliação de conformidade buscam também aprofundar a cooperação regulatória. As principais bases são recomendações de organismos internacionais especializados como a Organização Internacional de Normalização (ISO, conforme a sigla em inglês) e outros foros internacionais que reúnam entidades de credenciamento como o Foro Internacional de Credenciamento (IAF) e a Cooperação Internacional de Credenciamento de Laboratórios (ILAC).

O IAF é a associação mundial de Órgãos de Avaliação da Conformidade de Acreditação e de organismos correlatos interessados na avaliação da conformidade nas seguintes áreas: sistemas de gestão, produtos, serviços, recursos humanos e outros programas semelhantes de avaliação da conformidade. Seu trabalho precípuo é desenvolver um único programa mundial de avaliação da conformidade, com o objetivo de reduzir o risco para as empresas e para seus clientes, assegurando-lhes certificados emitidos por entidades credenciadas são confiáveis. A acreditação assegura aos usuários a competência e a imparcialidade do organismo acreditado (IAF, 2016).

O ILAC é a organização internacional para organismos de acreditação operantes consoante a norma ISO/IEC (17011) e envolvidos na acreditação de organismos de avaliação da conformidade, incluindo os laboratórios de calibração, baseado em normas ISO/IEC (17025), laboratórios de ensaio usando normas ISO/IEC (17025), laboratórios de ensaio médicos, usando normas ISO (15189) e os organismos de inspeção, usando normas ISO/IEC (17020).

Paralelamente à construção de sistemas de avaliação de conformidade, foi também criado um regime harmonizado a respeito da responsabilidade pela veracidade dos certificados e demais documentação expedida pelas instituições habilitadas e as sanções aplicáveis nos casos de emissão de certificações fraudulentas (art. 10)[5].

Dentro da estrutura formada por sistemas de avaliação de conformidade e pelo regime harmonizado, os países signatários atuam no sentido de encorajar a participação de suas entidades oficiais de credenciamento na Cooperação Interamericana de Acreditação (IAAC) e a participar na celebração de acordos de reconhecimento multilateral. Tais medidas têm o objetivo de possibilitar o reconhecimento mútuo das estruturas de avaliação de conformidade dos países (art. 12)[6].

No desenvolvimento desses objetivos de cooperação regulatória no âmbito da América Latina, deve ser destacado o papel da IAAC, que consiste em uma associação regional de organismos de acreditação e de outras organizações correlatas interessadas na avaliação da conformidade nas Américas. De forma sucinta, verifica-se que a IAAC promove a cooperação direta entre organismos de acreditação no continente americano. Seu objetivo, em termos gerais, é o desenvolvimento de estruturas de avaliação da conformidade para alcançar a melhoria de produtos, processos e serviços, reduzindo o risco para empresários e consumidores, mediante reforço na confiança nos certificados acreditados. A acreditação tem a finalidade de assegurar aos usuários a competência e a imparcialidade do organismo acreditado.

A IAAC tem múltiplos objetivos e exerce várias funções no âmbito do continente americano em matéria regulatória. Em primeiro lugar, a IAAC administra os Acordos de Reconhecimento Multilaterais entre seus organismos de acreditação de seus membros. Como complemento a essa função, a IAAC promove a harmonização de programas de acreditação de seus membros com o objetivo de eliminar a necessidade de acreditações separadas em cada país. Em terceiro lugar, a entidade promove a colaboração e a cooperação, em todo mundo, entre organismos de acreditação e entre seus membros e outros organismos e grupos relevantes. Em quarto lugar, a IAAC assegura a representação das Américas nos foros internacionais de acreditação e fornece uma ampla variedade de atividades de treinamento. Dessa forma, a interação entre a ALADI e a IAAC é importante e pode facilitar os esforços de cooperação dos Estados da região latino-americana.

Na regulação da metrologia, conforme prevê o art. 13 do acordo, os países signatários se comprometem a adotar o sistema internacional de unidades e a estabelecer estratégias, prazos e instrumentos necessários para adequar as estruturas nacionais à mudança tecnológica decorrente da adoção do sistema internacional de unidades.

Em atendimento ao princípio da transparência, fundamental em iniciativas de cooperação regulatória, os países signatários, em uma atuação conjunta com a Secretaria-Geral da ALADI, com a Comissão Pan-Americana de Normas Técnicas (COPANT) e com outras entidades regionais pertinentes, envidam esforços para desenvolver e integrar sistemas de informação sobre projetos de regulamentos técnicos, de normas técnicas e de sistemas de avaliação de conformidade. O sistema deve ser capaz de responder oportunamente aos pedidos que lhe forem feitos com relação aos regulamentos técnicos, às normas técnicas adotadas e aos procedimentos de avaliação de conformidade em vigor.

Os contatos permanentes entre os organismos nacionais de normalização, regulamentação e avaliação de conformidade dos países signatários e com organismos regionais especializados têm o objetivo de fortalecer os instrumentos acima mencionados de convergência e harmonização regulatórias. A partir do diálogo dessas diferentes instituições, os países signatários podem formalizar, mediante protocolos adicionais, os resultados da harmonização e demais ações concertadas e estruturar um marco conceitual relativo à regulamentação e normalização técnica, bem como à avaliação de conformidade.

 

3.2. MERCOSUL

 

Após tentativa inicial de harmonização dos sistemas regulatórios dos países do Mercosul, como previsto inclusive em seu tratado fundador, Estados-membros passaram a buscar objetivos menos ambiciosos. A integração regulatória é item mandatório no âmbito do acordo regional, conforme inferido do art. 1 do Tratado de Assunção. As iniciativas nesse sentido, no entanto, têm encontrado dificuldades de execução.

Um dos problemas subjacentes a integração regulatória do Mercosul é a disparidade de instituições internas que têm competência para harmonizar as normas e princípios conforme as exigências do bloco (PRADO; BERTRAND, 2015, p. 213). Essa heterogeneidade institucional dos países do Mercosul tem prejudicado os esforços de cooperação regulatória e, consequentemente, tem impossibilitado os projetos de harmonização.

Embora seja aspecto relevante para muitas áreas que requerem cooperação regulatória, a heterogeneidade institucional é menos importante no que diz respeito às barreiras técnicas e às medidas sanitárias e fitossanitárias. Nesses casos, os problemas de cooperação regulatória são diferentes, pois estão diretamente relacionados à ausência de entendimento político, ainda que o arcabouço institucional doméstico e regional esteja razoavelmente bem desenvolvido (PRADO; BERTRAND, 2015, p. 224).

É possível inferir que a política dos países do Mercosul sobre medidas SPS é predominantemente definida no nível nacional, uma vez que medidas internas são apresentadas e defendidas por representantes nacionais nos encontros do bloco. Na verdade, o uso de medidas SPS foi um dos principais instrumentos utilizados pelos países do Mercosul para proteger seus produtores agrícolas. A fraca implementação doméstica do direito de comunitário secundário como Resoluções, Decisões, Diretrizes, Recomendações, quase sempre dependente de ato de transposição para os sistemas jurídicos internos, o que vem prejudicando o processo de harmonização das medidas SPS. Muitas vezes, os Estados atrasavam a implementação de medidas e adotavam a estratégia de “cherry picking” ao decidir qual instrumento do Mercosul seria implementado em primeiro lugar nos ordenamentos jurídicos internos (PRADO; BERTRAND, 2015, p. 225-226).

Em matéria de barreiras técnicas, as iniciativas de harmonização de sistema regulatórios entre os países do Mercosul foram adotadas no âmbito do Subgrupo de Trabalho (SGT) n.º 3 e da Associação Mercosul de Normalização (PRADO; BERTRAND, 2015, p. 219). Esses dois órgãos foram responsáveis pela produção de uma série de normas técnicas, as quais deveriam ser internalizadas pelos Estados-membros.

O SGT n.° 3 é um dos dezoito subgrupos de trabalho subordinados ao Grupo Mercado Comum, compartilhando espaço com temas como comunicações, aspectos institucionais, assuntos financeiros, transportes, meio ambiente, indústria, agricultura energia, assuntos trabalhistas, saúde, investimento, comércio eletrônico, integração produtiva, mineração e geologia

Cada um desses subgrupos é integrado e coordenado por representantes de órgãos especializados dos governos. Assim, o SGT n.º 3, denominado Regulamentos Técnicos e Avaliação da Conformidade, tem sua Coordenação Geral de Articulação Internacional atribuída ao Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (INMETRO). Os outros membros do Mercosul, diversamente, atribuem essa função a órgãos políticos superiores, geralmente dotados de condição ministerial. Assim, na Argentina, essa função foi atribuída a Subsecretaria de Defensa del Consumidor, diretamente vinculada ao Ministério de Economía y Producción (MECON); no Paraguai, o Ministério de Industria y Comercio (MIC) atua diretamente no subgrupo; o Ministerio de Industria, Energía y Minería (MIEM) ocupa esse lugar no Uruguai; e, na Venezuela, o Ministério do Poder Popular para o Comércio exerce essa função técnica

            No processo de integração comercial, existe uma dimensão mais visível e quantificável e outra invisível e de difícil mensuração, embora, na atualidade, mais relevante do que a primeira. A dimensão visível da integração comercial é expressa pela eliminação de tarifas para as trocas comerciais intrabloco. Essa é uma medida negativa (de retirada de barreira comercial) para fomento do comércio entre as partes do bloco. A dimensão invisível, por sua vez, é representada pela eliminação de barreiras não tarifárias incidentes sobre as trocas comerciais. Nesse caso, na maioria das vezes, trata-se de medida positiva, na qual se busca construir regras e formas de regulação que não interfiram sobre comércio intrabloco. Busca-se, na prática, a convergência regulatória entre os membros, na qual sistemas regulatórios se aproximam em seus aspectos procedimentais e materiais.

            O Mercosul busca a convergência regulatória por meio da harmonização de regras. No caso específico de regulamentos técnicos, o SGT 3 é o responsável pela harmonização, por meio da proposição de regulamentos técnicos que, ao serem aprovados pelo GMC, reflitam as posições dos membros do bloco. A intensidade de trabalho do SGT 3 e do GMC, portanto, é o mais claro indicativo do andamento do processo de harmonização regulatória no Mercosul. A intensidade de trabalho dos órgãos, verificada por meio do número de Resoluções aprovadas, tem diminuído consideravelmente nos últimos anos. Essa constatação é coerente com as políticas externas anunciadas e executadas pelos presidentes da República. Nos mandatos dos presidentes que atribuíram maior prioridade à integração regional, houve maior intensidade de trabalho no SGT3. Quanto menor a prioridade atribuída à integração regional, menor a intensidade de trabalho do órgão e, por consequência, menor a velocidade da harmonização.

            Organizadas as médias de Resoluções o início do Mercosul (1991) conforme o mandato presidencial, verifica-se o seguinte número de Resoluções no GMC: Fernando Collor (18), Itamar Franco (21), Fernando Henrique Cardoso (28), Luís Inácio Lula da Silva (49), Dilma Rousseff (46), Michel Temer (23) e Jair Bolsonaro (18). Nota-se que, nos primeiros anos, a atividade do GMC foi modesta. Durante os oito anos do governo FHC a média de resoluções aumenta consideravelmente, para praticamente dobrar durante os governos do Partido dos Trabalhadores. Depois do impeachment de Dilma Rousseff, a atividade decresce de forma importante para alcançar, durante o mandato de Bolsonaro, o patamar mais baixo desde os anos iniciais.

            Organizando os governos conforme sua orientação econômica geral, pode-se atribuir aos governos Fernando Collor, Michel Temer e Jair Bolsonaro orientação expressamente mais liberal, inclusive na dimensão do comércio internacional. Os governos Itamar Franco, Lula da Silva e Dilma, estariam na outra ponta do espectro, com posição expressamente mais desenvolvimentista. O governo FHC estaria em posição intermediária. Exatamente nos governos considerados liberais os esforços em busca da convergência regulatória foram diminuídos, característica compreensível em razão de sua perspectiva superficial acerca da integração comercial.

Dessas Resoluções derivam os instrumentos para convergência regulatória. A quantidade de Resoluções, por sua vez, pode indicar a intensidade de atuação do GMC e os esforços de convergência por parte dos membros. Importante destacar que o aprofundamento da integração no Mercosul depende da maior convergência regulatória entre seus membros, uma vez que o livre comércio no interior do bloco é requer o entendimento comum acerca de regulamentos técnicos, normas técnicas e procedimentos de avaliação da conformidade.

4. Considerações finais

 

Em linhas gerais, os países da ALADI, no âmbito de sua estrutura institucional inaugurada pelo Tratado de Montevidéu, consideraram a importância das barreiras não tarifárias, especialmente das barreiras técnicas. Verificando que elas podem constituir entraves deletérios ao comércio internacional, os membros da ALADI aprovaram, na década de 1990, acordo quadro que fornece as bases normativas da cooperação regulatória na região da América Latina. Embora os países tenham optado por uma tentativa de harmonização gradual e seletiva de seus sistemas regulatórios, iniciativas menos ambiciosas de cooperação também foram aventadas, mesmo que seus efeitos tenham avançado apenas moderadamente, até o momento.

Após décadas de atividade, poucos são os resultados apresentados. A análise das atividades do SGT 3 permite apontar alguns dos principais problemas do Mercosul em termos de cooperação regulatória. Em primeiro lugar, verifica-se que houve uma opção equivocada pela harmonização regulatória, sem a adoção de um órgão dotado de força suficiente para dirigi-la. O processo de harmonização não é trivial, pois exige, de fato, cessão de soberania pelos atores. Em uma estrutura institucional caracterizada pela intergovernabilidade, um órgão técnico como o SGT 3 seria certamente desmobilizado por órgãos políticos superiores, caso contrariasse interesses particulares de cada Estado membro. Adicionalmente, a forma como o SGT 3 foi constituído, não exigindo que órgãos técnicos nacionais representem seus países (apenas Brasil e Argentina são representados por órgão verdadeiramente técnicos), simplesmente interioriza o debate político para o âmbito da própria estrutura do subgrupo, dificultado ainda mais a execução de seus objetivos originais de harmonização de normas técnicas. Como consequência dessa politização exterior e interior ao órgão, os esforços de cooperação regulatória no Mercosul, mesmo quando menos ambiciosos do que a harmonização, são restritos e problemáticos, ainda que remanescentes, de forma demagógica, no discurso político dos líderes da região.

 

Referências

HOEKMAN, B.; MAVROIDIS, P. Regulatory Spillovers and the Trading System: From Coherence to Cooperation. Genebra: International Center for Trade and Sustainable Development (ICTSD) and World Economic Forum, 2015.

PRADO, M.; BERTRAND, V. Regulatory Cooperation in Latin America: The Case of Mercosur. Law and Contemporary Problems, v. 78, n. 4, p 205-230, 2015.

STEGER, Debra P. Institutions for regulatory cooperation in `New Generation economic and trade agreements. Legal issues of economic integration, v.38, n.4, pp.109-126, 2012.



[1] Importante notar que o Inmetro participou da elaboração do Acordo Quadro. A autarquia brasileira assinou com a ALADI um acordo de cooperação técnica e em 1999 autorizou emissários técnicos a mapearem a infraestrutura de avaliação da conformidade nos países membros da ALADI. Esse projeto abarcou metrologia, regulamentação técnica, laboratórios e sistemas de acreditação e os respectivos Pontos Focais do TBT/OMC. No momento, conforme informações do sítio institucional do INMETRO, está sendo formada a Comissão Administradora do Acordo, que deverá contar com participantes de todos os países da ALADI, cujos trabalhos serão iniciados em breve. (INMETRO, 2016)

[2]  Em português, o texto do Acordo é o seguinte: Art 3º - Os países signatários convêm em realizar esforços concretos para alcançar a harmonização dos regulamentos técnicos que possam afetar o comércio sem por isso reduzir os níveis de proteção à vida e saúde humana animal e vegetal, ao meio ambiente, à segurança e ao consumidor.

[3] Em português, o texto do Acordo é o seguinte: Art 6º - Os países signatários tomarão as medidas necessárias a fim de comunicar à Secretaria-Geral os organismos de normalização que aceitem o Código de Boa Conduta para a Elaboração. Adoção e Aplicação das Normas (Anexo III do Acordo OTC da OMC). Os países signatários realizarão esforços para incentivar os processos de harmonização de normas técnicas, tomando como base, preferentemente, as normas internacionais existentes ou aquelas cuja aprovação for iminente.

[4]

[5] Art. 10. - Os países signatários procurarão estabelecer um regime harmonizado a respeito da responsabilidade pela veracidade dos certificados e demais documentação expedida pelas instituições habilitadas e as sanções aplicáveis nos casos de emissão de certificações fraudulentas, com a finalidade de que possa ser adotado no momento em que os dois ou mais países signatários concluam um acordo de reconhecimento mútuo em matéria de avaliação de conformidade.

[6] Art 12. - Os países signatários se comprometem a incentivar a participação de suas entidades oficiais de credenciamento na Cooperação Interamericana de Credenciamento (IAAC), e a participar da celebração de Acordos de Reconhecimento Multilateral (MRA’s) neste foro visando o reconhecimento mútuo de suas estruturas de avaliação de conformidade.

Sobre o autor
Mauro Kiithi Arima Junior

Bacharel em Direito e Relações Internacionais pela USP. Especialista em Direito Político, Administrativo e Financeiro pela FD USP. Especialista em Política Internacional pela FESPSP. Mestre em Direito Internacional pela USP. Doutor em Direito Internacional pela USP. Advogado, professor e consultor jurídico.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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