Antes de se adentrar no tópico principal do presente artigo, convém fazer uma célere contextualização a respeito das mudanças provocadas em 2021 pela lei nº 14.230 que difundiu diversas alterações no texto da lei de improbidade administrativa, lei nº 8.429/92, havendo profundas modificações na forma de processamento da ação de improbidade.
Dentre as principais novidades, destacam-se as mudanças ocorridas no enquadramento na conduta de violação aos princípios da Administração Pública, tipificadas no art. 11 da lei 8.429/92.
Antes das alterações, o mesmo era entendido pela doutrina e jurisprudência como um rol meramente, exemplificativo, um tipo aberto, não excluindo outras hipóteses em leis extravagantes, como se pode observar pela jurisprudência do STJ:
ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ART. 11 DA LEI 8.429/1992. ILÍCITO DECORRENTE DE AFRONTA AOS PRINCÍPIOS ADMINISTRATIVOS. EXIGÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE DOLO GENÉRICO E NÃO DE DOLO ESPECIAL. IMPOSSIBILIDADE DE ENUMERAÇÃO JUDICIAL EM NUMERUS CLAUSUS DE HIPÓTESES QUE CONFIGUREM TAL MODALIDADE DE IMPROBIDADE. ADMISSIBILIDADE DE ROL A TÍTULO EXEMPLIFICATIVO. EMBARGOS PROVIDOS. DOLO GENÉRICO E MÁ-FÉ NA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA 1. Está pacificada a jurisprudência do STJ no sentido de que, para configurar ato de improbidade na Lei 8.429/1992, inclusive por ofensa a princípio da administração (art. 11), não se exige dolo específico, bastando o dolo genérico. Este, como sabido, verifica-se quando o agente realiza voluntariamente o núcleo do tipo legal, mesmo que ausente finalidade específica de agir. Precedentes.
2. No Direito Público e Privado, a noção de má-fé, ao contrário da de dolo, não se mostra unívoca. Logo, trazer tal conceito camaleônico para a compreensão do elemento subjetivo da improbidade administrativa apenas acrescenta ambiguidade ao texto legal. A insegurança jurídica e hermenêutica decorre do fato de que, nos vários ramos do Direito, dolo genérico e má-fé ora são termos sinônimos, ora ostentam caráter distinto. A Lei 8.429/1992 não fez nenhuma referência à má-fé, donde inadequado incorporá-la judicialmente na exegese e aplicação do microssistema da improbidade administrativa.
CARÁTER ABERTO DO ART. 11 DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA 3. Diante do caráter aberto do art. 11 da Lei 8.429/1992, descabe fazer enumeração judicial em numerus clausus de modalidades de improbidade administrativa atinentes a afronta aos princípios da Administração Pública.
4. A conduta do agente ímprobo pode, sim, ser emoldurada no próprio caput do art. 11, sem a necessidade de se encaixar, obrigatoriamente, em uma das figuras previstas nos oito incisos que integram o mesmo artigo. Máxime porque os incisos possuem índole claramente exemplificativa e não de numerus clausus. Basta conferir o final da redação do caput (nave-mãe) que, após indicar a base normativa da conduta ímproba ofensiva a princípios, realça que esse mesmo núcleo estará também caracterizado, "notadamente" (mas não exclusivamente) nas demais condutas identificadas nos incisos subsequentes. Daí resulta que a conduta ímproba realiza-se não só por infração aos incisos do art. 11, mas, antes até, faz-se reconhecível, igual e autonomamente, no tipo genérico e aberto do próprio caput. O STJ já travou discussão anterior e pacificou o entendimento a respeito do caráter exemplificativo das hipóteses previstas no art. 11 da Lei 8.429/1992 (REsp 1.275.469/SP, Rel. Min. Sérgio Kukina, DJe 9/3/2015).
5. Não se podem ossificar as hipóteses de infração aos princípios da (boa) administração, totalmente dependentes da fluida e mutante dinâmica social. Além disso, impende examinar, caso a caso, o elemento subjetivo, diante da situação concreta, inviável aferir abstratamente a conduta, antes que aconteça. Benéfico estabelecer parâmetros genéricos para preservação da segurança jurídica dos cidadãos de modo geral, nomeadamente dos que exercem cargos públicos, algo que já se encontra na lei. Mas não parece recomendável ou prudente criar muros absolutos de previsão legal milimétrica para comportamentos antissociais altamente cambiantes por sua própria natureza.
6. Conceitos jurídicos indeterminados são imprescindíveis e inevitáveis na regulação de condutas humanas. Encontram-se em todas as disciplinas do nosso ordenamento (inclusive no Direito Penal) e do de outros países, com destaque para aqueles que modelaram e ainda influenciam nossa cultura jurídica. Realidade nacional e internacional, tão longeva quanto assentada, tais técnicas de redação legal asseguram que a norma exiba um mínimo de flexibilidade, de forma a acomodar, na sempre incompleta linguagem e nas fórmulas usadas pelo legislador, a diversidade de casos não positivados expressamente. Por conseguinte, utópico imaginar ser possível legislar sem conceitos jurídicos indeterminados, mormente para a Administração Pública, contaminada por gestores ímprobos, em todos setores e instâncias - felizmente como exceção -, assustadoramente criativos no vandalismo a padrões de ética e lisura administrativas, na apropriação privada de recursos públicos e no assenhoreamento da máquina estatal para desígnios próprios escusos ou em favor de interesses de grupos privilegiados.
7. Mesmo o Direito Penal - ramo da ciência jurídica que trata da liberdade, valor dos mais caros entre os inerentes ao exercício pleno da cidadania - vem repleto de tipos penais abertos que requerem do intérprete (o julgador) esforço complementar para, concretamente, situar seu alcance. Tipos penais abertos definem-se como aqueles que contêm elementos normativos ou subjetivos, de modo que dependem da interpretação para que adquiram sentido e tenham aplicação escorreita. É assim com a maioria dos tipos culposos. Para além desses, identificam-se muitos outros, tais como repouso noturno (art. 155, § 1º, do CP); condição análoga à de escravo (art.
149 do CP); violação a domicílio (art. 150 do CP). Na mesma linha, a noção de imprescindível para as diligências (art. 404 do CPP), para as provas (art. 411, § 7º, do CPP) e para as cartas rogatórias (art. 222-A do CPP); gerir fraudulentamente instituição financeira (art. 4º, caput, da Lei 7.492/1986); gestão temerária (art. 4º, parágrafo único, da Lei 7.492/1983); manifestar-se falsamente o interventor, o liquidante ou o síndico, a respeito de assunto relativo a intervenção, liquidação extrajudicial ou falência de instituição financeira entre outros (art. 15 da Lei do Sistema Financeiro Nacional, destaquei); praticar ato fraudulento de que resulte ou possa resultar prejuízo aos credores (art. 168 da Lei de Falências).
8. Exemplos também podem ser citados na Lei de Responsabilidade dos Prefeitos (Decreto-Lei 201/1967): omitir-se ou negligenciar na defesa de bens, rendas, direitos ou interesses do Município sujeitos à administração da Prefeitura (art. 4º, inciso VIII); impedir o funcionamento regular da Câmara (art. 4º, inciso I). Os mesmos tipos abertos são utilizados na Lei 1.079/1950, que trata dos crimes de responsabilidade do Presidente da República: cometer ato de hostilidade contra nação estrangeira, expondo a República ao perigo da guerra, ou comprometendo-lhe a neutralidade (item 3, artigo 5º);
celebrar tratados, convenções ou ajustes que comprometam a dignidade da Nação (item 6 do artigo 5º); proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo (item 7 do artigo 9º). O próprio conceito de "organização criminosa", contido no artigo 2.º da Lei 12.850/2013 (promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa), reclama exercício hermenêutico judicial.
9. Não é diferente com os conceitos abertos nas qualificadoras do crime de homicídio (artigo 121, § 2.º, do Código Penal), um dos mais severamente punidos no Direito Penal. Confiram-se: motivo torpe (inciso I); motivo fútil (inciso II); outro meio insidioso ou cruel (inciso III); mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido (inciso IV).
10. Em síntese, se nem no campo criminal os Tribunais cogitaram de atuar de modo a, preventivamente e à margem da lei, restringir, em numerus clausus, o alcance e abrangência das disposições abertas - o que tampouco se afiguraria plausível, porque inviável antever e narrar a multiplicidade e a riqueza de situações que a realidade da vida apresenta -, não se vê justificativa para que essa limitação seja executada em matéria civil ou administrativa, ou seja, na improbidade administrativa.
11. Embargos de Divergência providos.
(EREsp n. 1.193.248/MG, relator Ministro Og Fernandes, relator para acórdão Ministro Herman Benjamin, Primeira Seção, julgado em 26/6/2019, DJe de 18/12/2020.)
Pode-se inferir, que pelo caráter aberto, a jurisprudência permitia até o enquadramento da conduta no mero caput do art. 11 da lei 8.429/92, sem a obrigatoriedade de se encaixar em algum dos incisos, justamente, por não ser numerus clausus.
Com as alterações promovidas pela lei 14.230/21, a redação do caput do artigo 11 almejou criar um rol taxativo de condutas:
ANTES |
DEPOIS |
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Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas: |
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I - (revogado); |
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II - (revogado); |
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III - revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo, propiciando beneficiamento por informação privilegiada ou colocando em risco a segurança da sociedade e do Estado; |
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IV - negar publicidade aos atos oficiais, exceto em razão de sua imprescindibilidade para a segurança da sociedade e do Estado ou de outras hipóteses instituídas em lei; |
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V - frustrar, em ofensa à imparcialidade, o caráter concorrencial de concurso público, de chamamento ou de procedimento licitatório, com vistas à obtenção de benefício próprio, direto ou indireto, ou de terceiros; |
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VI - deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo, desde que disponha das condições para isso, com vistas a ocultar irregularidades; |
VII - revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes da respectiva divulgação oficial, teor de medida política ou econômica capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço. |
Idem |
VIII - descumprir as normas relativas à celebração, fiscalização e aprovação de contas de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas. |
Idem |
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IX - (revogado); |
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X - (revogado); |
XI - nomear cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas; |
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XII - praticar, no âmbito da administração pública e com recursos do erário, ato de publicidade que contrarie o disposto no § 1º do art. 37 da Constituição Federal, de forma a promover inequívoco enaltecimento do agente público e personalização de atos, de programas, de obras, de serviços ou de campanhas dos órgãos públicos. |
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§ 1º Nos termos da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, promulgada pelo Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006, somente haverá improbidade administrativa, na aplicação deste artigo, quando for comprovado na conduta funcional do agente público o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade. |
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§ 2º Aplica-se o disposto no § 1º deste artigo a quaisquer atos de improbidade administrativa tipificados nesta Lei e em leis especiais e a quaisquer outros tipos especiais de improbidade administrativa instituídos por lei |
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§ 3º O enquadramento de conduta funcional na categoria de que trata este artigo pressupõe a demonstração objetiva da prática de ilegalidade no exercício da função pública, com a indicação das normas constitucionais, legais ou infralegais violadas. |
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§ 4º Os atos de improbidade de que trata este artigo exigem lesividade relevante ao bem jurídico tutelado para serem passíveis de sancionamento e independem do reconhecimento da produção de danos ao erário e de enriquecimento ilícito dos agentes públicos. |
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§ 5º Não se configurará improbidade a mera nomeação ou indicação política por parte dos detentores de mandatos eletivos, sendo necessária a aferição de dolo com finalidade ilícita por parte do agente. |
Para configuração do ato de improbidade administrativa que atente contra os princípios da Administração Pública, conforme nova redação legal, será exigido a demonstração inequívoca de dolo específico, o fim de obter proveito indevido para si ou para outrem, demonstração objetiva da prática de ilegalidade no exercício da função pública com indicação das normas violadas, lesividade relevante ao bem jurídico tutelado, independendo de dano ao erário ou enriquecimento ilícito dos agentes.
Feitas as considerações introdutórias, passa-se a análise do caso hipotético de um agente público que tenha cometido em 2018 ato enquadrado no art. 11, I, da lei 8.429/92, não havendo processo transitado em julgado, e suas consequências práticas e jurídicas diante da revogação trazida pela lei 14.230/21 à luz da jurisprudência do STF.
Primeiramente, faz-se necessário trazer as teses já definidas pelo STF no ARE 843.989/PR (tema 1.199) sobre o tema:
1) é necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se, nos artigos 9.º, 10 e 11 da Lei de Improbidade Administrativa, a presença do elemento subjetivo dolo;
2) a norma benéfica da Lei n.º 14.230/2021 — revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa — é irretroativa, em virtude do artigo 5.º, inciso XXXVI, da Constituição Federal de 1988 (CF), não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada, tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes;
3) a Lei n.º 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos, praticados na vigência do texto anterior, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do tipo culposo, devendo o juízo competente analisar eventual dolo do agente; e
4) o novo regime prescricional previsto na Lei n.º 14.230/2021 é irretroativo, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei. Não há que se falar em aplicação do fenômeno da prescrição intercorrente de forma retroativa.
No caso de conduta que atente contra os princípios da Administração Pública, não há o que se falar de conduta culposa, mesmo antes das alterações legais promovidas em 2021, uma vez que o art. 11 da lei 8.429/92 sempre exigiu, no mínimo, um dolo genérico por parte do agente, dessa forma, não seria pertinente se aplicar a 3ª tese acima ao presente caso hipotético, uma vez que se está praticando uma conduta dolosa.
Para entender melhor as teses fixadas pelo Supremo, importante se faz apreciar a ementa do julgado:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. IRRETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA (LEI 14.230/2021) PARA A RESPONSABILIDADE POR ATOS ILÍCITOS CIVIS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA (LEI 8.429/92). NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DE REGRAS RÍGIDAS DE REGÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E RESPONSABILIZAÇÃO DOS AGENTES PÚBLICOS CORRUPTOS PREVISTAS NO ARTIGO 37 DA CF. INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 5º, XL DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL AO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR POR AUSÊNCIA DE EXPRESSA PREVISÃO NORMATIVA. APLICAÇÃO DOS NOVOS DISPOSITIVOS LEGAIS SOMENTE A PARTIR DA ENTRADA EM VIGOR DA NOVA LEI, OBSERVADO O RESPEITO AO ATO JURÍDICO PERFEITO E A COISA JULGADA (CF, ART. 5º, XXXVI). RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO COM A FIXAÇÃO DE TESE DE REPERCUSSÃO GERAL PARA O TEMA 1199. 1. A Lei de Improbidade Administrativa, de 2 de junho de 1992, representou uma das maiores conquistas do povo brasileiro no combate à corrupção e à má gestão dos recursos públicos. 2. O aperfeiçoamento do combate à corrupção no serviço público foi uma grande preocupação do legislador constituinte, ao estabelecer, no art. 37 da Constituição Federal, verdadeiros códigos de conduta à Administração Pública e aos seus agentes, prevendo, inclusive, pela primeira vez no texto constitucional, a possibilidade de responsabilização e aplicação de graves sanções pela prática de atos de improbidade administrativa (art. 37, § 4.º, da CF). 3. A Constituição de 1988 privilegiou o combate à improbidade administrativa, para evitar que os agentes públicos atuem em detrimento do Estado, pois, como já salientava Platão, na clássica obra REPÚBLICA, a punição e o afastamento da vida pública dos agentes corruptos pretendem fixar uma regra proibitiva para que os servidores públicos não se deixem “induzir por preço nenhum a agir em detrimento dos interesses do Estado”. 4. O combate à corrupção, à ilegalidade e à imoralidade no seio do Poder Público, com graves reflexos na carência de recursos para implementação de políticas públicas de qualidade, deve ser prioridade absoluta no âmbito de todos os órgãos constitucionalmente institucionalizados. 5. A corrupção é a negativa do Estado Constitucional, que tem por missão a manutenção da retidão e da honestidade na conduta dos negócios públicos, pois não só desvia os recursos necessários para a efetiva e eficiente prestação dos serviços públicos, mas também corrói os pilares do Estado de Direito e contamina a necessária legitimidade dos detentores de cargos públicos, vital para a preservação da Democracia representativa. 6. A Lei 14.230/2021 não excluiu a natureza civil dos atos de improbidade administrativa e suas sanções, pois essa “natureza civil” retira seu substrato normativo diretamente do texto constitucional, conforme reconhecido pacificamente por essa SUPREMA CORTE (TEMA 576 de Repercussão Geral, de minha relatoria, RE n.º 976.566/PA). 7. O ato de improbidade administrativa é um ato ilícito civil qualificado – “ilegalidade qualificada pela prática de corrupção” – e exige, para a sua consumação, um desvio de conduta do agente público, devidamente tipificado em lei, e que, no exercício indevido de suas funções, afaste-se dos padrões éticos e morais da sociedade, pretendendo obter vantagens materiais indevidas (artigo 9.º da LIA) ou gerar prejuízos ao patrimônio público (artigo 10 da LIA), mesmo que não obtenha sucesso em suas intenções, apesar de ferir os princípios e preceitos básicos da administração pública (artigo 11 da LIA). 8. A Lei 14.230/2021 reiterou, expressamente, a regra geral de necessidade de comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação do ato de improbidade administrativa, exigindo – em todas as hipóteses – a presença do elemento subjetivo do tipo – DOLO, conforme se verifica nas novas redações dos artigos 1.º, §§ 1.º e 2.º; 9.º, 10, 11; bem como na revogação do artigo 5.º. 9. Não se admite responsabilidade objetiva no âmbito de aplicação da lei de improbidade administrativa desde a edição da Lei 8.429/92 e, a partir da Lei 14.230/2021, foi revogada a modalidade culposa prevista no artigo 10 da LIA. 10. A opção do legislador em alterar a lei de improbidade administrativa com a supressão da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa foi clara e plenamente válida, uma vez que é a própria Constituição Federal que delega à legislação ordinária a forma e tipificação dos atos de improbidade administrativa e a gradação das sanções constitucionalmente estabelecidas (CF, art. 37, § 4.º). 11. O princípio da retroatividade da lei penal, consagrado no inciso XL do artigo 5.º da Constituição Federal (“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”) não tem aplicação automática para a responsabilidade por atos ilícitos civis de improbidade administrativa, por ausência de expressa previsão legal e sob pena de desrespeito à constitucionalização das regras rígidas de regência da Administração Pública e responsabilização dos agentes públicos corruptos com flagrante desrespeito e enfraquecimento do Direito Administrativo Sancionador. 12. Ao revogar a modalidade culposa do ato de improbidade administrativa, entretanto, a Lei 14.230/2021, não trouxe qualquer previsão de “anistia” geral para todos aqueles que, nesses mais de 30 anos de aplicação da LIA, foram condenados pela forma culposa de artigo 10; nem tampouco determinou, expressamente, sua retroatividade ou mesmo estabeleceu uma regra de transição que pudesse auxiliar o intérprete na aplicação dessa norma – revogação do ato de improbidade administrativa culposo – em situações diversas como ações em andamento, condenações não transitadas em julgado e condenações transitadas em julgado. 13. A norma mais benéfica prevista pela Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa –, portanto, não é retroativa e, consequentemente, não tem incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes. Observância do artigo 5.º, inciso XXXVI, da Constituição Federal. 14. Os prazos prescricionais previstos em lei garantem a segurança jurídica, a estabilidade e a previsibilidade do ordenamento jurídico; fixando termos exatos para que o Poder Público possa aplicar as sanções derivadas de condenação por ato de improbidade administrativa. 15. A prescrição é o perecimento da pretensão punitiva ou da pretensão executória pela INÉRCIA do próprio Estado. A prescrição prende-se à noção de perda do direito de punir do Estado por sua negligência, ineficiência ou incompetência em determinado lapso de tempo. 16. Sem INÉRCIA não há PRESCRIÇÃO. Sem INÉRCIA não há sancionamento ao titular da pretensão. Sem INÉRCIA não há possibilidade de se afastar a proteção à probidade e ao patrimônio público. 17. Na aplicação do novo regime prescricional — novos prazos e prescrição intercorrente —, há necessidade de observância dos princípios da segurança jurídica, do acesso à Justiça e da proteção da confiança, com a IRRETROATIVIDADE da Lei 14.230/2021, garantindo-se a plena eficácia dos atos praticados validamente antes da alteração legislativa. 18. Inaplicabilidade dos prazos prescricionais da nova lei às ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa, que permanecem imprescritíveis, conforme decidido pelo Plenário da CORTE, no TEMA 897, Repercussão Geral no RE 852.475, Red. p/Acórdão: min. EDSON FACHIN. 19. Recurso Extraordinário PROVIDO. Fixação de tese de repercussão geral para o Tema 1199: “1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se – nos artigos 9.º, 10 e 11 da LIA – a presença do elemento subjetivo – DOLO; 2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa –, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; 4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei”. (ARE 843989, relator Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, julgado em 18/8/2022, Processo Eletrônico Repercussão Geral – MÉRITO DJe-251, divulgação em 9/12/2022, publicação em 12/12/2022).
Como se pode observar do julgado acima, o Supremo não decidiu, expressamente, sobre a retroatividade ou não do art. 11 da lei de improbidade, somente afirmou que não seria possível retroagir aos casos culposos nos quais existiriam condenações definitivas e processos em fase de execução das penas; e quanto ao novo regime prescricional previsto em lei.
Analisando a própria ementa do julgado, a irretroatividade da lei é a regra no ordenamento jurídico pátrio, pois normas restritivas devem ser interpretadas restritivamente, assegurando-se segurança jurídica que confere estabilidade às relações jurídicas, protegendo-as conforme tempo e modo de sua constituição sob o império das leis posteriormente revogadas, trazendo consigo o princípio da confiança legítima dos cidadãos sob os atos da Administração Pública.
A própria ementa ressaltou que existe uma limitação de aplicação retroativa aos atos jurídicos perfeito e a coisa julgada, art. 5º, XXXVI, da CF. A própria LINDB em seu art. 6º prevê expressamente o princípio da irretroatividade, afirmando que a lei terá efeito imediato e geral, respeitado o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
O caso em análise enquadrado no art. 11, I da lei 8.429/92 foi praticado antes das inovações legais ocorridas no texto da lei de improbidade, posteriormente, revogadas, o que à luz da jurisprudência do STF, pode-se entender pela predisposição de aplicação do princípio do tempus regit actum, conforme seguimento destacado do corpo da ementa do Supremo:
“O princípio da retroatividade da lei penal, consagrado no inciso XL do artigo 5.º da Constituição Federal (“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”) não tem aplicação automática para a responsabilidade por atos ilícitos civis de improbidade administrativa, por ausência de expressa previsão legal e sob pena de desrespeito à constitucionalização das regras rígidas de regência da Administração Pública e responsabilização dos agentes públicos corruptos com flagrante desrespeito e enfraquecimento do Direito Administrativo Sancionador”
Conforme art. 1º, §4º da LIA, aplicam-se ao sistema da improbidade os princípios do Direito Administrativo Sancionador, ramo do Direito Administrativo, e não o Direito Penal, cuja dogmática pode contribuir para a compreensão das suas estruturas, contudo não pode ser reproduzida automaticamente, deixando de se atentar para a identidade do próprio Direito Administrativo que possui seus alicerces constitucionais na busca da tutela de interesses públicos.
Deve-se ter em mente que a lei 14.230/2021 não excluiu a natureza civil dos atos de improbidade administrativa, retirando seu substrato normativo diretamente do texto constitucional, conforme jurisprudência pacífica do STF (Tema 576 – RE976.566/PA).
Ademais, conforme regras básicas de hermenêutica jurídica do ordenamento, os casos de retroatividade da lei, devem vir expressos na lei posterior, não se podendo presumir, sendo a irretroatividade a regra no presente caso.
Ainda que não se analisasse o caso sob o viés do princípio da irretroatividade legal, do ponto de vista de retrocesso legislativo, conforme orientação da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida), da qual o Brasil é signatário, a interpretação que melhor se adequa aos fragmentos do possível e futuro entendimento do Supremo é pela impossibilidade de aplicação retroativa das alterações da LIA.
Não se desconhece as vozes em sentido contrário que pregam uma verdadeira abolitio criminis, porém, com a devida vênia, não se pode prosperar a presente interpretação.
A Abolitio Criminis é a supressão de um tipo penal pela criação de uma lei que descriminaliza a conduta, ou seja, o fato deixa de ser crime e passa a ser atípico.1 Já a revogação do dispositivo da lei é a retirada de um artigo, que pode ou não implicar em abolitio. Se a conduta revogada passar a ser subsumida por outro dispositivo legal, já vigente ou substitutivo do anterior, não haverá abolitio, mas apenas continuidade normativo-típica.2
Assim, não se pode falar, automaticamente, que uma conduta enquadrada no art. 11, I, da lei nº 8.429/92, tenha sido abolida do ordenamento com as alterações legais ocorridas posteriormente, uma vez que seria possível cogitar a possibilidade de enquadramento da situação em mais de um inciso, a depender do contexto fático, considerando, inclusive, que o investigado não se defende da capitulação legal, mas sim dos fatos contra ele imputados, conforme teoria da substanciação, plenamente, aplicada no âmbito administrativo.
Apesar das vozes em sentido contrário, faz-se necessário ir além da mera interpretação gramatical sobre a natureza do rol do art. 11, analisando-se de forma sistemática as inovações trazidas pela lei 14.230/21:
Art. 1º O sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa tutelará a probidade na organização do Estado e no exercício de suas funções, como forma de assegurar a integridade do patrimônio público e social, nos termos desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)
Parágrafo único. (Revogado). (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)
§ 1º Consideram-se atos de improbidade administrativa as condutas dolosas tipificadas nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, ressalvados tipos previstos em leis especiais. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)
Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas:
(...)
§ 2º Aplica-se o disposto no § 1º deste artigo a quaisquer atos de improbidade administrativa tipificados nesta Lei e em leis especiais e a quaisquer outros tipos especiais de improbidade administrativa instituídos por lei. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021
Como se pode inferir, o próprio legislador tratou de ressalvar que poderão ser considerados atos de improbidade que atente contra princípios, art. 11, disposições tipificadas em outras leis que não sejam a lei 8.429.92, leis especiais.3
Nesse sentido destaca-se o art. 52 da lei 10.257/2001, estatuto da cidade, que prevê condutas de improbidade administrativa praticadas pelos prefeitos municipais
Art. 52. Sem prejuízo da punição de outros agentes públicos envolvidos e da aplicação de outras sanções cabíveis, o Prefeito incorre em improbidade administrativa, nos termos da Lei no 8.429, de 2 de junho de 1992, quando:
I – (VETADO)
II – deixar de proceder, no prazo de cinco anos, o adequado aproveitamento do imóvel incorporado ao patrimônio público, conforme o disposto no § 4o do art. 8o desta Lei;
III – utilizar áreas obtidas por meio do direito de preempção em desacordo com o disposto no art. 26 desta Lei;
IV – aplicar os recursos auferidos com a outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso em desacordo com o previsto no art. 31 desta Lei;
V – aplicar os recursos auferidos com operações consorciadas em desacordo com o previsto no § 1o do art. 33 desta Lei;
VI – impedir ou deixar de garantir os requisitos contidos nos incisos I a III do § 4o do art. 40 desta Lei;
VII – deixar de tomar as providências necessárias para garantir a observância do disposto no § 3o do art. 40 e no art. 50 desta Lei;
VIII – adquirir imóvel objeto de direito de preempção, nos termos dos arts. 25 a 27 desta Lei, pelo valor da proposta apresentada, se este for, comprovadamente, superior ao de mercado.
Portanto, é facilmente perceptível que a conduta de um prefeito que infrinja o art. 52, III, da lei 10.257/2001, atentará com o fim proibido em lei, ofendendo o princípio da legalidade, que apesar de ter sido revogado o art. 11, I, da lei 8.429/92 pela lei 14.230/2021, continua tendo sua tipificação regulada por lei especial, permanecendo a continuidade normativo-típica, passível de punição por improbidade administrativa que atente contra princípios da Administração, mantendo, por isso, a interpretação que o rol do art. 11 da LIA continua sendo meramente exemplificativo, numerus apertus.
Como muito bem afirmado pelo art. 11, §3º da lei de improbidade:
§ 3º O enquadramento de conduta funcional na categoria de que trata este artigo pressupõe a demonstração objetiva da prática de ilegalidade no exercício da função pública, com a indicação das normas constitucionais, legais ou infralegais violadas.
A construção interpretativa da redação do texto legal acima somente se compatibiliza com a estrutura de tipo aberto, podendo qualquer lei esparsa que defina objetivamente a prática da ilegalidade no exercício da função pública, com indicação das normas violadas ser conduta passível de se enquadrar como violação aos princípios da Administração Pública.
Dessa forma, com a devida vênia aos entendimentos contrários, à luz dos ensinamentos que melhor se coadunam com a linha que vem adotando o Supremo, conclui-se as seguintes teses:
1 – O art. 11 da lei 8.429/92 continua sendo um rol meramente exemplificativo, numerus apertus, não excluindo disposições previstas em leis especiais que tipifiquem outras hipóteses de improbidade administrativa.
2 - Inexistência de abolitio criminis, haja vista a continuidade normativo-típica previstas em leis especiais, bem como obediência ao princípio da substanciação.
3 – A retroatividade da lei deve vir expressa na lei posterior, não se podendo presumir, sendo a irretroatividade a regra no presente caso
4 - Irretroatividade do art. 11 da LIA, alterado pela lei 14.230/2021, para hipóteses pretéritas, sob pena de afronta ao ato jurídico perfeito, à luz do princípio do tempus regit actum.
5 – Impossibilidade de aplicação dos princípios do direito penal, art. 5, XL, da CF, ao caso pela natureza de ilícito civil das sanções de improbidade e independência relativa das esferas administrativa, civil e penal.