TCU: impugnações não conhecidas e autotutela, revisar cláusulas é dever administrativo

17/08/2023 às 12:12
Leia nesta página:

A autotutela

Para José dos Santos Carvalho Filho :

A Administração Pública comete equívocos no exercício de sua atividade, o que não é nem um pouco estranhável em vista das múltiplas tarefas a seu cargo. Defrontando-se com esses erros, no entanto, pode ela mesma revê-los para restaurar a situação de regularidade. Não se trata apenas de uma faculdade, mas também de um dever, pois que não se pode admitir que, diante de situações irregulares, permaneça inerte e desinteressada. Na verdade, só restaurando a situação de regularidade é que a Administração observa o princípio da legalidade, do qual a autotutela é um dos mais importantes corolários.
Não precisa, portanto, a Administração ser provocada para o fim de rever seus atos. Pode fazê-lo de ofício. Aliás, não lhe compete apenas sanar as irregularidades; é necessário que também as previna, evitando-se reflexos prejudiciais aos administrados ou ao próprio Estado.

Partindo dos ensinamentos de CARVALHO FILHO, percebe-se que a autotutela é o poder-dever administrativo de corrigir seus próprios equívocos quando verificados, de ofício, não necessariamente sob a provocação de terceiros. É íntima a relação desse princípio com o da legalidade, pois, com a hipótese de correção e de adequação de seus atos, a Administração pauta-se, sempre, por perseguir à legalidade, um dos princípios administrativos predominantes do caput, art. 37, da Constituição Federal de 1988.

Esse poder-dever também está substanciado nas Súmulas 346 e 473, do Supremo Tribunal Federal - STF:

SÚMULA 346
A administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.
SÚMULA 473
A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.

Atos Administrativos

Complementando a compreensão, Celso Spitzcovsky , entende que atos administrativos são espécies de “manifestação unilateral de vontade da Administração, ou de quem lhe faça as vezes, que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos ou impor obrigações aos administrados”.

Conhecimento e provimento

A análise de admissibilidade, ou seja, de recepção da impugnação, é conhecida como “conhecimento” ou “não conhecimento”, significando que a impugnação será avaliada, ou não.

Uma vez “conhecida” a impugnação, significa que foi apresentada no prazo correto e que cumpre com os requisitos para que seja, então, avaliada pela Administração, no que se refere ao seu mérito. O resultado da análise de mérito, pode ser favorável ou desfavorável, ou ainda, parcialmente (des)favorável. A essa análise de mérito pode-se dar “provimento” ou “não provimento”.

Portanto, um recurso ou impugnação “não conhecido(a)”, não cumpriu com requisitos iniciais, de admissibilidade [exemplo: foi apresentada fora do prazo para se impugnar], e portanto, não teve o seu mérito apreciado [exemplo: se contestava que a cláusula 7 do edital era restritiva].

Decisão do TCU

Após a necessária introdução, sobre autotutela e atos administrativos, passa-se a tratar de recente decisão do Tribunal de Contas da União [Acórdão 1.414/2023] que, com destaque a aplicação da autotutela no processo licitatório, entendeu ser dever da administração verificar a regularidade de seus atos, ainda que a provocação externa, no caso uma impugnação, não seja conhecida. Ou seja, mesmo que a impugnação não seja apreciada por qualquer inadequação preliminar, a Administração não está isenta de refletir sobre a regularidade de seus atos, como o edital, uma vez perfazendo-se da autotutela, pode de ofício, corrigir ou anular seus atos.

Veja:

Acórdão 1414/2023 Plenário (Representação, Relator Ministro Jorge Oliveira) Licitação. Edital de licitação. Impugnação. Competitividade. Restrição. Comissão de licitação. Pregoeiro. Revisão de ofício. Princípio da autotutela.
É dever do responsável por conduzir licitação no âmbito da Administração, a partir de impugnação ao edital apontando a existência de cláusulas restritivas à competitividade do certame, realizar a revisão criteriosa dessas cláusulas, ainda que a impugnação não seja conhecida, sob pena de violação do princípio da autotutela.

Então, ainda que a impugnação não seja conhecida, ou seja, recebida em condições de o seu mérito ser avaliado, seja por intempestividade ou qualquer outra situação, a Administração poderá avaliar seus atos, examinando, ainda que indiretamente, se os pontos que estavam sendo alvo de impugnação estão regulares, pois, a autotutela permite essa atuação administrativa.

No caso em destaque, a intempestividade foi avaliada de maneira equivocada e o Tribunal acentuou que a segunda irregularidade foi a Administração não valer-se da autotutela para revisar minuciosamente as cláusulas contestadas:

14. E, apesar de a questão relativa à ausência de publicidade dos anexos ter sido objeto de impugnação ao edital, o pregoeiro incorreu em duas falhas (alínea "b") : i) deixou de analisar o mérito da alegação sob o fundamento de intempestividade da impugnação, quando ela foi apresentada dentro do prazo legal de três dias úteis, em 31/3/2023 (sexta-feira) , haja vista que o certame foi iniciado em 5/4/2023 (quarta-feira); ii) não adotou providências para disponibilizar os anexos do edital não publicados, em desacordo com o princípio da autotutela (peça 9).
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Posição similar, já havia sido manifestada pelo TCU em outros precedentes, como, por exemplo, no Acórdão 1842/2018-TCU-Plenário, relator Ministro Augusto Sherman e no Acórdão 3092/2014-TCU-Plenário, relator Ministro Bruno Dantas.

E embora estejam pautadas no antigo regime licitatório, o da Lei Federal nº 8.666/93, é possível visualizar a importância da autotutela, também, aos processos regidos pela Nova Lei de Licitações, a Lei Federal nº 14.133/2021.

A Nova Lei de Licitações e a decisão do TCU

Essa posição se relaciona com os novos dispositivos da Lei 14.133/2021, como exemplificado no art. 169, que desenvolve a tese de “linhas de defesa” do controle das contratações públicas, e em seu inciso I, categoriza os servidores e empregados públicos, agentes de licitação, como a primeira linha de defesa desse controle:

DO CONTROLE DAS CONTRATAÇÕES
Art. 169. As contratações públicas deverão submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo, inclusive mediante adoção de recursos de tecnologia da informação, e, além de estar subordinadas ao controle social, sujeitar-se-ão às seguintes linhas de defesa:
I - primeira linha de defesa, integrada por servidores e empregados públicos, agentes de licitação e autoridades que atuam na estrutura de governança do órgão ou entidade;
II - segunda linha de defesa, integrada pelas unidades de assessoramento jurídico e de controle interno do próprio órgão ou entidade;
III - terceira linha de defesa, integrada pelo órgão central de controle interno da Administração e pelo tribunal de contas.

Na mesma linha, de controle e de prevenção de riscos, a Nova Lei prevê cautelas no processo de planejamento, reflexões na etapa interna, documentação das necessidades, possibilidade de matriz de risco, todas ferramentas que buscam reduzir os equívocos ou vícios no processo licitatório.

Em especial, o princípio da segregação de funções, presente em diversos artigos da Lei, e que viabiliza, justamente, esse controle envolvendo os atos administrativos da licitação, entre os próprios agentes envolvidos, de modo que, a repartição de atividades para agentes distintos, em tese, aumenta a conferência sobre os atos pretéritos e facilita o conhecimento de equívocos, corrigindo-os sempre que possível.

Citam-se os art. 5º; art. 7º, §1º; e art. 169, §3º, inciso II, todos da Nova Lei de Licitações, que disciplinam a segregação de funções:

Art. 5º Na aplicação desta Lei, serão observados os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa, da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável, assim como as disposições do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).
Art. 7º Caberá à autoridade máxima do órgão ou da entidade, ou a quem as normas de organização administrativa indicarem, promover gestão por competências e designar agentes públicos para o desempenho das funções essenciais à execução desta Lei que preencham os seguintes requisitos:
[...]
§ 1º A autoridade referida no caput deste artigo deverá observar o princípio da segregação de funções, vedada a designação do mesmo agente público para atuação simultânea em funções mais suscetíveis a riscos, de modo a reduzir a possibilidade de ocultação de erros e de ocorrência de fraudes na respectiva contratação.
Art. 169. [...]
§ 3º Os integrantes das linhas de defesa a que se referem os incisos I, II e III do caput deste artigo observarão o seguinte:
[...]
II - quando constatarem irregularidade que configure dano à Administração, sem prejuízo das medidas previstas no inciso I deste § 3º, adotarão as providências necessárias para a apuração das infrações administrativas, observadas a segregação de funções e a necessidade de individualização das condutas, bem como remeterão ao Ministério Público competente cópias dos documentos cabíveis para a apuração dos ilícitos de sua competência.

Conclusão

Conclui-se que o TCU tem reiterado sua posição no sentido de que o não conhecimento de impugnação não deve repelir o exame das cláusulas contestadas, ainda que em análise interna da Administração, de ofício, movida pelo princípio da autotutela, isso para se evitar que irregularidades contaminem o processo se diagnosticadas em momentos futuros.

Portanto, aos olhos do TCU, é obrigatório que as cláusulas licitadas sejam revisitadas e examinadas pelos responsáveis, ainda que as impugnações não sejam admitidas ou conhecidas. O mérito, ainda que indiretamente, poderá ser revisto pela Administração.

Isso permite a correção de equívocos, salvaguardando o processo licitatório e a legalidade dos atos administrativos.

REFERÊNCIAS

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo / José dos Santos Carvalho Filho. – 33. ed. – São Paulo: Atlas, 2019. p. 111/1713

SPITZCOVSKY, Celso. Direito administrativo esquematizado / Celso Spitzcovsky. – 2. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019. (Coleção esquematizado / coordenador Pedro Lenza) 1. Direito administrativo – Brasil I. Título II. Lenza, Pedro III. Série. p 259/1138

https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/seq-sumula346/false. Acessado no dia 07 de agosto de 2023.

https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/seq-sumula473/false. Acessado no dia 07 de agosto de 2023.

https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/redireciona/acordao-completo/%22ACORDAO-COMPLETO-2607547%22 . Acessado no dia 07 de agosto de 2023.

Sobre o autor
Leonardo Vieira de Souza

Advogado e Consultor em Gestão Pública. Pós-graduado em Direito Administrativo, Constitucional, Eleitoral e Gestão Pública com ênfase em Licitações.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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