A cadeia de custódia e a prova digital: consequências jurídicas da não observância do procedimento

08/08/2023 às 12:32
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A CADEIA DE CUSTÓDIA E A PROVA DIGITAL: Consequências jurídicas da não observância do procedimento

Seguindo o nosso compromisso de atualizar os leitores sobre pontos controversos do direito penal e processual penal, hoje iremos abordar o depoimento a quebra da cadeia de custódia da prova digital e o impacto para o processo penal.

O avanço tecnológico modificou sobremaneira a investigação criminal. Antes, uma vez relatado o fato criminoso, os policias iam a campo colher manual e presencialmente provas documentais, testemunhais, periciais para embasar futura denuncia, sem suporte eletrônico.

Em tempos hodiernos, embora tais meios de prova continuem em vigor e a serviço da justiça, por vezes são os aparelhos eletrônicos e as provas digitais que auxiliam decisivamente a conclusão do inquérito policial e também da ação penal.

Necessário, inicialmente, conceituar o que seria prova para o processo penal. Edilson Mougenot Bonfim traz uma precisa lição ao afirmar que “a prova é o instrumento usado pelos sujeitos processuais para comprovar os fatos da causa, isto é, aquelas alegações que são deduzidas pelas partes como fundamento para o exercício da tutela jurisdicional” (2019, p. 467.

As provas buscam reconstruir os fatos e auxiliar na emolduração da convicção do julgador e tem como objetivo garantir a todos os acusados o devido processo legal e os recursos a ele inerentes, como a ampla defesa, o contraditório e, principalmente, o direito à prova lícita.

As provas colhidas devem obedecer o procedimento instituído nos artigos 158-A a 158F, todos do CPP.

A cadeia de custódia da prova corresponde ao conjunto de procedimentos exigidos à preservação e rastreabilidade desses elementos de convencimento, caracterizando requisito de validade do resultado da atividade probatória primária, após a sua admissibilidade e valoração. Para Alexandro Mariano Pastore1 e Manoel Augusto Cardoso da Fonseca.

Introduzida pela lei 13.964/19 (lei anticrime), o instituto é definido no CPP:

Art. 158-A. Considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte.

Na doutrina, temos a seguinte e relevante definição:

Pode-se afirmar que a cadeia de custódia corresponde à atividade probatória secundária, ou seja, a “prova sobre a coleta da prova”, ou, mais sinteticamente, “a prova da prova”. Ou, ainda, “uma prova de segundo grau ou meta prova”

(PASTORE, DA FONSECA, 2022).

A Cadeia de custódia corresponde ao conjunto de atos destinados a conservar e rastrear a prova, garantido a sua autenticidade e confiabilidade. Para tanto, o procedimento legal deve ser rigorosamente observado.

Embora não haja procedimento único para coleta da prova, a norma ABNT ISO/IEC 27027:2013, da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT estabelece um procedimento a ser observado no caso de provas digitais.

Em homenagem a teoria das formas, se há procedimento e regramento estabelecido, tais regras devem ser respeitas. Contudo, a questão a ser resolvida é: caso a cadeia de custódia das provas digitais não seja obedecida, qual a consequência?

Bem, sabemos que é ônus do Estado comprovar a integridade e a confiabilidade das fontes de prova por ele apresentadas, inclusive quando elas tiverem natureza digital. Assim sendo, é incabível simplesmente presumir a veracidade das provas quando ficar caracterizado o descuido na coleta e no armazenamento das evidências.

A legalidade da prova, portanto, não se presume em absoluto. Ao contrário, devem ser identificada e catalogada em respeito ao procedimento estabelecido no CPP, para que se possa ter certeza absoluta de que foi legitimamente colhida, evitando o uso de provas contaminadas, o que poderia conduzir a condenações injustas.

Contudo, a violação da cadeia de custódia não causa a automática nulidade das provas colhidas. Os tribunais superiores entendem que a questão deve ser sopesada pelo magistrado com os demais elementos da investigação para aferir se a prova deve ser considerada confiável.

O STJ, através da sexta turma, entendeu, no HC 653.515 que “eventuais irregularidades devem ser observadas pelo juízo ao lado dos demais elementos produzidos na instrução criminal, a fim de decidir se a prova questionada ainda pode ser considerada confiável. Só após essa confrontação é que o magistrado, caso não encontre sustentação na prova cuja cadeia de custódia foi violada, pode retirá-la dos autos ou declará-la nula”. 

Em outra oportunidade, o Ministro Ribeiro Dantas, em Voto-Vista proferido no AgRg no Recurso em Habeas Corpus Nº 143.169 – RJ, proferiu uma preciosa lição. Abaixo, transcrevo alguns trechos deste excelente voto.

(...)

Toda fonte de prova que constitui corpo de delito exige algum tipo de manejo próprio para garantir sua integridade: as técnicas aplicáveis à preservação e exame do cadáver deixado por um homicídio, por exemplo, são em todo diferentes daquelas voltadas a preservar e examinar a arma de fogo encontrada no local do crime. Quando entram em cena as fontes de prova imateriais, ou aquelas que, conquanto tenham um suporte físico, são essencialmente intangíveis (a exemplo dos dados informáticos), não é diferente: em observância às peculiaridades dessas espécies probatórias, há técnicas específicas que precisam ser adotadas pelo aparato sancionador para garantir objetivamente a confiabilidade das provas por ele produzidas. Essas medidas compartilham a finalidade geral de preservar aquilo que Geraldo Prado - um dos impetrantes deste writ - designou, academicamente, de "mesmidade", em seu A cadeia de custódia da prova no processo penal (2ª edição, 2021, p. 196). Busca-se, com as cautelas da cadeia de custódia, uma maneira objetiva de aferir a integridade das fontes de prova apresentadas em juízo, numa análise essencialmente comparativa em relação a seu estado inicial, quando coletadas pelo Estado. Em suma, os vestígios integrantes do corpo de delito trazidos para o processo judicial devem ser os mesmos antes arrecadados na investigação.

(...)

Em que pese a intrínseca volatilidade dos dados armazenados digitalmente, já são relativamente bem delineados os mecanismos necessários para assegurar sua integridade, tornando possível verificar se alguma informação foi alterada, suprimida ou adicionada após a coleta inicial das fontes de prova pela polícia. Pensando especificamente na situação que nos é trazida a julgamento, a autoridade policial responsável pela apreensão de um computador (ou outro dispositivo de armazenamento de informações digitais) deve copiar integralmente (bit a bit) o conteúdo do dispositivo, gerando uma imagem dos dados: um arquivo que espelha e representa fielmente o conteúdo original. Aplicando-se uma técnica de algoritmo hash, é possível obter uma assinatura única para cada arquivo - uma espécie de impressão digital ou DNA, por assim dizer, do arquivo. Esse código hash gerado da imagem teria um valor diferente caso um único bit de informação fosse alterado em alguma etapa da investigação, quando a fonte de prova já estivesse sob a custódia da polícia. Mesmo alterações pontuais e mínimas no arquivo resultariam numa hash totalmente diferente, pelo que se denomina em tecnologia da informação de efeito avalanche: "Funções hash são algoritmos matemáticos determinísticos que mapeiam dados de comprimento aleatório em saída de tamanho fixo em base hexadecimal, dispersando os bits de entrada de forma não correlacionada às mudanças. Ou seja, uma pequena mudança na entrada, seja um simples caractere em uma frase inteira, ou um pixel em uma foto, acarreta uma saída completamente diferente, sendo essa característica conhecida como Efeito Avalanche" (SILVA, Johan Matos Coelho da; SILVA, Philipe Matos Coelho da. Técnicas de detecção e classificação de malwares baseada na visualização de binários. Monografia. Universidade de Brasília, Engenharia de Redes de Comunicação, 2018, p. 20-21).

Desse modo, comparando as hashes calculadas nos momentos da coleta e da perícia (ou de sua repetição em juízo), é possível detectar se o conteúdo extraído do dispositivo foi alterado, minimamente que seja. Não havendo alteração (isto é, permanecendo íntegro o corpo de delito), as hashes serão idênticas, o que permite atestar com elevadíssimo grau de confiabilidade que a fonte de prova permaneceu intacta. (Ministro Ribeiro Dantas).

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Pelo voto, fica claro que existem mecanismos disponíveis para auferir credibilidade as provas digitas. Tais mecanismos devem ser utilizados pelo órgãos de investigação. Sem a utilização da técnica adequada, não há como assegurar que os elementos informáticos periciados são íntegros e idênticos aos que existiam nos computadores, celulares e demais dispositivos informáticos eventualmente apreendidos.

Embora os Tribunais Superiores não invalidem automaticamente as provas colhidas em reconhecida quebra da cadeia de custódia, indicam para a fragilidade da mesma, devendo o magistrado sopesar com os demais elementos colhidos no curso da instrução, para daí auferir maior ou menor grau de importância àquelas.

Nesse ponto, ousamos discordar, posto que não nos parece lógico, de um lado, reconhecer a quebra da cadeia de custódia, e, de outro, emprestar algum valor às aludidas provas colhidas ou acauteladas sem os cuidados legalmente estabelecidos.

Fernando Capez adverte:

Os fatos ocorridos no meio digital com comprovação digital estão presentes no cotidiano da sociedade contemporânea. Mensagens de WhatsApp, Telegram e perfis no Instagram e Facebook são mídias utilizadas para o desenvolvimento das relações interpessoais sem as quais seria impossível compreender a vida moderna. O mesmo ocorre no ambiente de trabalho através do tratamento de dados, cópias de softwares, disponibilização de vídeos e mensagens na intranet. Contudo, a prova digital também tem valia para os atos ocorridos fora do ambiente virtual, tais como a ata notarial lavrada a partir da constatação pelo tabelião de foto em mídia social em que constam juntos um colaborador de uma empresa e um diretor da empresa concorrente, mostrando o conluio entre ambos, ou a comprovação de tráfico de entorpecentes (recebimento de carga, distribuição, venda e contabilidade) por mensagens de WhatsApp (CAPEZ, 2023).

Não se desconhece a importância das provas digitais para o Direito Penal Contemporâneo. Contudo, há que se ter cautela ao admiti-la no processo penal. Os aplicativos de mensageria são exemplos clássicos de como provas digitais podem ser adulteradas.

Tanto no aplicativo, quanto no navegador, é possível, com total liberdade, o envio de novas mensagens e a exclusão de mensagens antigas (registradas antes do emparelhamento) ou recentes (registradas após), tenham  elas sido enviadas pelo usuário, tenham elas sido recebidas de algum contato. Eventual exclusão de mensagem enviada (na opção "Apagar somente para Mim") ou de mensagem recebida (em qualquer caso) não deixa absolutamente nenhum vestígio, seja no aplicativo, seja no computador emparelhado, e, por conseguinte, não pode jamais ser recuperada para efeitos de prova em processo penal, tendo em vista que a própria empresa disponibilizadora do serviço, em razão da tecnologia de encriptação ponta-a-ponta,  não  armazena em nenhum servidor o conteúdo das conversas dos usuários (RHC  99.735/SC, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 27/11/2018, DJe 12/12/2018). Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/359527/stj-inviabiliza-uso-de-prints-de-whatsapp-como-meio-de-prova.

Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:

É que se não há como auferir, com 100% de certeza, que a prova é autentica e confiável, o seu aproveitamento no processo penal, e das provas dela derivadas, poderão conduzir a condenações absurdas.

O objetivo do artigo não é exaurir o tema, mas sim propor o debate, tendo em vista que, cada vez mais a mídia repercute notícias relacionadas ao aqui aludido.

E você, qual sua opinião?

JAIRO LIMA. WhatsApp (89) 9 9474 4848

Mestre em Direito pela Universidade Federal do Piauí. Professor da FAESF-PI. Membro da ANACRIM. Advogado da ABECS-PI (Associação beneficente de cabos e soldados e bombeiros militares). Palestrante e Presidente da Subcomissão de Educação Jurídica da OAB/PI. Autor de dois livros e mais de 70 artigos jurídicos publicados no Canal Ciências Criminais e outros portais e revistas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

PASTORE, Alexandro Mariano; DA FONSECA, Manoel Augusto Cardoso. Cadeia de Custódia de Provas Digitais nos Processos do Direito Administrativo Sancionador com a adoção da tecnologia Blockchain. Cadernos Técnicos da CGU, v. 3, 2022.

Fontenele Lemos, D. ., Homsi Cavalcante, L. ., & Gonçalves Mota, R. . (2021). A PROVA DIGITAL NO DIREITO PROCESSUAL BRASILEIRO. Revista Acadêmica Escola Superior Do Ministério Público Do Ceará13(1), 11–34. https://doi.org/10.54275/raesmpce.v13i1.147

CAPEZ, Fernando. A relevância das provas digitais para o Direito contemporâneo. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-abr-27/controversias-juridicas-relevancia-provas-digitais-direito-contemporaneo

Sobre o autor
Jairo de Sousa Lima

Advogado e Professor de Direito Penal e Processual Penal pela FAESF. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Bacharel em Direito pela Faculdade de Ensino Superior de Floriano. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal, pela Uninovafapi. Advogado da ABECS-PI (Associação beneficente de cabos e soldados e bombeiros militares). Palestrante. Autor de dois livros e mais de 70 artigos jurídicos publicados no Canal Ciências Criminais e outros portais e revistas.

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