Subtítulo: a relatora, Ministra Regina Helena Costa, proferiu voto favorável ao pleito dos contribuintes, pela possibilidade do creditamento mesmo que os itens sejam desgastados ou consumidos gradativamente e não integrem fisicamente o produto, desde que comprovada a essencialidade em relação a atividade fim.
O ICMS é um imposto de competência estadual cuja não cumulatividade está expressa no texto constitucional. Entre 1988 e 1996, lapso temporal que antecedeu a edição da lei complementar estabelecedora das normas gerais deste tributo, vigorou o Convênio CONFAZ nº 66/88, que manteve o critério de crédito físico do imposto antecessor (ICM), exigindo para o aproveitamento do crédito, concomitantemente, o consumo no processo produtivo e a integração ao produto final.
Neste contexto, a Lei Kandir inovou, ampliando as hipóteses de creditamento em prol de alcançar a não cumulatividade disposta na CFRB, adotando o critério de crédito financeiro, vedando apenas o aproveitamento sobre itens desgastados em atividade alheia a do estabelecimento:
Art. 20. Para a compensação a que se refere o artigo anterior, é assegurado ao sujeito passivo o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado (...)
§ 1º Não dão direito a crédito as entradas de mercadorias ou utilização de serviços resultantes de operações ou prestações isentas ou não tributadas, ou que se refiram a mercadorias ou serviços alheios à atividade do estabelecimento. (grifos nosso)
Relativamente aos materiais de uso e consumo, foi adotada restrição temporal vigente até 31/12/2032 (as sucessivas ampliações foram consideradas válidas pelo STF - Tema 346 da repercussão geral).
Ocorre que ao normatizar a forma de apuração do imposto, os regulamentos de ICMS estaduais mantiveram restrições alinhadas ao conceito anterior do Convênio nº 66/88. Corroborando a postura restritiva das fazendas estaduais existem várias normas fazendárias limitantes, por exemplo a Solução de Consulta nº 22009/2020, da SEFAZ-SP, que exigem o consumo integral e instantâneo para referido aproveitamento.
Diante disso, a insegurança dos contribuintes é latente, eis que em que pese a Lei Kandir vedar somente o crédito dos materiais usados em atividades alheias a do estabelecimento, as autoridades fiscais não reconhecem inúmeros materiais que possuem tal característica, enquadrando-os como de uso e consumo do estabelecimento, cujo crédito só será possível a partir de 2033.
Porém, extrai-se do texto positivado que devem ser enquadrados como materiais de uso e consumo do estabelecimento tão somente aqueles necessários as atividades meio, não relacionados a atividade principal (materiais de escritório, produtos de limpeza, móveis do setor administrativo, etc).
Essa controvérsia tem sido objeto de um número crescente de conflitos entre contribuintes e Estados nos últimos anos e o STJ já apreciou a contenda, sendo que a 1ª Turma tem entendimento de que a Lei Kandir inovou e ampliou as hipóteses de crédito, reconhecendo a apropriação sobre os materiais desgastados/consumidos de forma paulatina no processo produtivo (vide REsp nº 1.366.437/PR, AREsp nº 424.110/PA e AgInt no REsp nº 1742294/SC), enquanto na 2ª Turma há predominância de julgados com a visão mais restritiva, como o REsp nº 1.645.827/MG e AREsp nº 1.506.047/SP (em que pese existam alguns julgados favoráveis para empresas do setor de transporte rodoviário de cargas, exigindo apenas a vinculação do item à atividade do estabelecimento, como o REsp nº 1.175.166/MG).
Em face da divergência constatada, foram opostos Embargos de Divergência no AREsp nº 1.775.781/SP, pautados para julgamento pela 1ª Seção do STJ, em sessão presencial iniciada em 14/06/2023. Pelo que se tem notícia é a primeira vez que a matéria é analisada pela seção, com vistas a uniformizar a jurisprudência da corte.
Abre-se parênteses para contextualizar sinteticamente o caso em comento: trata-se de uma Ação pelo Rito Comum de empresa paulista do setor sucroenergético na qual a empresa elenca itens usados no processo produtivo (tais como eletrodos, estatores, rotores, facas e martelos de moagem, pentes, bagaceiras, válvulas, etc.) que foram objeto de 7 consultas fiscais formais perante o Fisco Paulista que reconheceu o uso destes no processo produtivo, porém vinculou o creditamento ao consumo instantâneo. Na petição inicial o contribuinte solicitou prova pericial, que foi deferida pelo juízo e nomeado expert engenheiro industrial mecânico, de cujo laudo se extrai a pertinência dos materiais com a produção:
São considerados insumos: pneus e câmaras de ar; materiais para corte de cana-de-açúcar; fio agrícola; facas e martelos picadores; pentes e bagaceiras; correntes transportadoras e suas partes (exceto a estrutura do equipamento); correias transportadoras de borracha e roletes (exceto a estrutura do equipamento); eletrodos; estatores de motores e rotores de bombas, válvulas e elementos de vedação (exceto válvulas que possuem condições de substituição de vedação e reparo no caso válvulas de segurança de caldeiras, ou válvulas reguladoras de pressão e, estrutura do equipamento do motor elétrico); telas para filtragem e lâminas raspadoras; óleos e graxas; elementos de vedação para tubulações e tanques de armazenagem.
A sentença julgou improcedente o pedido alinhando-se a corrente doutrinária restritiva “para o aproveitamento do crédito na aquisição de materiais intermediários, é necessária a comprovação de que esses produtos foram incorporados ao produto final ou consumidos de forma imediata e integral no curso da produção industrial”. No Tribunal de Justiça de São Paulo, a 2ª Câmara de Direito Público, proferiu acordão que não proveu o recurso sob fundamento central de que “O material utilizado no processo produtivo, embora seja produto intermediário indispensável à existência do produto e ao desempenho da atividade industrial, não integra fisicamente o produto final”.
Retomando a apreciação da 1ª Seção, após as sustentações orais a relatora Ministra Regina Helena Costa proferiu voto dando provimento ao recurso sob fundamento de que a Lei Complementar 87/96, no § 1º do art. 20, ampliou as hipóteses de creditamento abrangendo os produtos intermediários empregados no processo produtivo, mesmo que desgastados ou consumidos gradativamente, bem como que não integrantes fisicamente do produto, desde que comprovada a necessidade de sua utilização para a realização do objeto social da empresa, ou seja, a essencialidade em relação a atividade fim, bem como determinou o retorno dos autos ao tribunal de origem (TJ-SP) para que se reexamine o pleito do contribuinte.
Concluída a leitura do voto, o Ministro Herman Benfamin pediu vista, sendo proclamado o seguinte resultado parcial: “Após o voto da Sra. Ministra Relatora dando provimento aos embargos de divergência, pediu vista o Sr. Ministro Herman Benjamin. Aguardam os Srs. Ministros Gurgel de Faria, Paulo Sérgio Domingues, Mauro Campbell Marques, Benedito Gonçalves e Assusete Magalhães”.
A relevância econômica da matéria, o seu ineditismo na 1ª Seção e o robusto voto da relatora renovam a convicção dos contribuintes de que lhes será garantido o aproveitamento de crédito de ICMS sobre os materiais intermediários utilizados no processo produtivo, em observância a não cumulatividade constitucional e ao disposto na Lei Kandir, afastando as limitações sofridas nos últimos anos junto aos fiscos estaduais.
JHONI ANDRES – Advogado OAB-SP nº 457.626 e OAB-SC nº 62.275-A, sócio na Queiroz Miotto Advogados. Contador CRC-SC nº 032.866/O-3, diretor na Tróia Consultoria Empresarial. Possui pós-graduação em Direito Tributário e Processual Tributário pela EPD (Escola Paulista de Direito) e LLM em Direito Corporativo pelo IBMEC/Metrocamp. Membro Efetivo da Comissão Especial de Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB-SP.