Pelas contabilizações atuais, nos últimos 200 mil anos já nasceram cerca de 117 bilhões de pessoas, e apenas 6,8% delas vivem atualmente. Mas essa contagem considera o número de pessoas existentes apenas a partir do surgimento do Homo sapiens. Imagine então se colocarmos a conta na casa dos milhões de anos, mais precisamente quatro milhões, quando viveram os australopithecus. Essa estimativa de tempo e o que cabe nele é a bagagem da humanidade até nossa atual espécie.
A utilização ou já confecção dos primeiros artefatos com a funcionalidade de facilitar a caça e auxiliar no preparo ou consumo de alimentos está separada das ferramentas digitais mais refinadas que temos hoje, principalmente pelo desenvolvimento da mente humana, além, é claro, de uns dois ou três milhões de anos.
Os artefatos líticos mais antigos podem facilmente ser confundidos com rochas naturais, e foi preciso que as mentes dos nossos antepassados desenvolvessem a inteligência técnica para que surgissem os primeiros fabricantes de instrumentos, cujo principal representante das espécies nessa categoria é o Homo habilis [1].
Se na contemporaneidade faz parte de nosso cotidiano o tratamento de doenças e a produção de vacinas, o uso de redes neurais artificiais e o aprendizado de máquinas, entre outros, além de temermos o domínio da humanidade pelas inteligências artificiais e a possível extinção de nossa espécie, é porque o cérebro humano evoluiu ao ponto de congregar e associar as inteligências naturalista, social, técnica e geral e a linguagem, essa última com importante papel na fluidez cognitiva, para criar tecnologias com o grau de refinamento que conhecemos.
Um dos marcos da evolução da mente dos antepassados do Homo sapiens sapiens (também conhecido como nós!) foi, há milhões de anos, ter atritado propositalmente duas pedras a fim de obter lascas que servissem de ponta de lança, ou outros instrumentos com função similar à da faca, por exemplo. Esse uso e desenvolvimento da tecnologia, palavra cujo imaginário comumente paira sobre aspectos industriais e digitais, facilitou a intervenção na natureza. O aperfeiçoamento tecnológico levou o ser humano à noção de separar a natureza daquilo no qual interveio, inclusive, não surpreendentemente, alocando a si próprio do lado não natural, afinal, a humanidade é tech!
Pela visão antropológica, a modificação da natureza pelas mãos humanas é cultura, e quando isso fala demasiadamente de quem somos, seja enquanto sociedade ou em relação à matéria, protegemos para que não nos percamos de nós mesmos, constituindo os direitos culturais – ou, nada mais justo, o direito de proteger vestígios importantes de nossa existência, ou essência, se pensarmos por um viés de transcendência.
No Direito brasileiro a proteção a esses elementos fica mais clara e precisa quando são utilizados nomes mais familiares que direitos culturais para indicar os motivos e o que pode ser considerado passível de proteção, como patrimônio cultural, identidade, memória, documentos, edificações, conhecimentos e modos de fazer, rituais e festas, mercados, feiras, santuários e praças, entre outros.
A proteção dos recursos tecnológicos também tem o seu lugar, seja quanto às ferramentas ou indícios de sua utilização há milhões de anos e no decorrer desse tempo passado, seja quanto às tecnologias contemporâneas, em atual desenvolvimento. Na seção constitucional que trata da cultura está a informação de que o patrimônio cultural brasileiro também é constituído por sítios de valor histórico, arqueológico, paleontológico e científico e pelas criações científicas e tecnológicas.
A pré-história e a história da vinculação da subsistência humana à tecnologia é também a narrativa do desenvolvimento da mente humana, que explica, finalmente, como surgiram as artes, as religiões – ambas também passíveis de proteção pelos direitos culturais – e a ciência. Podemos até estar temporalmente muito distantes dos nossos antepassados, mas sem eles não teríamos telas de computadores e celulares para ler isto. E, por curiosidade científica, ou mesmo que seja pela busca de uma identidade mais profunda, é natural querer proteger quem fomos ou somos e as nossas criações.
Nota
[1] Essa é a visão da corrente convencional, no entanto, é possível que os australopithecus, os quais viveram entre um e dois milhões de anos antes do H. habilis, já empregassem técnicas de produção de artefatos líticos.