Direito à conscientização ambiental para a preservação do patrimônio natural
Palavras-chave: cidadania; meio-ambiente; patrimônio natural; patrimônio cultural.
“A vida, estava vida
me agradava, seu instrumento, essas pombas...
Era um prazer ouvi-las governar-se, ao longe,
despontar naturais, em número preciso,
e executar, conforme suas angústias, suas alvoradas de animais.
(....)
Seus galiformes bicos,
Parelhas de pombinhas,
As próbidas, folheando seus fígados,
As sobrinhas da nuvem.... Vida! Vida! Esta é a vida!”
(César Vallejo in “Poemas humanos”, p. 47)
A metáfora. O devaneio das pombas. O ir e vir dos pássaros. Revoar. Refregar. A luta pela sobrevivência da(s) espécie(s). Da mãe Gaia. Do patrimônio natural e cultural.
Busca-se pelo presente devaneio lúdico-textual construir caminhos de cidadania que sirvam para forjar a consciência cidadã, princípio jurídico-político assentado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Devaneio: força imagética como instrumento de conscientização de cidadania ambiental; educação patrimonial. Da resiliência imagética.
Gaston Bachelard dizia que “no reino da imaginação, pode-se dizer da mesma forma que a resistência real suscita devaneios dinâmicos ou que os devaneios dinâmicos vão despertar uma resistência adormecida nas profundezas da matéria”. (...) Que importa realmente quem começa as lutas e os diálogos, quando essas lutas e esses diálogos encontram sua força e sua vivacidade em sua dialética multiplicada, em seu continuo ricochetear” (BACHELARD, 2019, p. 20-21).
Em sua ode aos pássaros, o poeta peruano César Vallejo faz um tributo ao movimento dos pássaros; o movimento do “passarinho” – alusão (nossa) à Mario Quintana – que em sua acrobacia performática, delineia o enredo filosófico-existencial da vida humana.
A metáfora dos pássaros também é a metáfora da saga humana na terra. O cuidado da e para com a Gaia, a Mãe Terra, é a missão do hoje, sob pena de sermos tolhidos do amanhã.
Diante de uma economia calcada no paradigma do consumismo e da exploração desenfreada, cuidar da Gaia é abrir-se ao daimon1 (a voz interior da natureza), ao movimento do sussurro2 revolucionário, que se recusa a ceder ante as tentações do homo economicus, sob pena de incorrermos em resignação3.
De metáfora em metáfora, acorramo-nos a película “os pássaros” (The Birds, 1963) do cineasta britânico, Alfred Joseph Hitchcock (1899-1980). Neste épico da sétima arte, há dois enredos “paralelos que se cruzam” – dirá o cancioneiro do Engenheiros do Hawaii – até que o segundo assume o protagonismo maior, com as cenas dos pássaros invadindo a cidade.
Enquanto a personagem Melanie Daniels (Tippi Hedren) troca olhares flertivo de soslaio com o advogado Mitch Brenner (Rod Taylor) na primeira parte da trama, os pássaros ensaiam seu canto e movimento para entrar em ação no segundo trecho. Ao entrarem, tomam conta do tablado; um cenário de devastação e morte ganha suspense sob o ritmo musical do maestro condutor, Hitchcock.
Fora da sétima arte, mas ainda sob o nome The Bird, temos uma das maiores obras do jazz, que é o álbum do saudoso saxofonista, Charlie Parker (1920-1955). O que é Parker senão um libelo da alegria musicista que ainda na tenra idade passou pelo trauma do pós-1929? Parker, o suprassumo do jazz norte-americano. Poucos estão no patamar jazzístico de Charlie Parker.
Tamanho o impacto de Bird, que “o contrabaixista Charles Mingus4 evoca o som de Bird: “Deus do céu! É um som de milhões de almas entrelaçadas naquele velho saxofone dele, remendado com fita adesiva, elástico e goma de mascar, e dizem que ele guincha. (Uau! Pode guinchar, Bird! Ele está simplesmente ouvindo seu sax cantar. (…) Veja só, Bird chegou até este ponto e lhe dão de presente saxofones de ação suave. Ele diz: “Pra quê? Tarde demais””.5
Enquanto o jazzista padeceu novo, o cineasta britânico teve longa estadia entre nós. Charlie Parker passou sobre nós como uma revoada de pássaros, num instante, partiu sem pedir licença. E Hitchcock fez do desalinho dos pássaros, máquinas de ceifar humanos. É a revolta da Terra e da sua criação contra a lassidão moral do ser humano predador.
Da pena do poeta Vallejo extraímos a sinfonia da Mãe Gaia a título de libelo pela conscientização ambiental, da cidadania ambiental como instrumento político pedagógico/andrógico para forjar um espírito comum pela mudança de paradigma: do consumista para um modelo calcado no respeito ao meio ambiente e suas fontes de vida. Uma economia solidária, fraterna, o terceiro princípio erigido pela revolução francesa.
Sobre a imprescindibilidade de mudança de paradigma, Leonardo Boff diz que “a ética da sociedade dominante hoje é utilitarista e antropocêntrica. Considera o conjunto dos seres a serviço do ser humano que pode dispor deles a seu bel-prazer, atendendo a seus desejos e preferências. (...) Ético seria também potenciar a solidariedade generacional no sentido de respeitar o futuro daqueles que ainda não nasceram” (Boff, p. 23).
Pensando sob esse prisma, o legislador do Estado de São Paulo criou a Lei nº 16.772, de 19 de JUNHO de 2018, que determina a instalação de sinalização pedagógico-informativo em todas as áreas do estado de SP que forem contempladas com o manancial de água doce Aquífero Guarani6.
As cidades que servirem de área de recarga e afloramento do r. aquífero, receberam o encargo desde 19 de junho de 2018, muitas delas, até o presente momento, incorrem in mora, prestando um destributo ao meio ambiente representado pelo Aquífero Guarani: patrimônio natural da sociedade.
Diz a r. lei:
Artigo 1º - Esta lei tem por finalidade a implementação de medida técnica de preservação do Aquífero Guarani, no território do Estado de São Paulo, a fim de proteger a qualidade de suas águas, mediante a sinalização das áreas de afloramento ou recarga direta, visando ao controle das fontes de poluição em sua extensão.
Artigo 2º - Torna-se obrigatória a sinalização das áreas de afloramento ou recarga direta do Aquífero Guarani, no território do Estado de São Paulo.
Parágrafo único - A sinalização de que trata esta lei será instalada nos limites externos das áreas aflorantes, em diversos pontos ao longo das rodovias adjacentes e nas vias de acesso, sendo observados os estudos técnicos pertinentes.
Artigo 3º - O Poder Público determinará a instalação da sinalização a que se refere esta lei.
Artigo 4º - A regulamentação desta lei definirá as competências e o detalhamento técnico imprescindíveis para sua execução.
Artigo 5º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
Natammy Bonissoni sustenta que “a água subterrânea, por exemplo, além de ser um bem econômico, é considerada uma fonte imprescindível de abastecimento para o consumo humano, para as populações” (BONISSONI, 2015, p. 85).
Independentemente de reconhecimento oficial do Aquífero Guarani como um patrimônio natural e cultural – material e/ou imaterial -, trata-se de reconhecer as águas do aquífero guarani em axiologia ao direito internacional humano, formando um patrimônio natural comum da espécie humana, já que que compartilhamos com outras cidades, estados e nações, considerando toda extensão geográfica de cobertura do manancial.
A CRFB/88 incluiu como “passiveis de defesa os bens imateriais ao lado dos materiais tradicionais” (Ajnhorn, 2017, p. 120)7. Dentre eles, proteger nossos mananciais é mais que necessário, é imprescindível.
Ante a crescente disputa pela água, e em respeito ao princípio do meio ambiente ecologicamente equilibrado e saudável, respeitando o direito das próximas gerações, a ONU resolveu reconhecer:
“O acesso à água potável e ao saneamento básico é um direito humano essencial, fundamental e universal, indispensável à vida com dignidade e reconhecido pela ONU como “condição para o gozo pleno da vida e dos demais direitos humanos” (Resolução 64/A/RES/64/292, de 28.07.2010).
A crise hídrica no mundo acendeu o alerta da ONU e, após sucessivas disputas pela exploração/privatização8 da água como ativo privado na Colômbia e na França, dentre outros, tolhendo das populações locais o direito à água, exsurgiu o reconhecimento via resolução epigrafada como um direito internacional do homem, imprescindível para a subsistência.
Natammy BONISSONI (op. cit., p. 57) relata que “grandes surpresas que têm surpreendido a população mundial perpassam categorias históricas e níveis jamais atingidos, levando populações inteiras a se deslocarem com a finalidade de buscar o mínimo de dignidade humana em outras culturas em razão dos desastres naturais agravados pela péssima gestão humana. São exemplos dos refugiados ambientais, que segundo estimativas do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, mostram que hoje existem mais pessoas deslocadas por desastres ambientais do que por guerras.
(...) o Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados afirma que 36 milhões de pessoas haviam sido deslocadas em razão dos desastres ambientais até o ano de 2009. (...) Cientistas predizem que a tendência é que este número aumente para pelo menos 50 milhões de pessoas até 2050”.
Certo que os dados levantados por BONISSONI foram antes do conflito Ucrânia/OTAN/EUA versus Rússia, assim como antes do conflito na Síria e das revoluções coloridas patrocinadas pelos EUA no oriente médio e continente africano. Se somados a esses conflitos, atualizando-os ao panorama atual de 2023, a tendência é um número maior.
Frente a todas essas disputas, cabe ao estado brasileiro e a seus entes promover uma ampla e imprescindível ação de pedagogia ambiental à luz do disposto no inciso VI do art. 225, verbis: “promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente”, o direito à cidadania ambiental (inciso II, do art. 1º, da CRFB/88).
Aos municípios, compete promover a proteção à luz da outorga constitucional do “interesse local” (inc. I, 30 CRFB/88).
Cabe aos entes municipais promover o bem-estar9 da população, nesse sentido, o direito à sustentabilidade da população, garantindo a higidez do sistema hídrico às gerações presentes e futuras; proteger os mananciais e áreas de refloramento do Aquífero Guarani, com ações da área da educação à saúde; promover o ordenamento territorial (inc. VII, 30 CRFB/88) respeitando as áreas de recarga e afloramento do aquífero; instalar sinalizações pedagógicas para orientar os munícipes nos termos da lei estadual epigrafada; sem prejuízo do reconhecimento como patrimônio cultural material e imaterial como bem vital (IX, 30 CRFB/88); promover políticas públicas e intervenções cidadãs lúdicas como instrumento de conscientização pelo uso responsável e consciente do Aquífero Guarani; promover ações contra o desperdício nos sistemas de água e esgotamento sanitário, dentre outras.
Considerando o espírito dirigente da CRFB/88, quis o constituinte forjar nossa cidadania e nossa economia à luz dos pressupostos da responsabilidade ambiental. “Se as guerras deste século foram disputas por petróleo, as guerras do próximo século serão travadas por água, alerta Vandana Shiva, apud Bonissoni, p. 86.
Em resumo, frente o espírito dirigente impregnado pela constituição cidadã, reconhecer o Aquífero Guarani como um patrimônio natural e cultural – material/imaterial - resultar-se-á no avanço em respeito à construção de uma cidadania ambiental e cultural (educação patrimonial), promovendo e espalhando a ética do cuidado10 e do respeito para com a Mãe Terra, reconhecendo o aquífero como um bem imprescindível para o desenvolvimento dos povos, da economia, da sustentabilidade das gerações presentes e futura.
Referências bibliográficas
BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças. 5ª Ed., São Paulo: Editora WMF Martins Fontes. 2019.
VALLEJO, César. Poemas Humanos. 1ª Ed., São Paulo: Editora 34, 2021.
BOFF, Leonardo. Dignitas Terrae. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. 3ª Ed., 2ª imp., São Paulo, Editora Ática, 2000.
https://amajazz.com.br/2020/08/28/o-passaro-de-fogo/
BONISSONI, Natammy, in “O acesso à água potável como um instrumento para o alcance da sustentabilidade”, 1ª ed., 2015.
Lucas Gabriel Pereira, advogado (criminal e administrativo), especialista em Direito Municipal - ética e efetivação de direitos fundamentais pela FDRP/USP-Ribeirão; presidente do Conppac (Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural de Ribeirão Preto), ex-representante da 12ª Subseção da OAB-SP na Câmara Municipal de Ribeirão Preto/SP (2019) e ex-presidente da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da 12ª Subseção da OAB do Estado de São Paulo (2019-2021).
“Junto ao logos (razão) está o eros (vida e paixão), o páthos (afetividade e sensibilidade) e o daimon (a voz interior da natureza). A razão não é nem o primeiro nem o último momento da existência. Nós somos também afetividade (páthos), desejo (eros), paixão, comoção, comunicação e atenção para a voz da natureza que fala em nós (daimon). (...) Conhecer é entrar em comunhão com as coisas” (BOFF, Leonardo. Dignitas Terrae. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. p. 31).︎
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A metáfora do sussurro revolucionário é bem exposta na obra “O que ela sussurra” de Noemi Jaffe (ano, 2020). Nela a autora fala da criação de uma rede feminina de sussurros para resistência e enfrentamento do autoritarismo na URSS. O ontem dos serviços de espionagem da URSS é o hoje/amanhã da inteligência artificial que capta nossos sentidos e movimentos para fomentar bancos de dados dos mais variados tipos de serviços, informações e outros. Somos o que os nossos hábitos nos formatam.︎
Darcy Ribeiro (1922-1997) dizia: “Só há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar. E eu não vou me resignar nunca”.︎
De Charles Mingus recomendamos ouvir moanin.︎
< https://amajazz.com.br/2020/08/28/o-passaro-de-fogo/ >, acessado em 09 de agosto de 2023.︎
“O Aquífero Guarani é um dos maiores reservatórios de água subterrânea do mundo, com cerca de 1.196.500 km2 de extensão pelos territórios dos quatro países de atuação do Projeto. Suas águas têm qualidade para o consumo humano e o aquífero fica estrategicamente localizado onde vivem milhões de pessoas no Cone Sul. No Brasil essa fonte de água está presente sob os estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul”, < https://www.gov.br/ana/pt-br/assuntos/noticias-e-eventos/noticias/missao-da-ana-no-uruguai-discute-acoes-estrategicas-para-aquifero-guarani >, acessado em 10 de agosto de 2023.︎
“A ação de improbidade administrativa como meio de proteção ao patrimônio histórico e cultural”, de Fernanda Ajhnorn, in Ingo Wolfgang SARLET, Roberto José LUDWIG (organizadores). 1ª Ed. 2017, p. 120.︎
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“Provavelmente a mais famosa narrativa da ganância corporativa com relação a água seja a história de Cochabamba. Nessa região semidesértica da Bolívia, a água sempre foi escassa e considerada preciosa por seus moradores. No entanto, em 1997, o Banco Mundial informou ao governo boliviano que seria fornecido um auxilio adicional para o desenvolvimento de água condicionado a privatização de dois dos principias sistemas de captação de água da Bolívia. Então, em um processo secreto com apenas um concorrente, o Servicio Municipal del Agua Potabele y Alcantarrillado (SEMAPA) de Cochabamba passou a ser controlado pela International Water, uma subsidiária Da Bechtel.
(...)
Outro caso interessante foi o ocorrido na cidade francesa de Grenoble. Em 1989 o prefeito da cidade iniciou os procedimentos para privatizar os serviços de água da cidade realizando uma transação com uma empresa subsidiária da principal empresa de água no mundo, a Suez. (...) a transação foi marcada pela corrupção e o esquema de privatização foi concluído em troca de contribuições monetárias à campanha eleitoral do prefeito. Então, em 1995, o prefeito é um executivo da subsidiária da Suez foram processados e condenados, um ano depois, por suborno” (BONISSONI, Natammy, op. cit. 89).︎
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Lei 10.257/2001 – Estatuto da Cidade, verbis: art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;
IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente;
VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar:
a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos; b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes; c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infra-estrutura urbana; g) a poluição e a degradação ambiental;
VIII – adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de influência. (negritos nosso).︎
Sobre “ética do cuidado”, ver fábula-mito do cuidado, de Higino, 1 A.C.︎