República de Platão: uma resenha e uma contribuição

25/08/2023 às 18:25
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A obra de Platão data de aproximadamente 375 a.C.. Seu texto chega aos dias atuais após diversas cópias e traduções. Com isso, muitas ideias podem ter perdido seu sentido original, seja por erro de cópia, seja por erro de tradução, seja porque a realidade atual não fornece elementos para proporcionar uma referência quanto à experiência mencionada por Platão.

Aqui será feita uma breve resenha das principais ideias que interessam ao tema do Estado, em que se procurou utilizar mais de uma tradução da obra, de modo a tentar sanar esses problemas, inclusive com o acesso ao texto grego, em princípio mais próximo do original[1]. Entre parênteses serão indicados o Livro e o Capítulo da obra original em grego para auxiliar a localização do texto original em outras versões (em alguns casos indicaremos o número da página em que está a passagem segundo a obra que utilizamos).

No livro “A República”, Platão pretende tratar sobre o tema da justiça. O nome do livro em grego é Πολιτεία ‘η περὶ δικαίου (lê-se “politeia ré peri dikaiu”). A expressão ‘η περὶ δικαίου pode ser traduzida como “sobre a justiça”[2]. Embora a palavra πολιτεία seja normalmente traduzida como república, talvez não seja uma boa tradução. A palavra república vem do latim que significaria coisa (res) pública (publica), ou seja, coisa de todos ou do Estado. A politeia, para usar um “aportuguesamento” da palavra grega, encontra muitos significados no dicionário, como cidadania, vida de um cidadão, conjunto dos cidadãos, vida e administração de um homem de Estado, participação nos assuntos públicos, meios de governo, constituição de um Estado, Estado, forma de governo, governo dos cidadãos por eles mesmos, governo republicano[3]. A palavra grega πόλις (lê-se “pólis”) significa cidade ou Estado[4]. Mas vale ressaltar que a palavra πολύς (lê-se “polis”), que possui o mesmo radical, também traz algumas ideias relacionadas a ela, como numeroso, grande, elevado[5].

Há quem defenda que o título do livro se referiria ao Estado ideal projetado por Platão. Porém, nota-se ao longo do livro que Platão utiliza a palavra “politeia” como gênero composto por cinco espécies de formas de governo. Essas cinco formas incluem a forma ideal e quatro formas imperfeitas, de modo que não parece correta essa concepção.

Por isso, talvez antes de prosseguir, já caibam alguns apontamentos sobre a expressão “república”. Segundo Nicola Matteucci, atualmente a palavra é utilizada como contraponto ao termo “monarquia”, mas essa concepção muda com os tempos. A propósito, ele indica que antigamente os romanos designaram por “res publica” a forma de governo nascida a partir do fim dos reinados, que colocava em destaque o aspecto da coisa pública ou da comunidade, contrapondo-se ao princípio de governo que havia na monarquia. Teria sido Cícero o responsável por definir república como o governo comum, do povo e para o povo, com a ideia de se contrapor aos governos tidos como injustos. Por isso, haveria quem adotasse a expressão república para toda forma de governo legítima, seja ela monárquica, aristocrática ou democrática[6].

Feito esse esclarecimento, a obra de Platão se inicia com a análise do argumento de que justiça é o que convém ao mais forte, de que os injustos teriam mais vantagens do que os justos e de que seria melhor ser injusto e parecer justo, do que justo sem ter fama de justo. A vantagem da injustiça normalmente decorre do fato de tomar algum bem alheio. Porém, segundo Platão, não se poderia simplesmente dizer que justiça é dar a cada um o que é seu, ou que aos amigos dever-se-ia dar o bem e aos inimigos o mal. Isso porque, em princípio, ao se castigar os inimigos ou lhes fazer mal, essas pessoas se tornariam piores e o homem justo não faz maldades. Além disso, para ele, a justiça consiste justamente em fazer o bem aos outros, principalmente aos inferiores. Portanto, os maiores responsáveis pela justiça deveriam ser os chefes ou governantes. Como a injustiça leva à desordem e discórdia, pela traição e ganância, somente a justiça poderia levar um grupo de homens a executar bem um projeto coletivo, ideia essa aplicável às cidades. A justiça seria uma virtude da alma. (Livro 1)

Para Platão, haveria três espécies de bens: os que valeriam por si e por suas consequências, como o conhecimento e a saúde; os bens que, apesar de penosos, também trazem utilidades em suas consequências, como as profissões lucrativas; e os bens que valeriam e seriam desejados por si mesmos, como a alegria. A justiça valeria por si própria e por suas consequências (Livro II, I, 357A a 358A), embora devesse ser buscada mais pelo seu próprio valor do que por suas consequências e utilidades. Para tentar definir a justiça, inicialmente busca compreendê-la nos homens. Durante a análise, insatisfeito, parte para determinar o que seria uma cidade justa. Segundo ele, como os homens nascem diferentes em aptidões, cada um deveria se dedicar apenas às atividades para as quais teria mais aptidão, não devendo se envolver com as atividades dos demais. Até porque, é melhor que cada um se dedique apenas a alguma atividade específica do que todos se dedicarem a tudo. Dessa forma, cada um faria o que sabe fazer melhor e trocaria o excedente do que produziu com os outros membros da sociedade. É por causa desse fato, da vantagem dessa reciprocidade, que surge a sociedade. Conforme cresce a sociedade, ela precisa de mais recursos. Como todas as sociedades passam pelo mesmo problema, surgem as guerras quando uma cidade pretende tirar os recursos da outra. Por isso, a cidade deverá possuir bons guardiões. Para tanto, a educação será fundamental para formá-los desde criança. Os homens deveriam ser educados desde crianças para o bem. (livro II)

Platão dá extrema importância à categoria dos guardiões, não apenas porque eles são responsáveis da defesa da cidade, mas porque lhes caberia o próprio governo. Muitas vezes não é claro se Platão se refere aos soldados ou aos governantes. É que há uma preocupação de que ambos sejam firmes contra o inimigo, mas dóceis para com os membros da sociedade (Livro III). De fato, mais adiante, acaba tratando ambas as categorias conjuntamente como sendo responsáveis pela proteção da cidade contra a concupiscência da terceira classe (p. 114, Livro IV, XVI). Afirma que os filósofos seriam oriundos dos atletas guerreiros (Livro VII, p. 179, VI), e que os que se distinguissem na filosofia e na guerra seriam os soberanos (Livro VIII, p. 198, I).

 A importância dos governantes também é enfatizada na seguinte passagem:

“...se os sapateiros se tornarem inferiores e corruptos, aparentando ser o que não são, isso não fará muito mal à cidade; [...] porém, se os guardiões de nossas leis de nossa cidade só o forem na aparência, você certamente verá que eles irão destruir a cidade completamente, assim como só eles detêm o poder de a administrarem bem e de a fazerem feliz.” (Platão, República, p. 93-94, Livro IV, I)

 

Estabelecidas poucas leis, necessárias apenas para reger a educação e instrução das crianças, não seriam necessárias outras leis. Isso porque, enquanto para os maus a leis seriam inúteis, para os bons elas não seriam necessárias, pois eles as descobririam naturalmente. (p.99-100, Livro IV, V)

Seriam características essenciais para a cidade a sabedoria, a coragem, a temperança e a justiça. (p.100). A sabedoria ou vigilância seria a ciência de governar e caberia aos vigilantes (p.101, Livro IV, VI). A coragem seria a manutenção dos princípios apesar das diversidades, a incorruptibilidade (p.102, Livro IV, VII). A temperança é o governo da alma para prevalecer a virtude e o bem. Como somente poucos homens, os mais instruídos, seriam mais tendentes à virtude, a cidade temperante seria a que se conduzisse de acordo com os desígnios destes, mas harmonizando e unindo a cidade toda, com os menos virtuosos também seguindo essas orientações (p. 103-104, Livro IV, VIII-IX).

A cidade justa seria formada por homens bem-educados, cada um dedicado às atividades que teriam mais aptidão, não devendo cada homem se envolver na atividade de outro ou em atividades para as quais não tivesse habilidade (p.105-106, Livro IV, X).

Assim, tendo definido uma cidade justa, Platão tentará verificar se pode trasladar suas qualidades para o indivíduo (p.107, Livro IV, XI). Na alma do indivíduo, haveria três elementos, o racional, o concupiscível e a cólera, que poderiam ser associadas na cidade, respectivamente, aos governantes, aos comerciantes e aos guerreiros (“χρηματιστικόν, έπικουρητικόν, βουλευτικόν”, p.113, Livro IV, XV).

O governo e o exército devem governar os demais cidadãos assim como a sabedoria e a cólera devem conter o terceiro elemento, que é concupiscente (p. 113-114, livro IV, XVI).

Então, tendo definido o homem justo e a cidade justa, busca tratar da injustiça, afirmando que, embora houvesse diversos vícios, haveria quatro formas que mereceriam ser analisadas. Seguindo na analogia do homem e da cidade, afirma que há cinco formas de governo e cinco espécies de almas (p.117, Livro IV, XIX). As quatro formas de governo injustas ou imperfeitas só serão retomadas no livro VIII (p.198, I).

A cidade justa já exposta representa uma das formas de governo e é designada por dois nomes, monarquia ou reinado (Βασιλεία – lê-se “bassileia”) – um bom governante; aristocracia (΄Αριστοκρατία – lê-se “aristocratia”) – vários bons homens. Ambas as formas estão sob a mesma espécie de constituição, se estiverem em vigor os mesmos princípios de educação e de instrução (p.117, Livro IV, XIX).

No Livro V, Platão trata então da injustiça, seguindo com o método de comparar o homem à cidade. Antes disso, defende a igualdade que deve haver entre homens e mulheres na atribuição de suas atividades e na distribuição entre as categorias, tendo em vista que, sendo a aptidão para cada atividade que deveria servir de critério para essa distribuição, não haveria diferença natural entre homens e mulheres, com exceção da maior força física em relação às mulheres. Seguindo então na análise da injustiça na cidade, para ele, o bem ou o mal que afligir ou beneficiar um único homem deverá afligir ou beneficiar a cidade como um todo, para que todos comunguem do mesmo sentimento, de alegria ou tristeza, em relação aos mesmos fatos, assim como um homem sofre quando lhe é atingido qualquer órgão. Dessa maneira, o maior bem que uma lei propicia é unir a cidade e o maior mal é dividi-la (p. 129-130, Livro V, X). Isso revela a importância de todos se sentirem como fazendo parte de algo maior e o perigo que a exclusão social pode causar.

Para Platão, deveria haver comunhão de mulheres e crianças entre os guerreiros, e estes não deveriam possuir propriedade e deveriam depender dos outros membros da sociedade para obtenção de alimentos e outros recursos. Isso seria importante para a cidade se manter unida (Livro V, p. 131-132, XI e XII). Nota-se que, apesar de não terem propriedade, seriam compensados pela ausência de preocupações com seu sustento. Acredita Platão, dessa maneira, que de modo geral haveria justiça na distribuição de ônus e bônus e equilíbrio quanto à felicidade dos cidadãos.

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Platão divide os conflitos em internos e externos. Quando os gregos possuem conflitos externos, isto é, com bárbaros ou estrangeiros, isso seria a guerra. O conflito interno seria a discórdia, a inimizade, a sedição e representaria uma doença da cidade (p.137, Livro V, XVI). A cidade perfeita seria aquela em que a filosofia estaria unida ao poder político, em que os governantes seriam filósofos (p. 140, Livro V, XVIII). Os filósofos são os que “amam o espetáculo da verdade” (p.142, Livro V, XX).

Então, ao retomar as quatro formas imperfeitas de governo, diz que elas seriam quatro: a representada pelas constituições de Creta e da Lacedemônia; a oligarquia; a democracia; e a tirania (p. 198-199, Livro VIII, I).

Relembra que haveria cinco forma de governo, assim como haveria cinco tipos de almas (p.199, Livro VIII, II). A melhor forma de governo, a aristocracia, já havia sido tratada e corresponderia ao homem bom e justo (p.199, Livro VIII, II). Ἀριστοκρατία (lê-se “aristocratía”) é formada, em primeiro lugar, pela palavra ἄριστος (lê-se “áristos”), que é o superlativo do adjetivo bom, significando, portanto, o melhor, excelente, mais bravo ou nobre[7]. Por sua vez, κρατία (lê-se “kratía”) vem do grego κράς (lê-se “krás”), que significa cabeça e por extensão a parte superior da montanha[8]. Κρατέω (lê-se “kratéo”) significa ser forte, poderoso, mestre, governante[9]. Fica claro, portanto, que a palavra aristocracia, etimologicamente, significaria o comando dos melhores, pois, assim como a cabeça comanda o corpo, o governante comanda o Estado.

Iniciando exame das formas imperfeitas pelos Estados preocupados ou movidos por vitórias, riquezas e honrarias, como ocorre com a Lacedemônia, afirma que não haveria uma palavra para esse tipo de governo. Daí utiliza a palavra timocracia ou timarquia (τιμοκρατία ou τιμαρχία). Τιμος (lê-se “tímos”) vem do substantivo τιμή (lê-se “timé”) e significa valor ou avaliação, bem como prêmio ligado à honra, marca de honra ou de dignidade e merecimento[10]. Τιμα (lê-se “tima”) vem da mesma palavra τιμή e significa honra, nobreza. A palavra ἀρχία (lê-se “arquía”) tem ideia de chefe, de maior autoridade[11], sendo derivada da palavra ἀρχός (lê-se “arkós”), que quer dizer chefe, quem conduz, guia, bem como fundação[12]. Também está ligada à palavra ἄρχω (lê-se “árko”), que quer dizer o primeiro, o comandante[13].

Os regimes seguintes seriam a oligarquia (ὀλιγαρχία), a democracia (δημοκρατία) e finalmente a tirania (τυραννίς) (p. 199, Livro VIII, II). A timocracia estaria no meio do caminho entre a aristocracia e a oligarquia, sendo uma deterioração ou corrupção da aristocracia (p. 201, Livro VIII, III).

Segue-se a oligarquia. A palavra grega ὀλιγός (lê-se “oligós”) significa pouco, e oligarquia significa um governo exercido por um pequeno grupo de pessoas[14]. Segundo Platão, todavia, a oligarquia não é simplesmente um governo de poucas pessoas. É o governo em que os ricos governam sem a participação dos pobres (p. 204, Livro VIII, IV) e em que estes e aqueles estão sempre a conspirar uns contra os outros (p. 205, Livro VIII, VII).

Quando os pobres vencem esse conflito e se instalam no poder, surge a democracia, considerada por Platão, por causa disso, como a forma oposta à oligarquia (p. 209, Livro VIII, IX). Democracia, como se pode ver então, não é nem o governo de todos nem simplesmente o governo de muitos. É o governo do povo, que normalmente representa uma multidão de pobres. O fato de os mais pobres serem a maioria ou serem muitos é apenas uma característica incidental. Além disso, os pobres expulsam os ricos do poder.

A palavra grega δῆμος (lê-se “demos”) pode significar tanto a ideia de lugar ou terra habitada ou pertencente a um povo quanto a ideia de povo, para designar o povo de um país ou o povo no sentido de súdito como oposição ao rei e aos chefes[15]. Platão chega a admitir que a democracia poderia ser a “mais bela das constituições” (p. 210, Livro VIII, XI) e que nela haveria toda a liberdade (p. 210, Livro VIII, xi). Isso porque ela seria uma espécie de mistura de todas as outras formas (p. 210, Livro VIII, xi).

Mas então Platão inicia o tratamento da tirania e a considera, surpreendentemente, como a mais bela forma de governo (p. 214, Livro VIII, XIV). Para Platão, assim como na natureza os excessos costumam ser sucedidos por uma mudança radical no sentido oposto, o excesso de liberdade na democracia acaba seguido pela sujeição ou escravatura em excesso (p. 216, Livro VIII, XV).

A tirania surge no movimento de três classes que interagem na democracia. Uma delas é a daqueles violentos, que nas multidões gritam a agitam (p. 216-217, Livro VIII, XV). A segunda classe é formada pelos abastados que, no exercício da liberdade, por serem mais ordenados, conseguem formar fortuna, ou seja, os mais ricos (p. 217, Livro VIII, XV). A terceira classe é o povo, os trabalhadores que se abstém dos negócios públicos e que são desprovidos de posses, sendo a mais poderosa e numerosa classe (p.217, Livro VIII, XVI).

Os chefes, então, tomam dos ricos e dão aos pobres (p. 217, Livro VIII, XVI). Os ricos, ao se defenderem são acusados de agir contra os pobres (p. 217, Livro VIII, XVI). Então assume um protetor do povo para enfrentar os ricos, que, por conta disso, tornam-se efetivamente oligarcas. O protetor, contudo, aproveitando-se da sujeição do povo ao seu comando, passa a abusar de sua posição de supremacia, e se torna um tirano (p. 217-219, Livro VIII, XVI).

Fazendo a analogia do Estado com o homem, Platão sustenta que o homem mais feliz é o rei e o mais infeliz é o tirano (p. 238, Livro IX, I). Essa passagem, então, esclarece a passagem anterior em que diz que a tirania seria a mais bela forma de governo, se se considerar que, com tirania, Platão estivesse se referindo à monarquia, mas dotada de um bom governante.

Essas são as principais ideias de Platão, ou melhor dizendo, aquilo que chegou até os brasileiros após cópias e traduções ao longo dos anos.

Se efetivamente há uma realidade ideal e se os fenômenos percebidos pelos sentidos são meras cópias imperfeitas da realidade ideal, pode-se dizer, por analogia, que as ideias de Platão até aqui expostas podem também ser meras cópias imperfeitas. Porém, se a verdade é uma só e alcançável por qualquer homem por meio da razão, nada obsta que a análise busque uma interpretação ideal da exposição acima.

Viu-se que Platão estuda o Estado fazendo uma analogia com o ser humano. Segundo Paul Shorey, como o ideal ou divino é inalcançável, os humanos conhecem apenas os Estados imperfeitos, que são mutáveis e suscetíveis a se degenerar[16]. Mas essa visão, contudo, não é compatível com a concepção de Platão quanto às formas de governo. Com efeito, a forma ideal, que seria a aristocracia monárquica, isto é, o governo feito por uma única pessoa, mas que seria a melhor, se fosse de fato eterna e imutável, nunca poderia se degenerar. Dessa forma, ou a aristocracia monárquica seria apenas a melhor forma entre as cinco e, por isso, passível de degeneração; ou seria uma forma perfeita e, por isso, impossível de se degenerar.

Para dar uma coerência à obra de Platão é necessário considerar que a aristocracia monárquica seria a melhor forma, mas não uma forma perfeita. Além disso, como ele associa o Estado ao homem e o homem à natureza, utilizando a ideia dos ciclos, pode-se admitir que, partindo-se da melhor forma de governo, ela vai se deteriorando até chegar na tirania. Após, o ciclo deveria ser reiniciado. A dúvida que pode surgir é se depois da tirania viria a aristocracia monárquica ou a democracia. A premissa de Platão de que após um extremo a forma se alterna para o extremo oposto não soluciona a questão. É que, do ponto de vista da liberdade, e tirania seria o extremo da ausência de liberdade e a democracia o extremo de liberdade. Mas, do ponto de vista da perfeição da forma de governo, a tirania seria o extremo da degeneração e a monarquia aristocrática seria o extremo da perfeição.

O mais provável é que, após uma tirania a forma de governo se alterne novamente para uma democracia, passe pela oligarquia, pela timocracia e chegue somente então à aristocracia monárquica. Isso porque a sujeição a um tirano pode levar à desconfiança de que um novo rei continuaria a trazer desgraça ao povo e o medo impediria a permissão de se substituir simplesmente um tirano por um rei, embora isso não seja impossível.

O texto de Platão mostra que, na sua concepção, a democracia não seria a melhor forma de governo. A melhor forma de governo, como se viu, seria a aristocracia e, ao que tudo indica, dentro dela seria preferível haver um só chefe a muitos. Como Platão associa o Estado ao indivíduo, essa concepção que prefere um único governante se justifica, uma vez que no corpo humano há um único cérebro.

Esse único governante, contudo, ainda que chamado de rei, não assumiria de forma vitalícia nem seria sucedido necessariamente por um parente seu, como ocorre nas monarquias da atualidade. Não seria vitalício porque, a partir do momento em que surgisse um indivíduo melhor do que ele na sociedade, este novo indivíduo é que deveria governar. E após a morte do governante novamente seria escolhido o melhor indivíduo para sucessão.

Por isso, o nome da obra na língua portuguesa, república, hoje só se justificaria para indicar esse fato, a temporariedade do mandato do governante, que a distinguiria das monarquias em que o governo é vitalício e passa de pai para filho.

 Tais conclusões, embora não presentes na obra, são decorrentes premissas nela estabelecidas. E não há problema em tentar construir uma interpretação que se mostre mais adequada, uma vez que, de acordo com Aristóteles, “sejamos amigos de Sócrates e Platão, mais ainda, porém, da verdade.”[17]



[1] PLATÃO. A república. Trad. Carlos Alberto Nunes. 3.ed. Belém: EDUFPA, 2000. PLATÃO. República. Tradução Ingrid Cruz de Souza Neves. Brasília: Kíron, 2012. PLATO. The republic: with an translation by Paul Shorey. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1937.  PLATO. The republic. 2.ed. Translated with notes and interpretative essay by Allan Bloom. Basic Books, 1991.  PLATO. Complete Works. Edited by John M. Cooper. Associate Editor D. S. Hutchinson. Indiana: Hackett Publishing Company, 1997.

[2] BAILLY, Anatole. Le grand Bailly: Dictionnaire Grec Français. Paris: Hachette, 2000, p. 510.

[3] BAILLY, Anatole. Le grand Bailly: Dictionnaire Grec Français. Paris: Hachette, 2000, p. 1587.

[4] BAILLY, Anatole. Le grand Bailly: Dictionnaire Grec Français. Paris: Hachette, 2000, p. 1586-1587.

[5] BAILLY, Anatole. Le grand Bailly: Dictionnaire Grec Français. Paris: Hachette, 2000, p. 1598-1599.

[6] MATTEUCCI, Nicola. República. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. trad. Carmen C, Varriale et alli. Brasília: Universidade de Brasília, 1998, p.1107-1109.

[7]  BAILLY, Anatole. Le grand Bailly: Dictionnaire Grec Français. Paris: Hachette, 2000, p. 268.

[8] BAILLY, Anatole. Le grand Bailly: Dictionnaire Grec Français. Paris: Hachette, 2000, p. 1130.

[9] BAILLY, Anatole. Le grand Bailly: Dictionnaire Grec Français. Paris: Hachette, 2000, p. 1131.

[10] BAILLY, Anatole. Le grand Bailly: Dictionnaire Grec Français. Paris: Hachette, 2000, p. 1933-1934.

[11] BAILLY, Anatole. Le grand Bailly: Dictionnaire Grec Français. Paris: Hachette, 2000, p. 282.

[12] BAILLY, Anatole. Le grand Bailly: Dictionnaire Grec Français. Paris: Hachette, 2000, p. 283.

[13] BAILLY, Anatole. Le grand Bailly: Dictionnaire Grec Français. Paris: Hachette, 2000, p. 283.

[14] BAILLY, Anatole. Le grand Bailly: Dictionnaire Grec Français. Paris: Hachette, 2000, p. 1366-1367.

[15] BAILLY, Anatole. Le grand Bailly: Dictionnaire Grec Français. Paris: Hachette, 2000, p. 457-458.

[16] PLATO. The republic: with an translation by Paul Shorey. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1937, p. 42-43.

[17] LINS, Ivan. Introdução. In: ARISTÓTELES. A política. Trad. Nestor Silveira Chaves. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 18.

Sobre o autor
Leandro Sarai

Doutor e Mestre em Direito Político e Econômico e Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado Público.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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