Área do Direito: Direito Penal.
Resumo: O presente artigo objetiva explanar as negativas consequências da implementação da Resolução 487/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O ato normativo, publicado em fevereiro de 2023, institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário e trata da “desinstitucionalização” de portadores de transtornos mentais em conflito com a lei. Na prática, a norma resultará na soltura em massa de custodiados em cumprimento de medidas de segurança nos Hospitais de Custódia e de Tratamento Psiquiátrico (HCTPs). Por meio de pareceres da comunidade médica e de outras argumentações contrárias à norma do CNJ, o artigo expõe a inviabilidade e os futuros efeitos deletérios da Resolução para a sociedade brasileira. Ademais, uma inédita pesquisa de opinião pública, cujos resultados evidenciam o distanciamento entre a população e a Resolução do CNJ. Dessa maneira, o texto elucida como o ato normativo vai de encontro ao direito constitucional à segurança. Por fim, propõe alternativas mais adequadas à atual conjuntura de segurança pública brasileira.
Palavras-chave: CNJ. Resolução 487/2023. Política Antimanicomial. Transtorno Mental. Medida de segurança.
Abstract: This article aims to explain the negative consequences of implementing Resolution 487/2023 of the National Council of Justice (CNJ). The normative act, published in February 2023, addresses the “Deinstitutionalization” and the Anti-Asylum Policy in the Judiciary. In practice, it will result in the mass release of individuals incarcerated in Forensic Psychiatric Hospitals (HCTPs). Based on opinions from the medical community and other arguments against CNJ’s norm, the article exposes the unfeasibility and the future deleterious effects of the Resolution for Brazil’s society. Moreover, an unprecedented survey, whose results highlight the distancing between the population and CNJ’s Resolution. Thus, the text elucidates how the normative act goes against the constitutional right to security. Finally, it proposes more adequate alternatives to the current situation of Brazil’s public security.
Keywords: CNJ. Resolution 487/2023. Anti-Asylum Policy. Mental Disorder. Security Measure.
Sumário: Introdução. 1. A Resolução 487/2023. 2. A resposta da comunidade médica à Resolução 487. 3. O posicionamento do Ministério Público Federal (MPF). 4. Os potenciais riscos e perigos da Resolução 487/2023. 5. O abismo entre a opinião pública e a Resolução 487/2023. Conclusão. Referências.
Introdução: Como base teórica primária, uma pesquisa de revisão bibliográfica. Outro método utilizado foi uma inédita pesquisa de opinião pública, cujo objetivo foi investigar a familiaridade da sociedade civil com relação à efetividade da “Política Antimanicomial no Poder Judiciário” e da Resolução 487/2023. A ferramenta utilizada na coleta dos dados foi o Google Forms. O questionário online foi realizado entre os dias 16 de julho de 2023 e 12 de agosto de 2023. Na primeira seção, houve a coleta do perfil demográfico e socioeconômico do(a)s participantes. Na última seção, questões de múltipla escolha sobre a temática. Participaram um total de 164 pessoas oriundas das cinco regiões do território nacional.
A RESOLUÇÃO 487/2023
A Resolução Nº 487/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou a interdição e o subsequente fechamento definitivo de todos os Hospitais de Custódia e de Tratamento Psiquiátrico (HCTP’s) do Brasil (CNJ, 2023). Convencionou-se chamar tais instituições de “manicômios judiciários”. São unidades de internação psiquiátrica que abrigam quase dois mil custodiados. Segundo dados divulgados pela Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN) do antigo Ministério da Justiça (atual Ministério da Justiça e Segurança Pública), de julho a dezembro de 2022, um total de 1869 custodiados cumpriam medidas de segurança de internação em 27 estabelecimentos estaduais (SENAPPEN, 2022). Parte desses custodiados cumpre medidas de segurança pelo cometimento de graves crimes. Em virtude de comprovados transtornos mentais, tais indivíduos em conflito com a lei são considerados “inimputáveis” pelo ordenamento jurídico brasileiro. Isto é, no momento em que comete o crime, o inimputável é incapaz de compreender a ilicitude do ato delituoso.
A despeito do salutar objetivo de “humanização” do sistema judiciário brasileiro, a Resolução 487/2023 representa uma série de riscos e perigos ao povo brasileiro. Publicado em 15 de fevereiro de 2023, o ato normativo não foi antecedido da indispensável realização de um amplo e profundo debate na sociedade civil. Isto posto, o artigo pretende discutir os efeitos deletérios da controversa norma do CNJ.
O documento do CNJ determina um prazo irrazoável para a desativação definitiva dos “manicômios judiciários”. Dentro de seis meses, contados a partir da entrada em vigor da normativa, a interdição parcial das unidades. Em doze meses, a extinção total das unidades e a consequente proibição de novas internações (CNJ, 2023, grifo nosso). O primeiro prazo expirou no mês de agosto do presente ano. No tocante ao segundo prazo, pretende-se alcançar o encerramento total das atividades dos manicômios judiciários no mês de maio de 2024. São prazos inconcebíveis para concluir a eficiente implementação do chamado “Plano de Desinstitucionalização”. Como prevê a norma do CNJ, os internos deverão ser realocados dos manicômios judiciários para residências terapêuticas e para lares de familiares. Ademais, os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) serão obrigados a absorver esses internos e tratá-los, priorizando o atendimento ambulatorial. Apesar das nobres intenções, o programa de alcance nacional se apresenta repleto de complexidades e eivado de metas inalcançáveis.
O ambicioso Plano de Desinstitucionalização demanda permanente cooperação interinstitucional entre o Poder Judiciário e as intricadas redes de saúde pública e de assistência social. O projeto auspicioso do CNJ tem como bases princípios de direitos humanos e de proteção à dignidade humana. Sem embargo, na forma em que foi elaborado e posteriormente publicado, o ato normativo é “utópico”. Isso porque superestima a capacidade de integração dos órgãos públicos brasileiros. Impõe uma avassaladora mudança de paradigma, ignorando a análise dos resultados práticos a longo prazo. Grosso modo, a medida acaba simbolizando uma espécie de “canetada”, ou seja, uma normativa simplesmente imposta à sociedade brasileira. Trata-se, portanto, de uma deliberação de cunho unilateral. Uma decisão temerária e arbitrária. Sem fornecer o devido tempo hábil para uma segura transição, a norma se propõe a solucionar uma problemática demasiado complexa para um país com necessidades e demandas tão heterogêneas.
No que diz respeito à busca do bem-estar da sociedade diante da violência e da criminalidade, a criminologia, como ciência, preconiza a multidisciplinaridade e a interdisciplinaridade. Nessa perspectiva, criminólogos defendem um perene esforço coletivo das mais vastas gamas de profissionais e estudiosos. Nesse sentido, o CNJ cometeu grave equívoco na elaboração da norma, uma vez que optou por não ampliar o debate. Por consequência, desprezou o posicionamento de entidades e de especialistas contrários à norma. Além de não apresentar estudos multidisciplinares sólidos corroborando a eficácia e os supostos benefícios da medida normativa, o CNJ não promoveu as devidas consultas à sociedade brasileira. Esta, fatalmente, será afetada pelas trágicas consequências da referida Resolução. Outrossim, o CNJ ignorou as preocupações e os reiterados alertas da comunidade médica e dos profissionais do ramo da segurança pública.
A eventual implementação das disposições da norma constitui flagrante ameaça à ordem pública. A Resolução 487/2023 tem potencial para desencadear uma futura desordem social. Tal desordem se irradiará pela sociedade brasileira, afetando profundamente uma população já castigada por uma acentuada e histórica carência de segurança pública. Além de colocar em risco a incolumidade da população em geral, ameaçará as integridades física e mental dos próprios sujeitos em conflito com a lei, os quais serão obrigados a abandonar as unidades psiquiátricas. Em unidades ambulatoriais, os egressos dos manicômios judiciários compartilharão espaço com inúmeros pacientes psiquiátricos que foram vítimas de crimes sexuais e de crimes contra a vida. Dessa maneira, a Resolução 487/2023 contribuirá para o processo de revitimização de pacientes que frequentam as unidades da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) na esperança de tratar traumas decorrentes da prática de crimes.
A RESPOSTA DA COMUNIDADE MÉDICA À RESOLUÇÃO 487/2023
Cabe ressaltar a uníssona rejeição da comunidade médica brasileira à Resolução 487/2023 do Conselho Nacional de Justiça. Diante dos iminentes riscos suscitados pela nova norma do CNJ, em nota de repúdio conjunta, manifestaram-se: o Conselho Federal de Medicina (CFM), a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), a Federação Nacional dos Médicos (Fenam), a Federação Médica Brasileira (FMB) e a Associação Médica Brasileira (AMB):
“Nós, médicos, não fomos consultados sobre essa medida que trará mudanças profundas para a saúde mental pública brasileira e também para a segurança pública, mas nos reunimos e viemos publicamente, mais uma vez, nos manifestar contra a Resolução nº487. São muitos alertas! O sistema público de saúde e o sistema prisional comum não estão preparados para receber todas essas pessoas, por isso haverá abandono do tratamento médico, aumento da violência, aumento de criminosos com doenças mentais em prisões comuns, recidiva criminal, dentre outros prejuízos sociais.” (CFM, 2023, grifo nosso).
Inúmeras outras entidades de profissionais especialistas em saúde mental e em segurança pública expuseram suas preocupações. Em nota pública, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) externou a sua “perplexidade” diante da decisão do CNJ:
“O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo vem a público externar a sua perplexidade e acentuada preocupação com as medidas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução 487 [...]
Mais grave, a Resolução n 487/2023 foi editada sem qualquer participação ou consulta às entidades médicas especializadas, notadamente as associações de psiquiatria e os Conselhos de Medicina.
Como sói ocorrer quando políticas públicas são veiculadas à mingua de discussões qualificadas entre os segmentos sociais afetados, as diretrizes açodadamente aprovadas pelo Conselho Nacional de Justiça padecem de vícios éticos, jurídicos e técnicos. (CREMESP, 2023, p. 1, grifo do autor).
A rigor, apresentou-se um programa com pendor humanístico, atento às condições de igualdade e à preservação dos direitos e das liberdades fundamentais, formalmente garantindo que políticas e serviços relacionados à saúde mental cumpram as normas internacionais de direitos humanos. Contudo, uma análise acendrada revelará que o regramento imposto se revela impraticável, alheio às realidades dos diversos Estados-membro da federação, indo de encontro com as normas deontológicas da medicina.” (CREMESP, 2023, p. 1, grifo nosso).
O presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antônio Geraldo da Silva, pontuou a inexistência de participação de médicos psiquiatras no desenvolvimento da normativa do CNJ. Assim sendo, Silva opinou: “O grupo de trabalho para a construção desta resolução é composto de 21 pessoas, mas não há nenhum médico. A Psiquiatria não está representada, nem eu e nenhum dos 14 mil psiquiatras existentes no Brasil fomos ouvidos. Como é possível construir política pública para uma área sem chamar os seus especialistas? Estamos falando em liberar para o convívio social pessoas que, nós, psiquiatras, decidimos que não têm condições para tal.” (SILVA, 2023, grifo nosso).
Por seu turno, o psiquiatra forense Guido Arturo Palomba argumenta que as disposições da medida do CNJ ultrapassaram os limites das competências e das responsabilidades da entidade. Segundo pontuou Palomba: “A resolução conflita com o Código Penal, Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal. Esses são hierarquicamente superiores à Resolução do CNJ. E mais, é impossível a sua aplicação prática, uma vez que os internados em manicômios judiciários estão lá não apenas para tratamento, mas principalmente por medidas de segurança detentivas e salvaguarda social. É uma questão de periculosidade, e não apenas de tratamento.” (PALOMBA, 2023, grifo nosso).
O POSICIONAMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (MPF)
No mais, o Ministério Público Federal (MPF) foi instado a se manifestar a respeito da decisão do CNJ. O procurador-geral da República (PGR), Augusto Aras, analisou o pedido de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 7.387), requerido pelo partido político PODEMOS. Em parecer favorável, Aras reconheceu o caráter humanitário da deliberação do CNJ. Todavia, o PGR apresentou diversas ressalvas à Resolução 487/2023. Assim sendo, ele propôs uma abrangente reformulação de dispositivos contidos no texto do CNJ, sobretudo no que diz respeito aos prazos:
“Os prazos de 6 meses para interdição parcial e de 12 meses para interdição total de ATPs e HCTPs são insuficientes à concretização dos aparelhos de transição e dos novos paradigmas de tratamento de pessoas que cumprem sanção penal e estão em sofrimento psíquico, havendo de ser considerados marcos temporais para que os estados-membros apresentem plano de execução elaborado mediante diálogo interinstitucional.
O prazo de 12 meses para encerramento completo das atividades de ATPs e HCTPS, previsto no art. 18 da Resolução CNJ 487/2023, inviabiliza a colaboração estratégica tanto do Ministério Público brasileiro quanto de outros órgãos da execução penal, além de médicos e de profissionais da saúde/segurança pública.” (ARAS, 2023, p. 2, grifo nosso).
O PGR destacou a imprescindibilidade de dilatar o prazo concernente à extinção total dos Hospitais de Custódia e de Atenção Psicossocial (HCTPs). Em vista disso, Aras recomendou:
“A prorrogação do prazo previsto no art. 18 da Resolução CNJ 487/2023 para, pelo menos, 24 meses, é medida democrática apta a considerar a realidade e o orçamento de cada estado-membro, em atenção ao pacto federativo e à separação de poderes.” (ARAS, 2023, p. 3, grifo nosso). Nesse sentido, “a efetivação da norma não prescinde de período de transição” (ARAS, 2023, p. 37).
No seu parecer, o PGR ressaltou, ainda, a importância da promoção de debates para a discussão do tema. Para esse propósito, ele cita a audiência pública como uma ferramenta adequada:
“A audiência pública é mecanismo de colaboração democrática em questões sensíveis e de interesse coletivo, mostrando-se como instrumento apto a corroborar a concretização da mudança de paradigma de tratamento de pessoas com transtorno mental que cumprem sanção penal ou necessitam de internação provisória no curso do processo penal.” (ARAS, 2023, p. 3).
OS POTENCIAIS RISCOS E PERIGOS DA RESOLUÇÃO 487/2023
O entusiasmo pela Política Antimanicomial e pela “Desinstitucionalização” é fortemente influenciado pelas ideias de Michel Foucault. De acordo com Emily Garcia (2016, p. 79-80):
“Vale citar a experiência brasileira que, influenciada por Foucault, viu surgir forte movimento antimanicomial. A Reforma Psiquiátrica ocorrida no Brasil se deu por meio da desospitalização e desinstitucionalização, com especial relevância à desinstitucionalização que não se basta no distanciamento da internação, mas efetivo engajamento através de políticas públicas e conscientização social de superação da doença mental.”.
Os estudos do saudoso pensador francês foram abraçados, de maneira quase unânime, pelas comunidades acadêmicas ocidentais. Na atual sociedade pós-moderna, a obra de Foucault influencia múltiplos ramos das ciências humanas. Inspira sociólogos, psicólogos, criminólogos e psiquiatrias forenses. Consequentemente, o teórico francês encontrou aceitação nos meios jurídico e penal. Não obstante, a prolífica literatura foucaultiana (hermética e academicista) falhou em alcançar as camadas populares e “não acadêmicas”, especialmente em nações em desenvolvimento como o Brasil. É notório que entusiastas da luta antimanicomial são movidos pela nobre defesa dos direitos humanos. Entretanto, a filosofia basilar da luta antimanicomial não chegou à ponta. Isto é, ainda não atingiu coletividade, o corpo social identificado como “povão”. Como poderia uma sociedade abraçar um projeto de transformação de paradigma sem ao menos compreendê-lo?
Os elaboradores e defensores da Resolução 487/2023 argumentam que o documento constitui instrumento de adequação do Poder Judiciário brasileiro às diretrizes da “Lei da Reforma Psiquiátrica” (Lei 10.216/2001) e aos ditames da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (2006). Todavia, pecam em desconsiderar os futuros impactos da libertação em massa de indivíduos periculosos. A despeito da inimputabilidade, causada pelos conflitos de ordem psíquica, são indispensáveis avaliações cautelosas a respeito da reinserção desses sujeitos à sociedade. Uma considerável parte desses custodiados cumpre medidas de segurança em razão da prática de gravíssimos crimes. No grupo dos futuros reinseridos à sociedade, há homicidas, latrocidas, infanticidas, estupradores, pedófilos e assassinos em série.
A título de exemplo, no Estado de São Paulo, a maioria dos custodiados e custodiadas (em atual cumprimento de medidas de segurança nos manicômios judiciários) cometeu delitos de alto potencial ofensivo. Segundo apurou o mais recente levantamento da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo (SAP-SP), no mês de junho de 2023, os principais delitos perpetrados por esse grupo foram, respectivamente: Homicídio (31,99%), Roubo (15,01%), Crimes Contra a Dignidade Sexual (13,87%) e Lei Maria da Penha / Lesão corporal / Ameaça (11,49%) (SAP-SP, 2023).
Com a efetivação da norma do CNJ, é incerto o futuro dos autores de crimes bárbaros que causaram relevante repercussão e comoção ao longo da história recente do país. Nos anos 1990, Marcelo Costa de Andrade, o “Vampiro de Niterói”, confessou ter assassinado 13 crianças. Além de tê-las abusado sexualmente, Marcelo confessou a repugnante prática de ingestão do sangue das suas vítimas. Atualmente, ele se encontra sob custódia no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Henrique Roxo, localizado em Niterói. Diversos laudos psiquiátricos reiteraram a inaptidão do custodiado para a reinserção social. Francisco Costa Rocha, vulgo “Chico Picadinho”, entre as décadas de 1960 e 1970, cometeu dois brutais feminicídios, tendo esquartejado duas mulheres. Hoje, ele está sob os cuidados da equipe psiquiátrica da Casa de Custódia de Taubaté, em São Paulo (CORDEIRO, 2023).
Soltos, tanto os custodiados de grande repercussão, quanto os custodiados anônimos, ficarão desassistidos, à mercê do deficitário sistema de saúde pública. Expostos a toda sorte de violência, ao consumo de drogas e ao uso abusivo de bebidas alcoólicas. Não raro, são desprovidos de redes de apoio familiar. Nessas circunstâncias, ainda correrão o risco de desabrigo. Em situação de rua, os egressos dos manicômios judiciários enfrentarão diversos outros desafios, quais sejam: a mendicância, a criminalidade, a fome, a exploração sexual, as intempéries do clima (frio, chuva, vento, exposição solar), as doenças contagiosas e o risco de acidentes no trânsito.
O Sistema Único de Saúde (SUS) está sobrecarregado com as infinitas demandas da população brasileira, sobretudo durante o delicado contexto pós-pandemia. O SUS não dispõe de estrutura para atender os pacientes psiquiátricos em conflito com a lei. Os recursos financeiros e humanos são escassos. Nas milhares de unidades públicas de saúde espalhadas pelos entes federativos, há gargalos de distribuição orçamentária. Um inegável exemplo disso é a falência da saúde em munícipios interioranos empobrecidos e nas periferias dos centros urbanos. Há evidente carência de repasses tributários para o devido suprimento das mais básicas necessidades de saúde comunitária. Incontáveis Hospitais Gerais (superlotados) e postos de saúde padecem com a falta de itens básicos de higiene e de primeiros socorros.
Milhares de municípios sequer contam com Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Segundo dados do Ministério da Saúde, há 2.836 Caps habilitados, distribuídos entre 1.910 municípios de todos os estados e no Distrito Federal (Brasil, 2022). De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil possui um total de 5.568 municípios (IBGE, 2023). Dessa maneira, conclui-se que 3658 municípios brasileiros não têm nenhum Caps. Ainda que, em certos municípios mais desenvolvidos, haja suficiência de recursos, subsistem as questões de incompetência na administração orçamentária e a recorrente problemática de desvios de recursos públicos. Destarte, é imprudente a exigência de acolhimento de egressos dos manicômios judiciários em instituições incapazes de oferecer um digno atendimento ambulatorial, sobretudo no reduzido intervalo temporal imposto pela Resolução.
Em outras palavras, a normativa do CNJ impõe impraticáveis restruturações no precário sistema penitenciário e na deficiente rede de saúde pública brasileira. Para o efetivo êxito das metas propostas pela Resolução 487/2023, há a necessidade de reestruturar a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Essa rede pública de atenção à saúde mental, administrada pelo Sistema Único de Saúde (SUS), abrange, entre outros serviços: atendimentos ambulatorial e emergencial, residências terapêuticas e unidades do Caps. Milhares de unidades públicas necessitariam de vultosas injeções de recursos financeiros para administrar eficazmente o programa de atendimento aos egressos dos manicômios judiciários em cada um dos 27 Estados da federação. Para tal, seria imprescindível a determinação de prazos maiores para a execução dos devidos planejamentos orçamentários. O texto da Resolução 487/2023, porém, sequer aponta as fontes orçamentárias para o pleno desenvolvimento de tão profunda ampliação dos serviços de saúde mental. Há a pretensão de reestruturar os serviços públicos em todos níveis de gestão (municipal, estadual, distrital e federal) sem ao menos desenvolver um planejamento responsável e objetivo.
É inegável a importância da promoção dos direitos humanos nas unidades de tratamento psiquiátrico. O caso Ximenes Lopes vs. Brasil foi um marco nessa seara. Em 2006, o governo brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em razão da má conduta de uma clínica psiquiátrica privada com ligações ao SUS (Réu Brasil, 2021). Na “Casa de Repouso Guararapes”, da cidade cearense de Sobral, o paciente Damião Ximenes Lopes (rapaz esquizofrênico) faleceu após sofrer maus-tratos. O Estado brasileiro reconheceu a sua responsabilidade e tomou as devidas medidas de reparação exigidas pela Corte. A referida responsabilização estatal jogou luz na capacidade de o Estado aprimorar o sistema público de saúde mental. Por essa razão, a atuação das unidades psiquiátricas e dos respectivos profissionais não deve ser demonizada. Não é salutar abrir mão da custódia de indivíduos cometedores de crimes bárbaros. Não resta dúvida de que tais sujeitos são dignos de todas as garantias inerentes ao ser humano. Ainda assim, subsistem duas potenciais problemáticas, a saber: a periclitação da saúde e do bem-estar dos próprios indivíduos que deixarão os manicômios judiciários e a potencial ameaça à segurança de terceiros.
Por conseguinte, faz-se necessário o fortalecimento de uma permanente fiscalização dos manicômios judiciários. O simples fechamento dessas instituições não é a panaceia para os problemas sociais identificados. Uma solução mais adequada à realidade brasileira atual seria a realização de projetos multisetoriais de aprimoramento e monitoramento dos HCTPs em funcionamento. Cabe aos poderes públicos e aos juízes de execução penal envidar esforços para que as medidas de segurança de internação sejam eficazes e condizentes com os direitos fundamentais. Ao invés de simplesmente extinguir os manicômios judiciários, é imperioso direcionar esforços para melhorar as condições e a infraestrutura dessas instituições.
Por meio de uma abordagem multidisciplinar e especializada, essas instituições poderão disponibilizar tratamentos (psiquiátrico, psicológico e social) de qualidade, proporcionando oportunidades de recuperação e reinserção na sociedade. É necessário um compromisso com a formação contínua dos profissionais envolvidos e a promoção de um ambiente terapêutico que priorize a dignidade e o bem-estar dos indivíduos em conflito com a lei. Em última análise, o aprimoramento dos manicômios judiciários pode representar um importante passo na construção de uma Justiça mais humana e mais inclusiva.
O ABISMO ENTRE A OPINIÃO PÚBLICA E A RESOLUÇÃO 487/2023
Por meio da plataforma online Google Forms, a inédita pesquisa de opinião pública começou no dia 16 de julho de 2023 e se encerrou no dia 12 de agosto de 2023. Respondeu ao formulário um heterogêneo grupo de brasileiros e brasileiras. Houve a coleta da experiência dos entrevistados nas áreas correlatas à Política Antimanicomial. Um total de 38,4% declarou possuir experiência em, pelo menos, uma das subsequentes áreas: Área Jurídica ou Penal, Área da Saúde, Psiquiatria / Psicologia, Segurança Pública e Assistência Social. O gráfico 1 apresenta os resultados referentes à questão: Você tem experiência (profissional ou acadêmica) numa das áreas abaixo? (caso tenha experiência em mais de uma área, selecione a que você se dedicou por mais tempo).
Gráfico 1

Fonte: Elaborado pelo autor. (2023).
A análise dos dados coletados no questionário deixou em evidência o quanto a opinião pública foi solenemente desprezada na elaboração da norma do CNJ. Em uma das questões, os entrevistados autoavaliaram os seus níveis de familiaridade com a Política Antimanicomial no Poder Judiciário. De maneira objetiva, responderam à indagação: Na sua opinião, quão familiarizado(a) você está com o tema “Política Antimanicomial no Poder Judiciário”? O gráfico 2 demonstra a falta de familiaridade dos entrevistados com a Política Antimanicomial. Os resultados mostram que 68,3% dos entrevistados estava “Nada familiarizado(a)” ou “Pouco familiarizado(a)” com o assunto. Em contrapartida, somente 18,3% declarou algum nível de familiaridade com o tema, considerando-se “Moderadamente familiarizado(a)” com a Política Antimanicomial. Apenas 3% se declarou “Extremamente familiarizado(a)”.
Gráfico 2

Fonte: Elaborado pelo autor (2023).
Em seguida, uma questão versando sobre o nível de familiaridade dos entrevistados com a Resolução 487/2023 do CNJ. Responderam à questão: Na sua opinião, quão familiarizado(a) você está com a Resolução 487/2023 do Conselho Nacional de Justiça (que institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário)? O gráfico 3 mostra que a maioria dos entrevistados desconhece completamente a Resolução 487/2023. Dessa maneira, 60,4% se declarou “Nada familiarizado(a)”, ao passo que 19,5% declarou possuir pouca familiaridade com o tema. Somente 1,8% se declarou “Extremamente familiarizado(a)”.
Gráfico 3

Fonte: Elaborado pelo autor. (2023)
A questão subsequente requisitou uma avaliação da efetividade do Sistema Único de Saúde (SUS) no tratamento oferecido à população com transtornos mentais. O gráfico 4 apresenta a falta de confiança dos entrevistados com relação a atuação do SUS nesse campo. Quase metade (48,8%) considera o SUS “Pouco eficiente”. Objetivamente, a questão proposta foi a seguinte: Na sua opinião, quão eficiente é o Sistema Único de Saúde (SUS) no tratamento da população com transtornos mentais?
Gráfico 4

Fonte: Elaborado pelo autor. (2023).
Somente 14,2% dos entrevistados acredita no potencial de eficiência da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no acolhimento dos egressos dos manicômios judiciários. A pesquisa propôs a reflexão: Considere a seguinte situação: portadores de transtornos mentais em conflito com a lei deixam os "manicômios judiciários", onde cumprem medidas de segurança. São reintegrados à sociedade e recepcionados pela Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), rede pública integrada ao Sistema Único de Saúde (SUS). Na sua opinião, quão eficiente seria a RAPS no tratamento dessas pessoas? No gráfico 5, os resultados percentuais foram:
Gráfico 5

Fonte: Elaborado pelo autor. (2023).
Analisando os dados do gráfico 6, conclui-se que a maior parte dos entrevistados julga importante a participação popular na elaboração de políticas públicas direcionadas aos indivíduos com transtornos mentais que cumprem medidas de segurança nos manicômios judiciários. Um total de 70,7% considerou “Importante” ou “Extremamente importante”. A reflexão proposta foi: Considere a elaboração de políticas públicas direcionadas ao seguinte público-alvo: portadores de transtornos mentais em conflito com a lei cumprindo medidas de segurança em "manicômios judiciários". Na sua opinião, quão importante é a participação popular na elaboração dessas políticas públicas?
Gráfico 6

Fonte: Elaborado pelo autor. (2023).
A última questão avaliou as opiniões relativas ao papel da comunidade médica no desenvolvimento de políticas públicas destinadas ao público amparado pelos manicômios judiciários. 67,1% considerou como “Extremamente importante” a participação dos médicos nesse quesito. 23,2% julgou “Importante”. No gráfico 7, a apresentação dos resultados à reflexão: Considere a elaboração de políticas públicas direcionadas ao seguinte público-alvo: portadores de transtornos mentais em conflito com a lei cumprindo medidas de segurança em "manicômios judiciários". Na sua opinião, quão importante é a participação das entidades médicas na elaboração dessas políticas públicas?
Gráfico 7

Fonte: Elaborado pelo autor. (2023).
Conclusão
Em resumo, este artigo analisou as desvantagens da Resolução 487/2023 do CNJ, que propõe a "desinstitucionalização" de portadores de transtornos mentais em conflito com a lei. Embora bem-intencionada, a implementação poderá desencadear efeitos prejudiciais na sociedade, como apontado por médicos e juristas. A pesquisa de opinião constatou um descompasso entre a Resolução 487/2023 e a percepção pública. Em síntese, os resultados da pesquisa destacam (de forma inequívoca) a falta de confiança e a discordância generalizada dos entrevistados em relação à normativa do CNJ. Aprofundando nossa compreensão, restou evidente que as preocupações sobre a viabilidade e os desdobramentos negativos dessa medida são compartilhadas amplamente pela população.
O flagrante distanciamento entre as percepções dos cidadãos e os objetivos da Resolução 487/2023 suscita sérias dúvidas sobre a legitimidade e a efetividade da norma. As opiniões coletadas ressoam o questionamento sobre a adequação normativa ao contexto sociocultural e às necessidades da sociedade brasileira, bem como sua harmonização com os princípios fundamentais de justiça e segurança. As conclusões da pesquisa fornecem uma base sólida para reavaliar a Resolução 487/2023, à luz das preocupações expressas pela população. É imperativo que as autoridades competentes reexaminem o texto da Resolução e considerem cuidadosamente os resultados desta pesquisa, reconhecendo a importância de alinhar as políticas públicas com as aspirações e os valores da sociedade brasileira.
Em última análise, os achados da pesquisa enfatizam a urgência de uma abordagem mais democrática e inclusiva na estruturação de políticas. Uma abordagem que considere não apenas os aspectos técnicos e jurídicos, mas também a percepção e a confiança da população. Por meio deste estudo, reafirma-se a importância vital de um diálogo contínuo entre os formuladores de políticas e a sociedade, buscando o equilíbrio entre o avanço normativo e o bem-estar coletivo. Afinal de contas, é dever do Poder Público servir a população e não o contrário.
Referências
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n. 487, de 15 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original2015232023022863fe60db44835.pdf. Acesso em: 11 de julho de 2023.
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