A constituição prévia de advogado pelo réu obsta a suspensão do processo penal nos termos do art. 366, cpp?

Leia nesta página:

INTRODUÇÃO.

O art. 366 prevê a suspensão do processo e do prazo prescricional para o acusado que, após a citação por edital, não comparece nem constitui advogado.

Uma questão com a qual pode se deparar o intérprete é: a constituição prévia de advogado pelo acusado, antes da perfectibilização da citação por edital, é suficiente para que o processo prossiga sem a suspensão prevista no art. 366, CPP?

A questão pode parecer meramente teórica, mas a prática revela que muitos investigados constituem advogados exclusivamente para acompanhar o inquérito policial. Uma leitura apressada do art. 366, CPP, poderia sugerir que essa constituição de advogado bastaria para obstar a suspensão do processo na hipótese de citação do réu por edital. Não é, todavia, a interpretação que mais se adequa ao sistema Constitucional estabelecido pela Constituição de 1988. É o que se pretende demonstrar nesse artigo.

DA IMPOSSIBILIDADE DE SE OBSTAR A SUSPENSÃO DO PROCESSO EM RAZÃO DE CONSTITUIÇÃO PRÉVIA DE DEFENSOR.

A necessidade de suspensão do processo no caso de réu citado por edital – modalidade de citação ficta – decorre da impossibilidade de certeza sobre a ciência efetiva do processo após o ato citatório.

Nesse sentido, ao comentar referido dispositivo legal, ensina Eugênio Pacelli: “Se o ato citatório é indispensável para a regularidade do feito, uma vez que é ele que possibilita ao réu não só o conhecimento da demanda, mas a oportunidade do exercício da ampla defesa, do contraditório, do direito ao silêncio e das demais garantias processuais individuais, não há dúvida de que semelhante modalidade de citação não cumpre o seu destino, na maioria das vezes”.1

Isto é: o Código reconhece que a citação por edital não é meio de efetiva ciência do acusado e, por isso, impede que o processo tenha curso sem sua efetiva ciência.

Nesse sentido, a doutrina de Renato Brasileiro: “O objetivo do dispositivo é evidente: visa assegurar uma atuação efetiva e concreta do contraditório e da ampla defesa De fato, sobretudo em casos de nomeação de defensor público ou advogado dativo, a citação por edital do acusado, com ulterior decretação de revelia, tal qual ocorrida anteriormente, inviabilizava por demais o exercício da ampla defesa, na medida em que impossibilitava que o acusado apresentasse ao juiz sua versão a respeito do fato da imputação, cerceando também o direito de acompanhar, ao lado de seu defensor, os atos da instrução processo2.

De mais a mais, cumpre consignar que o advogado constituído não pode, em nenhuma hipótese, receber citação em nome do réu, se no instrumento de mandato não houver expressamente cláusula com outorga de poderes especiais para tanto. Aqui, importante lembrar que o art. 105 do Código de Processo Civil exige poderes especiais para receber citação – que devem estar expressamente previstos no instrumento de mandato.

Caso a procuração preveja expressamente poderes para receber citação e o advogado continue a atuar em favor do cliente após a citação, o problema aqui estudado fica superado. Porém, não é o que ordinariamente acontece.

Quando se trata de processo civil, é pacífica jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de exigir poderes específicos no instrumento de mandato:

“AGRAVO INTERNO. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO CONTRA DUAS RÉS COM PROCURADORES DIFERENTES. JUNTADA DE PROCURAÇÃO SEM PODERES PARA RECEBER CITAÇÃO. COMPARECIMENTO ESPONTÂNEO NÃO CARACTERIZADO. 1. A juntada de procuração sem poderes para receber citação não configura comparecimento espontâneo (Código de Processo Civil de 1973, artigo 214, § 1º). Precedentes. 2. Agravo interno a que se nega provimento” (STJ, AgInt no AREsp 896.467/SP, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 16/03/2017, DJe 21/03/2017).

No mesmo sentido, os seguintes precedentes: AgRg no REsp 1538505/MT3, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Belizze e o AgRg no AREsp 276.143/PA4, que teve como relator o Ministro Raul Araújo.

Todos esses precedentes, porém, tiveram origem em casos em que se discutiam processos cíveis.

A questão então é: tais precedentes seriam aplicáveis ao processo penal? Isto é: são necessários poderes especiais para o advogado receber citação em nome do cliente? Ou o mero comparecimento de advogado, como sugere o art. 366, CPP, supriria essa necessidade?

Conforme já adiantado na introdução desse artigo, entendemos que a melhor interpretação do art. 366, CPP, é aquela que – atenta aos princípios constitucionais aplicáveis ao processo penal – apenas admite que o comparecimento de advogado obste a suspensão da ação penal se ele possuir poderes específicos para receber citação.

Primeiro, porque a procuração é instrumento que veicula o contrato de mandato, típico do direito civil e por ele regulado. Isto é: o contrato de mandato está sujeito às regras do direito civil, e não penal – mesmo porque, não há na lei penal disciplina específica sobre tal instrumento.

Em segundo lugar, se a legislação civil – que, geralmente, lida com direitos disponíveis – confere determinado rigor ao ato, este não pode ser flexibilizado na esfera penal, que lida com direitos muito mais relevantes (liberdade), à míngua de previsão legal específica que assim autorize.

Terceiro: não é apenas o CPC que determina a necessidade de poderes especiais para o recebimento de citação por terceiro. Também o Estatuto da OAB, Lei nº 8906/94, no art. 5º, pár. 2º, determina: “A procuração para o foro em geral habilita o advogado a praticar todos os atos judiciais, em qualquer juízo ou instância, salvo os que exijam poderes especiais”.

Assim, há Lei Nacional que exige a necessidade de os poderes especiais estarem expressos na procuração. A Lei 8.906/94 não faz distinção entre casos penais ou cíveis ao deixar explícito que a procuração geral para o foro não autoriza ao advogado receber citação em nome do Réu.

O art. 366, CPP, ao fazer menção ao réu que constitui advogado, por óbvio, se refere àquela constituição de advogado posterior à citação – constituição que deixa claro e inequívoca a ciência do réu acerca do processo.

Não há como, portanto, admitir que a prévia constituição de advogado pelo Réu, antes da citação ficta, e sem poderes especiais para receber citação, possa justificar a não suspensão do processo nos termos do art. 366, CPP.

Em caso em que se tratava de hipótese idêntica à aqui analisada, o Tribunal de Justiça de São Paulo, concedeu Habeas Corpus impetrado pela Defensoria Pública de São Paulo, determinando-se a suspensão do processo nos termos do art. 366, CPP, nos seguintes termos:

“Embora os defensores constituídos pelo corréu, ora paciente, tenham atuado na fase de inquérito, apresentado defesa prévia e, inclusive, já impetrado habeas corpus em prol do seu cliente, não é possível afirmar que o paciente tenha inequívoco conhecimento da ação penal contra ele instaurada, considerando que os únicos instrumentos de mandato juntados aos autos são genéricos, foram outorgados pelo paciente, respectivamente, nos dias 16/03/2020 e 30/03/2020, e juntados aos autos, respectivamente, em 26/03/2020 e 18/04/2020, ou seja, muito antes do oferecimento e do recebimento da denúncia (ocorridos, respectivamente, dias 19/05/2020 e 20/05/2020). Ademais, a citação por edital foi determinada somente em 15/09/2020, ou seja, após a realização de inúmeros atos processuais e quando o paciente não era mais representado por advogado constituído, que, por motivos particulares e pelo fato de o seu cliente estar em local incerto e não sabido, renunciou ao mandato no dia 04/09/2020 (renúncia esta homologada na mesma data com nomeação da Defensoria Pública) Necessária suspensão processo e do curso do prazo prescricional Inteligência do artigo 366 do CPP Constrangimento ilegal configurado .Ordem concedida para determinar a suspensão da ação penal e do curso do prazo prescricional correspondente” (TJSP, Habeas Corpus nº 2253432-18.2020.8.26.0000, 16ª Câmara de Direito Criminal, Des. Rel. Osni Pereira, j. 10/12/2020)5.

CONCLUSÃO.

Neste artigo, procurou-se analisar a seguinte hipótese: a prévia constituição de advogado seria suficiente para se obstar a suspensão do processo na hipótese de citação por edital?

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Após análise da legislação vigente, doutrina e jurisprudência, entendeu-se que o comparecimento de advogado só é suficiente para suprir a citação pessoal do acusado se no instrumento de mandato houver poderes específicos para receber citação (art. 105, CPC e 5º, par. 2º, Lei 8906/94) ou se, sendo a constituição do causídico posterior ao ato citatório, houver elementos que demonstrem inequívoca a ciência do acusado da ação penal em curso.

Nesse contexto, a constituição prévia de advogado não obsta a suspensão do processo na hipótese de citação por edital. Essa conclusão, conforme demonstrado, tem guarida na jurisprudência dos Tribunais.


  1. PACELLI, Eugenio. Curso de Processo Penal, 21ed., São Paulo: Atlas, 2017.

  2. BRASILEIRO DE LIMA, Renato. Código de Processo Penal Comentado, 2ª. Ed., Salvador: JusPodivm, p. 1002.

  3. “AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO POR TÍTULO EXTRAJUDICIAL. JUNTADA DE PROCURAÇÃO SEM PODERES PARA RECEBER CITAÇÃO OU DE REPRESENTAÇÃO PARA O FORO EM GERAL. COMPARECIMENTO ESPONTÂNEO. NÃO CARACTERIZAÇÃO. RECURSO DESPROVIDO. 1. A juntada aos autos de procuração sem poderes específicos para receber citação, e nem mesmo para o foro em geral, não configura o comparecimento espontâneo, nos termos do art. 214, § 1º, do Código de Processo Civil. 2. Os precedentes trazidos a confronto não têm o condão de demonstrar o invocado dissídio jurisprudencial, na medida em que se encontram amparados em diferentes bases fáticas, as quais permitiram excepcionar a aplicação da regra geral, que exige a citação do réu como requisito de validade do processo de execução, circunstâncias essas que não se fazem presentes no acórdão recorrido. 3. Agravo regimental a que se nega provimento” (STJ, AgRg no REsp 1538505/MT, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/12/2015, DJe 02/02/2016).

  4. “AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. TEMPESTIVIDADE. TERMO INICIAL. COMPARECIMENTO ESPONTÂNEO. NÃO VERIFICAÇÃO. PRECEDENTES. DESPESAS CONDOMINIAIS.ARREMATAÇÃO. DÉBITOS NÃO PREVISTOS NO EDITAL. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DO ARREMATANTE. PRECEDENTES. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. A jurisprudência desta Corte orienta-se no sentido de que o comparecimento de advogado com o escopo de juntar procurações somente tem o condão de configurar comparecimento espontâneo se houver, na procuração, poderes específicos para receber citação ou para atuação específica naquele processo, o que não ocorre no caso em tela. 2. "A responsabilização do arrematante por eventuais encargos omitidos no edital de praça é incompatível com os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança" (REsp 1.297.672/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/9/2013, DJe de 1º/10/2013) 3. Agravo regimental a que se nega provimento” (STJ, AgRg no AREsp 276.143/PA, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 04/08/2015, DJe 17/08/2015).

  5. Em sentido semelhante: “HABEAS CORPUS – Estupro de Vulnerável – Lei Maria da Penha – Impetração visando à revogação da decisão que determinou a suspensão do processo, nos termos do art. 366 do CPP, bem como a revogação da prisão preventiva, por falta de contemporaneidade – IMPOSSIBILIDADE – Procuração outorgada pelo paciente em 2010, com referência a cláusula ad judicia, com o fim especial para atuação exclusiva no IP que antecedeu a ação penal em análise - A procuração com poderes específicos não pode ser considerada de forma ampliada - Tal limitação impede a conclusão de que o paciente estava representado na ação penal” (TJ/SP, 3ª Câmara de Direito Criminal, HC nº 2205114-38.2019.8.26.0000, 3ª Câmara de Direito Criminal, Des. Rel. Ruy Alberto Leme Cavalheiro, j. 30/01/20).

Sobre a autora
Thais Pastor de Amorim Siqueira

Defensora Pública do Estado do Rio Grande do Sul

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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