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Boa-fé entre o princípio jurídico e o dever geral de conduta obrigacional

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16/10/2024 às 19:40

Resumo:


  • A boa-fé é um princípio jurídico fundamental no direito civil brasileiro, aplicando-se tanto na esfera subjetiva quanto na objetiva.

  • Esse princípio não se confunde com cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados, sendo considerado um dever geral de conduta que permeia diversas áreas do direito civil.

  • A boa-fé não se restringe apenas à execução dos negócios jurídicos, abrangendo também os comportamentos antes e após a celebração dos contratos, sendo essencial para a proteção dos interesses das partes envolvidas.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

5. Deveres gerais de conduta de boa-fé antes e após a execução dos negócios jurídicos

A melhor doutrina tem ressaltado que a boa-fé não apenas é aplicável à conduta dos contratantes na execução de suas obrigações mas aos comportamentos que devem ser adotados antes da celebração (in contrahendo) ou após a extinção do contrato (post pactum finitum). Assim, para fins do princípio da boa-fé objetiva são alcançados os comportamentos do contratante antes, durante e após o contrato. O Código de Defesa do Consumidor avançou mais decisivamente nessa direção, ao incluir na oferta toda informação ou publicidade suficientemente precisa (art. 30), ao impor o dever ao fornecedor de assegurar ao consumidor cognoscibilidade e compreensibilidade prévias do conteúdo do contrato (art. 46), ao tornar vinculantes os escritos particulares, recibos e pré-contratos (art. 48) e ao exigir a continuidade da oferta de componentes e peças de reposição, após o contrato de aquisição do produto (art. 32).

O Código Civil não foi tão claro em relação aos contratos comuns, mas, quando refere amplamente (art. 422) à conclusão e à execução do contrato, admite a interpretação em conformidade com o atual estado da doutrina jurídica acerca do alcance do princípio da boa-fé aos comportamentos in contrahendo e post pactum finitum. A referência à conclusão deve ser entendida como abrangente da celebração e dos comportamentos que a antecedem, porque aquela decorre destes. A referência à execução deve ser também entendida como inclusiva de todos os comportamentos resultantes da natureza do contrato. Em suma, em se tratando de boa-fé, os comportamentos formadores ou resultantes de outros não podem ser cindidos.

Independentemente do alcance da norma codificada, o princípio geral da boa-fé obriga, aos que intervierem em negociações preliminares ou tratativas, o comportamento com diligência e consideração aos interesses da outra parte, respondendo pelo prejuízo que lhes causar. A relação jurídica pré-contratual submete-se à incidência dos deveres gerais de conduta. Construiu-se, no século XIX, remontando-se ao jurista alemão Ihering, a teoria da culpa in contrahendo, para imputar a quem deu causa à frustração contratual o dever de reparar, fundando-se na relação de confiança criada pela existência das negociações preliminares; nessa época de predomínio da culpa, procurou-se arrimo na responsabilidade civil extranegocial culposa, gerando pretensão de indenização. Larenz entende que não apenas procede a indenização do dano em favor da parte que tenha confiado na validade do contrato, mas todo dano que seja consequência da infração de um dever de diligência contratual, segundo o estado em que se acharia a outra parte se tivesse sido cumprido o dever de proteção, informação e diligência. Ou seja, na prática, a infração de dever de conduta pré-contratual deve ser regida pelos mesmos princípios da responsabilidade por infração dos deveres de conduta contratual 10.

Para António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, o recurso à boa-fé para a solução dos casos de responsabilidade pós-contratual, que denomina “pós-eficácia das obrigações”, deve estar fundado em ao menos um dos “elementos mediadores”, que seriam os princípios da confiança, da lealdade e da proteção 11.

A consolidação dessa orientação resulta em verdadeira erosão do princípio do consenso, radicado na autonomia individual, em virtude do surgimento de deveres assemelhados aos contratuais, sem haver ainda contrato. Da mesma forma que este, se o devedor de deveres pré-contratuais não os cumpre, pode o credor exigir indenização por danos em lugar da prestação. A doutrina alemã os enquadra, atualmente, nos deveres de proteção, dirigidos à prevenção e à proteção dos bens jurídicos do credor.


6. Aplicações específicas da boa-fé

6.1. Dever de não agir contra o ato próprio

Entre tantas expressões resultantes do princípio da boa-fé pode ser destacado o dever de não agir contra o ato próprio. Significa dizer que a ninguém é dado valer-se de determinado ato, quando lhe for conveniente e vantajoso, e depois voltar-se contra ele quando não mais lhe interessar. Esse comportamento contraditório denota intensa má-fé, ainda que revestido de aparência de legalidade ou de exercício regular de direito. Nas obrigações revela-se, em muitos casos, como aproveitamento da própria torpeza, mas a incidência do dever não exige o requisito de intencionalidade.

Essa teoria radica no desenvolvimento do antigo aforismo venire contra factum proprium nulli conceditur, significando que a ninguém é licito fazer valer um direito em contradição com sua anterior conduta, quando esta conduta interpretada objetivamente segunda a lei, segundo os bons costumes e a boa-fé, justifica a conclusão que não se fará valer posteriormente o direito que com estes se choque. No direito anglo-americano é longa a tradição do instituto do estoppel, em razão do qual “uma parte é impedida em virtude de seus próprios atos de exigir um direito em detrimento da outra parte que confiou em tal conduta e se comportou em conformidade com ela” 12. A teoria encontra-se consolidada na doutrina e na jurisprudência. Puig Brutau sustenta que quem deu lugar a uma situação enganosa, ainda que sem intenção, não pode pretender que seu direito prevaleça sobre o de quem confiou na aparência originada naquela situação; esta aparência, afirma-se, deu lugar à crença da “verdade” de uma situação jurídica determinada 13.

O conteúdo desse dever é também versado doutrinariamente sob a denominação de teoria dos atos próprios, que sanciona como inadmissível toda pretensão lícita, mas objetivamente contraditória com respeito ao próprio comportamento anterior efetuado pelo mesmo sujeito. O fundamento radica na confiança despertada no outro sujeito de boa-fé, em razão da primeira conduta realizada. A boa-fé restaria vulnerada se fosse admissível aceitar e dar curso à pretensão posterior e contraditória. São requisitos: a) existência de uma conduta anterior, relevante e eficaz; b) exercício de um direito subjetivo pelo mesmo sujeito que criou a situação litigiosa devida à contradição existente entre as duas condutas; c) a identidade de sujeitos que se vinculam em ambas condutas 14. Já Anderson Schreiber, sob a ótica do direito brasileiro, considera como pressupostos de incidência da vedação de venire contra factum proprium: a) um factum proprium, isto é, uma conduta inicial; b) a legítima confiança de outrem na conservação do sentido objetivo desta conduta; c) um comportamento contraditório com este sentido objetivo; d) um dano ou, no mínimo, um potencial de dano a partir da contradição 15.

O Código Civil de 2002, nos preceitos destinados ao lugar do adimplemento, introduziu norma (art. 330) cuja natureza corresponde ao dever de não contradizer o ato próprio: “O pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato”. Em outras palavras, o credor não pode fazer valer o estipulado no contrato contrariando a conduta que adotou, ao admitir que o adimplemento se fizesse em outro lugar, pois gerou a confiança do devedor que assim se manteria. Outra norma que realiza esse dever é o parágrafo único do art. 619, relativamente ao contrato de empreitada, mediante o qual o dono da obra é obrigado a pagar ao empreiteiro os aumentos e acréscimos, segundo o que for arbitrado, se, sempre presente à obra, por continuadas visitas, não podia ignorar o que se estava passando, e nunca protestou; não pode prevalecer o contrato contrariando essa conduta assim consolidada.

A aplicação da teoria é ampla em situações variadas; no direito das obrigações podem ser referidas: a) quando uma parte, intencionalmente ou não, faz crer à outra que tal forma não é necessária, incorrendo em contradição com seus próprios atos quando, mais tarde, pretende amparar-se nesse defeito formal para não cumprir sua obrigação; b) quando, apesar da nulidade, uma parte considera válido o ato, dele se beneficiando, invocando a nulidade posteriormente por deixar de interessá-la; c) quando um fornecedor oferece bonificações nas prestações ajustadas, cancelando-as sem aviso prévio; d) quando uma parte aceita receber reiteradamente as prestações com alguns dias após o vencimento, sem cobrança de acréscimos convencionados para mora, passando a exigi-los posteriormente.

6.2. Boa fé e dever de informar

Uma das mais interessantes derivações da boa-fé é o dever de informar. Ainda que não seja absorvido inteiramente pelo dever de boa-fé em sentido estrito, o dever de informar resulta do mesmo princípio jurídico da boa-fé.

O dever de informar adquiriu autonomia própria, como dever geral de conduta, ante a tendência crescente do Estado Social de proteção ou tutela jurídica dos figurantes vulneráveis das relações jurídicas obrigacionais. Indo além da equivalência jurídica meramente formal, o direito presume a vulnerabilidade jurídica daqueles que a experiência indicou como mais frequentemente prejudicados pelo poder negocial dominante, tais como o trabalhador, o inquilino, o consumidor, o aderente. Nessas situações de vulnerabilidade, torna-se mais exigente o dever de informar daquele que se encontra em situação favorável no domínio das informações, de modo a compensar a deficiência do outro. O dever de informar é exigível antes, durante e após a relação jurídica obrigacional.

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O ramo do direito que mais avançou nessa direção foi o direito do consumidor, cujo desenvolvimento aproveita a todo o direito privado. A concepção, a fabricação, a composição, o uso e a utilização dos produtos e serviços atingiu, em nossa era, elevados níveis de complexidade, especialidade e desenvolvimento científico e tecnológico cujo conhecimento é difícil ou impossível de domínio pelo consumidor típico, ao qual eles se destinam. A massificação do consumo, por outro lado, agravou o distanciamento da informação suficiente. Nesse quadro, é compreensível que o direito considere o dever de informar como um dos esteios eficazes do sistema de proteção.

O dever de informar impõe-se a todos os que participam do lançamento do produto ou serviço, desde sua origem, inclusive prepostos e representantes autônomos. É dever solidário, gerador de obrigação solidária. Essa solidariedade passiva é necessária, como instrumento indispensável de eficaz proteção ao consumidor, para que ele não tenha de suportar o ônus desarrazoado de identificar o responsável pela informação, dentre todos os integrantes da respectiva cadeia econômica (produtor, fabricante, importador, distribuidor, comerciante, prestador do serviço). Cumpre-se o dever de informar quando a informação recebida pelo consumidor típico preencha os requisitos de adequação, suficiência e veracidade. Os requisitos devem estar interligados. A ausência de qualquer deles importa descumprimento do dever de informar.

A adequação diz com os meios de informação utilizados e com o respectivo conteúdo. Os meios devem ser compatíveis com o produto ou o serviço determinados e o consumidor destinatário típico. Os signos empregados (imagens, palavras, sons) devem ser claros e precisos, estimulantes do conhecimento e da compreensão. No caso de produtos, a informação deve referir à composição, aos riscos, à periculosidade. Maior cautela deve haver quando o dever de informar veicula-se por meio da informação publicitária, que é de natureza diversa. Tome-se o exemplo do medicamento. A informação da composição e dos riscos pode estar neutralizada pela informação publicitária contida na embalagem ou na bula impressa interna. Nessa hipótese, a informação não será adequada, cabendo ao fornecedor provar o contrário. A legislação de proteção do consumidor destina à linguagem empregada na informação especial cuidado. Em primeiro lugar, o idioma será o vernáculo. Em segundo lugar, os termos empregados hão de ser compatíveis com o consumidor típico destinatário. Em terceiro lugar, toda a informação necessária que envolva riscos ou ônus que devem ser suportados pelo consumidor será destacada, de modo a que “saltem aos olhos”. Alguns termos em língua estrangeira podem ser empregados, sem risco de infração ao dever de informar, quando já tenham ingressado no uso corrente, desde que o consumidor típico com eles esteja familiarizado.

A suficiência relaciona-se com a completude e integralidade da informação. Antes do advento do direito do consumidor era comum a omissão, a precariedade, a lacuna, quase sempre intencionais, relativamente a dados ou referências não vantajosas ao produto ou serviço. A ausência de informação sobre prazo de validade de um produto alimentício, por exemplo, gera confiança no consumidor de que possa ainda ser consumido, enquanto que a informação suficiente permite-lhe escolher aquele que seja de fabricação mais recente. Situação amplamente divulgada pela imprensa mundial foi a das indústrias de tabaco que sonegaram informação, de seu domínio, acerca dos danos à saúde dos consumidores. Insuficiente é, também, a informação que reduz, de modo proposital, as consequências danosas pelo uso do produto, em virtude do estágio ainda incerto do conhecimento científico ou tecnológico.

A veracidade é o terceiro dos mais importantes requisitos do dever de informar. Considera-se veraz a informação correspondente às reais características do produto e do serviço, além dos dados corretos acerca de composição, conteúdo, preço, prazos, garantias e riscos. A publicidade não verdadeira, ou parcialmente verdadeira, é considerada enganosa e o direito do consumidor destina especial atenção a suas consequências.

Em determinadas obrigações, o dever de informar é particularizado para um dos figurantes ou participantes. No Código Civil, por exemplo, o comprador, se o contrato contiver cláusula de preferência para o vendedor, tem o dever de a este informar do preço e das vantagens oferecidos por terceiro para adquirir a coisa, sob pena de responder por perdas e danos (art. 518); o locatário tem o dever de informar ao locador as turbações de terceiros, que se pretendam fundadas em direito (art. 569); o empreiteiro que se responsabilizar apenas pela mão-de-obra tem o dever de informar o dono da obra sobre a má qualidade ou quantidade do material, sob pena de perder a remuneração se a coisa perecer antes de entregue (art. 613); o mandante tem o dever de informar terceiros da revogação do mandato, sob pena de esta não produzir efeitos em relação àqueles (art. 686); o segurado tem o dever de informar à seguradora, logo que saiba, todo incidente suscetível de agravar consideravelmente o risco coberto, sob pena de perder o direito à garantia, se provar que silenciou de má-fé (art. 769); o promitente na promessa de recompensa tem o dever de informar a revogação desta, utilizando a mesma publicidade, sob pena de cumprir o prometido (art. 856); o gestor de negócio tem o dever de informar o dono do negócio a gestão que assumiu, tanto que se possa fazê-lo, sob pena de responder até mesmo pelos casos fortuitos (art. 864). São todos deveres anexos à prestação, não se enquadrando no conceito de deveres gerais de conduta.


Notas

  1. ...

  2. LÔBO, Paulo. Direito civil: parte geral. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 95.

  3. CÍCERO. Dos deveres. Trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 37. e 133.

  4. TAFARO, Sebastiano. Riflessioni su bonna fede e contratti. Revista Brasileira de Direito Comparado. Rio de Janeiro: IDCLB, n. 26, p. 53-95, 2004, p 53.

  5. ESSER, Josef. Principio y norma en la elaboración jurisprudencial del derecho privado. Trad. Eduardo Valentí Fiol. Barcelona: Bosch, 1961, p. 65.

  6. MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como um “sistema em construção”. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre: v. 15, 1998.

  7. SCHAPP, Jan. Metodologia do direito civil. Trad. Maria da Glória Lacerda Rurack e Klaus-Peter Rurack. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, 2004, p. 129.

  8. BETTI, Emílio. Interpretación de la ley y de los atos jurídicos. Madrid: Edersa, 1971, p. 367.

  9. LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones. Trad. Jaime Santos Briz. Madrid: ERDP,1958, p. 22.

  10. LARENZ, 1958, cit, p. 110.

  11. CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Estudos de direito civil. Coimbra: Almedina, 1991. v. 1, p. 168.

  12. BLACK, Henry Campbell. Black’s law dictionary. St. Paul: West Publishing, 1990, verbete estoppel.

  13. PUIG BRUTAU, José. Estudios de derecho comparado: la doctrina de los actos proprios. Barcelona: Ediciones Ariel, 1951, p. 102.

  14. BORDA, Alejandro. La teoria de los actos proprios. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1993, p. 12.

  15. SCHREIBER, Andrson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 271.

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Emérito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Foi Conselheiro do CNJ nas duas primeiras composições (2005/2009).︎ Membro fundador e dirigente nacional do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎ Professor de pós-graduação nas Universidades Federais de Alagoas, Pernambuco e Brasília. Líder do grupo de pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (UFPE/CNPq).︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Boa-fé entre o princípio jurídico e o dever geral de conduta obrigacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7777, 16 out. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105902. Acesso em: 21 dez. 2024.

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