Esta carta se destina a fazer o seguinte alerta aos empresários do nosso país: o artigo 28, §5º, do CDC, pode arruinar com a sua vida patrimonial.
Como sabemos, quando uma pessoa decide empreender, a primeira atitude a ser adotada é constituir uma empresa e escolher o tipo, que geralmente acaba sendo o de responsabilidade limitada (LTDA).
Assim, o empresário indica qual será o valor do capital social da empresa e integraliza o correspondente valor para que sua responsabilidade fique limitada àquele limite das suas cotas, correto? Depende!
O que a grande maioria dos empresários desconhece é que se algo der errado com a sua empresa e ela ficar insolvente para com os seus consumidores, ele muito provavelmente será acionado judicialmente a responder diretamente pela aludida dívida com o seu patrimônio pessoal, mesmo que não tenha praticado qualquer ato ilícito ou má administração que contribuísse para a insolvência da empresa.
Isto ocorre porque doutrina e jurisprudência do nosso país construíram a malfadada teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, conferindo uma interpretação ampliativa ao artigo 28, §5º, DO CDC, que estabelece o seguinte: “Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.”.
Portanto, por esta teoria, basta a empresa ficar insolvente para que os sócios sejam sumariamente obrigados a pagar a integralidade da dívida com seus patrimônios pessoais.
Evidente que o empresário não pode se esconder atrás da personalidade jurídica de sua empresa quando praticar atos de abuso da personalidade jurídica que venham a ocasionar prejuízos à terceiros, mas é exatamente por este motivo que surgiu o artigo 50 do Código Civil Brasileiro, prevendo que “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.”.
Destarte, o legislador andou bem ao prever no artigo 50 do CCB que se o mal empresário praticar atos de abuso da personalidade jurídica será obrigado a pagar a dívida da empresa através de seus bens pessoais. Tal normativo, coerentemente, traz proteção tanto aos credores, quanto aos bons empresários.
Mas na prática, doutrina e jurisprudência lamentavelmente não atendem à pretensão legislativa do artigo 50 do Código Civil, que deveria ser aplicado para toda e qualquer relação jurídica das empresas, e acabam colocando-o de escanteio quando se tratar de uma relação consumerista.
Ora! Ao ser aplicada tal teoria menor o empresário não terá nem ao menos o direito de provar que é honesto e que não promoveu qualquer ato de abuso da personalidade jurídica que pudesse ter originado aquela dívida da empresa. Terá seus bens sumariamente bloqueados, penhorados e pronto!
Para piorar um pouco mais a situação dos empresários, a Justiça do Trabalho também vem adotando esta teoria menor do CDC para as dívidas trabalhistas das empresas.
Tal teoria também joga no ralo o artigo 49-A do Código Civil, que surgiu exatamente para trazer alguma segurança ao empresário honesto e incentivá-lo a empreender. Referido artigo, assim prevê:
“Art. 49-A. A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.”
Neste momento vocês devem estar achando que não é possível os artigos 49-A e 50 do Código Civil se tornarem letra morta quando se tratar de uma relação de consumo, não é verdade?! Mas não, eu não estou equivocado! Como até agora as entidades empresariais e os políticos do nosso país não adotaram uma medida coesa para eliminar do mundo jurídico a tal teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica (baseada no artigo 28, §5º, do CDC), o próprio STJ já pacificou o seu entendimento no sentido de ser aplicada a referida teoria menor nos casos de relação de consumo.
Para não alongar demasiadamente esta carta, deixarei de falar aqui sobre a inconstitucionalidade desta teoria menor do CDC, pois tal abordagem já foi objeto de estudo em artigo anteriormente publicado1.
Sobre o enorme risco que os empresários estão correndo com a existência desta teoria menor do CDC, cabe ser destacado que a esmagadora maioria das relações de uma empresa é de consumo. Ou seja: com a permanência da teoria menor do CDC no mundo jurídico, o patrimônio pessoal dos sócios sempre estará em risco direto!
Alguns devem estar afirmando o seguinte neste momento: mas se o empresário gerir corretamente sua empresa nunca ficará insolvente e não correrá este risco de perder o seu patrimônio. Porém, todo e qualquer empresário está sujeito a passar por um caso fortuito ou de força maior, que de uma hora para a outra pode levar sua empresa às ruínas!
Tomemos como exemplo a própria pandemia da Covid-19 que praticamente paralisou as atividades econômicas e empresariais de todo o mundo, levando milhares de empresas à insolvência e falência. Aqui no Brasil, milhares de empresas que jamais imaginavam passar por uma crise financeira foram levadas à falência e muitas ainda podem vir a falir nos próximos anos em decorrência deste inesperado baque sofrido.
Ora! Um estabelecimento comercial pode vir a pegar fogo, ser inundado por uma forte chuva, sofrer um embargo administrativo indevido, sofrer um grande furto ou ser alvo de diversos outros fatos que possam levar a empresa à insolvência ou até mesmo à falência de um dia para o outro. Se isso ocorrer, é justo o empresário ter que pagar tais dívidas da empresa com o seu patrimônio pessoal, quando, na realidade, ele foi tão vítima da intempérie quanto os credores?!
Recentemente a imprensa nacional noticiou a “quebra” das Lojas Americanas, que infelizmente gerou a falência de diversos fornecedores da noite para o dia. Sabem o que ocorreu com a maioria destes empresários honestos que eram fornecedores das Americanas a décadas? Perderam todo o seu patrimônio pessoal em decorrência da citada teoria menor do CDC. Para melhor ilustrar a gravidade desta situação, transcrevo adiante parte de uma reportagem sobre a situação de um destes fornecedores2:
“'Americanas me levou à falência e agora temo nunca reaver dinheiro'
Transportadora Forte Minas tinha 85% de sua receita então dependente do grupo Americanas e afirma que R$ 7 milhões em serviços prestados não foram pagos pela empresa
Por Thais Carrança - @tcarran da BBC News Brasil em São Paulo
24/01/2023 07h32 Atualizado há 7 meses
A notícia da entrada em recuperação judicial da Americanas na quinta-feira (19/1) foi recebida com pesar num sítio em Bonfim, cidade mineira a cerca de duas horas de Belo Horizonte.
Ali mora Moacir de Almeida Reis, de 62 anos, casado e pai de três filhos. Moacir mudou para o sítio por não conseguir mais se manter em Belo Horizonte.
Ele atualmente dirige um carro emprestado do filho, vende queijos e leite que compra dos sítios vizinhos e tenta administrar com a esposa uma pequena lanchonete na capital mineira. No local, não há funcionários, pois não há dinheiro para contratar ninguém. Para fechar as contas do mês, Moacir e sua esposa contam com a ajuda dos filhos.
Mas nem sempre a vida de Moacir foi assim. Até 2021, ele era o dono, com outros dois sócios, da Forte Minas Logística e Transporte, empresa responsável pelas entregas da Americanas no interior de Minas Gerais.
Diversas vezes no topo do ranking de excelência da Direct — braço logístico da Americanas, adquirida em 2014 da Tegma Gestão e Logística —, a Forte Minas chegou a ter 29 filiais em Minas Gerais e expandiu sua atuação também para o Espírito Santo.
No auge, a empresa faturava cerca de R$ 50 milhões por ano, segundo os sócios, e empregava diretamente 350 funcionários em Minas e outros 200 no Estado vizinho, contando ainda com uma rede de 700 a 800 "agregados", como eram chamados na companhia os trabalhadores terceirizados proprietários dos veículos e prestadores do serviço de entrega.
Moacir e seus sócios João Wanderlay de Oliveira Júnior e Carlos Henrique de Souza viram tudo isso ruir de um dia para o outro, após, de acordo com eles, a Americanas romper repentinamente o contrato com a Forte Minas. Segundo os sócios, o rompimento foi feito de forma unilateral e sem aviso prévio pela Americanas, embora o contrato entre as empresas — ao qual a BBC News Brasil teve acesso — estabelecesse um prazo de 30 dias de aviso.
...
Sem dinheiro sequer para pagar os direitos trabalhistas dos ex-funcionários ou processar a Americanas pelos valores aos quais avaliam ter direito, os sócios se veem atualmente afundados em cobranças e processos judiciais. Perderam o sustento de suas famílias, bens pessoais e a saúde — Moacir sofreu um infarto, Carlos enfrenta uma depressão severa.”.
E a separação patrimonial “garantida” pelo artigo 49-A, parágrafo único, do Código Civil Brasileiro, como fica? Frise-se que esta norma prevê expressamente que ela “é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.”.
Da forma como ocorre hoje, os aludidos artigos 49-A e 50 do Código Civil se tornaram letra morta diante de uma relação consumerista e até mesmo trabalhista, não havendo qualquer proteção aos empresários honestos deste país, que dedicam suas vidas para empreender, gerarem empregos e desenvolvimento ao nosso Brasil, motivo pelo qual, tais empresários precisam ter ciência sobre o enorme risco que estão correndo.
Por fim, cabe ser destacado que o Poder Legislativo está atento a esta lamentável questão aqui levantada, tanto que no ano passado aprovou o Projeto de Lei nº 3401/2008, que estancava de uma vez por todas a referida teoria menor do CDC.
No final da gestão do último governo, este importante projeto de lei acabou sendo vetado juntamente com outros. Todavia, no dia 26/04/2023, houve um acordo entre o Congresso e o atual governo para manter os Vetos Presidenciais existentes e, dentre eles, infelizmente estava este veto nº 56/2022 sobre o PLC 69/2014 (que na Câmara era o PL 3401/2008)3.
Assim, lamentavelmente, o mesmo Congresso Nacional que havia aprovado este projeto de lei a poucos dias, contraditoriamente manteve o Veto Presidencial, perdendo a oportunidade de fazer justiça para com os milhares de empresários honestos do nosso país.
No entanto, ainda estão tramitando no Congresso Nacional outros projetos legislativos prevendo a extinção da aludida teoria menor do CDC, tais como: o PLP – Projeto de Lei Complementar nº 210/2019, que foi apensado ao PLP nº 88/2011; PL 8142/2014; PL 5140/2005 e PL 3243/2019, sendo este último de autoria do Deputado Federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança, cuja justificação do projeto bem sintetiza o que foi anunciado na presente carta:
“...
O propósito de limitar a execução de créditos detidos contra sociedades ao montante que os sócios prometem destiná-las no momento de sua constituição é claro e socialmente desejável: incentivar pessoas a empreender e, com isso, aumentar produção, renda, empregos e arrecadação tributária, entre outros benefícios. Potenciais empreendedores esperam saber, com segurança, se serão responsabilizados pessoalmente caso assumam posições como acionistas ou cotistas de sociedades empresárias.
...
No Brasil, contudo, considerações de ordem fiscal e nosso paternalismo crônico acabaram por orientar a edição de leis que autorizam a desconsideração da personalidade jurídica sempre que empresas não sejam capazes de quitar suas obrigações, tenham elas sido assumidas perante a Fazenda Pública, consumidores ou empregados.
A pretexto de proteger tais grupos, a relativização da responsabilidade empresarial limitada desestimula o empreendedorismo e gera efeitos econômicos maléficos, que, no longo prazo, prejudicam a todos, inclusive os destinatários daquelas regras supostamente protetivas. Menos atividade empresarial significa diminuição da arrecadação tributária, redução na oferta de postos de trabalho e oferta precária de bens e serviços.”
Espero que esta carta cumpra o seu objetivo de alertar os empresários sobre os riscos que estão correndo diariamente, para que tenham a oportunidade de buscarem politicamente a revogação do aludido artigo 28, §5º, do CDC.
Atenciosamente,
Rodrigo Lima Klem4
Campos dos Goytacazes, 26 de agosto de 2023.
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Inconstitucionalidade da desconsideração da personalidade jurídica com base no Código de Defesa do Consumidor. Uma análise crítica sob a ótica da Lei da Liberdade Econômica.
https://www.jusbrasil.com.br/artigos/inconstitucionalidade-da-desconsideracao-da-personalidade-juridica-com-base-no-codigo-de-defesa-do-consumidor-uma-analise-critica-sob-a-otica-da-lei-da-liberdade-economica/1775329872︎
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Rodrigo Lima Klem é advogado público, pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil; Direito Administrativo; Direito Tributário; Direito do Trabalho e Processo do Trabalho.︎