I) – Breve Contexto do sistema registral brasileiro:
Como de conhecimento do leitor, o atual sistema registral adotado pelo Brasil não é rígido como o alemão, contudo, o legislador pátrio limitou-se a adotar a técnica germânica da aquisição do domínio pelo registro, mas sem estabelecer uma presunção absoluta ao registro imobiliário.
A presente disposição concede apenas uma presunção relativa do domínio (juris tantum), pois ao realizar o registro, presume-se que o direito real pertence à pessoa em cujo nome foi inscrito, nos termos do artigo 1.245, §2º, do Código Civil. Além disso, acrescenta-se que a propriedade é adquirida na data em que o título é apresentado para registro (art. 1.246, CC), mesmo que tenha transcorrido um período considerável desde a prenotação até o registro efetivo.
Entretanto, o registro possui uma função além da mera publicidade do ato de transferência, como ocorre no direito francês e em países que adotam a mesma abordagem. Ao contrário, trata-se de um ato solene de tradição, que confere ao adquirente o direito real, transferindo-lhe a titularidade. É importante ressaltar que essa não é a mesma abordagem do registro no direito germânico, pois o valor atribuído ao registro não é absoluto, admitindo prova em contrário (GONÇALVES, 2021, p. 610)1.
O cenário atual faz com que recordemos o histórico brasileiro, no qual se segue.
Antes da vigência do Código Civil de 1916, o sistema jurídico admitia que os imóveis se transmitissem solo consenso, seguindo uma doutrina semelhante à do Código Francês e de outros países que adotavam a mesma abordagem (como o italiano e o espanhol). Dessa forma, a propriedade era transferida exclusivamente por meio do contrato, sem a necessidade de cumprir qualquer outra exigência adicional.
Sobre a evolução do sistema explica Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho (2019, p.103)2:
Sentido, porém, os riscos que daí forçosamente se originavam, entenderam os nossos juristas que a transcrição se tornava necessária “para que a transferência tivesse valor contra terceiros”.
Em crítica ao sistema então vigente, na qual envolve também modelo francês â época, Virgílio de Sá Pereira objeta que o direito brasileiro consagrava verdadeira contradição essencial, pois que se o contrato bastava para transferir o domínio, mas o registro era necessário a que prevalecesse erga omnes, na verdade não se verificava a transferência do domínio por força do contrato, uma vez que é da essência da propriedade a sua validade em relação a todos (erga omnes). Portanto, se a transmissão da propriedade ao adquirente operava apenas inter partes, isto é, com força limitada aos contrates apenas, o título na verdade não produzia efetivamente a consequência de transferir o domínio senão a partir do momento em que se completava o seu registro, pois que não existia e não podia existir um domínio que tivesse validade apenas entre as partes.
A contradição não havia passado despercebida aos civilistas da época, que então classificavam a transcrição como uma tradição solene, a ser exigida como elemento necessário â transferência imobiliária. Teixeira de Freitas (Consolidação das Leis civis, pág. 110 [LXXXIV], defendia o caráter publicitário da transcrição e, ao mesmo tempo, por explícito sustentava preencher ela no fim da tradição, separando os direitos reais dos chamados direitos pessoais.
O Código Civil Alemão, de 1896, estabeleceu um sistema para a transferência de propriedade, no qual o registro é obrigatório para efetuar a transferência do domínio. Esse processo inclui a depuração do título em um procedimento sumário, conduzido perante o juiz do registro de imóveis. O cerne do sistema alemão é o cadastro imobiliário, mantido em livros fundiários rigorosamente escriturados. Uma vez operado o registro decorrente de ato judicial, a inscrição assume forma de negócio jurídico abstrato, independentemente do negócio jurídico causal anterior. Resultando, portanto, uma vez promovido o registro nos livros fundiários, a transcrição é abstraída do negócio jurídico subjacente (compra e venda, por ex.) ganhando presunção juris et de jure, ou seja, não admitindo prova em contrário da propriedade (Kümpel, 2005 p. 88)3.
Ao desenvolver o seu projeto, Clóvis Beviláqua considerou a doutrina civilista brasileira vigente à época, além de se inspirar na contribuição do direito germânico, o que resultou no Código Civil de 1916. Esse código representou um sistema adaptado às características da propriedade no Brasil, que não contava com um sistema de cadastramento semelhante ao da Alemanha, impossibilitando a instituição de um registro geral de imóveis com todos os efeitos daquele sistema. Dessa forma, o direito brasileiro optou por estabelecer um sistema de registro que se assemelhasse ao germânico, onde a aquisição do domínio ocorre por meio do registro, mas não com todos os mesmos efeitos. Em outras palavras, o sistema de registro adotado no Brasil seguiu a técnica germânica, mas com algumas diferenças e limitações. O que se seguiu em 2002 (Monteiro Filho, 2019, p. 105).
II) – Impacto do sistema registral brasileiro nos contratos de locações regulados pela Lei 8.245/91:
A Lei 8.245/91, comumente chamada de Lei do Inquilinato, objetiva a regulação das locações de imóveis em ambiente urbano, portanto, excluindo expressamente os bens móveis e propriedades rurais de sua abrangência. Trata-se de um microssistema ou estatuto dedicado exclusivamente às locações.
À época de sua promulgação, o mercado imobiliário passava por um momento desafiador, com relações conturbadas entre locatários e locadores e uma problemática geral em relação à moradia. Tais circunstâncias demandavam uma profunda reestruturação na legislação sobre locações. Por um lado, havia um desestímulo considerável à construção de novos imóveis destinados à locação, devido às diversas restrições impostas aos proprietários e locadores, que aparentemente privilegiavam os direitos dos inquilinos. Por outro lado, aqueles que necessitavam alugar imóveis, especialmente para moradia, enfrentavam uma situação angustiante, com preços desequilibrados de locações causadas principalmente pela antiquada legislação anterior, a qual oferecia uma proteção ao inquilino mais ilusória do que real (VENOSA, 2020, pág. 20)4.
Ocorre que, para o regular cumprimento de algumas situações específicas, tornando sua eficácia satisfativa na melhor compreensão finalística do legislador, a lei exige forma e requisito do contrato de locação, qual seja, o registro imobiliário.
O artigo 8º, da Lei do Inquilinato, estabelece que, para o locatário se resguardar da denúncia do contrato por parte do adquirente, em caso de alienação, o contrato em questão deve ser por prazo determinado, cláusula de vigência em caso de alienação e o mesmo deve estar averbado junto à matrícula do imóvel, sendo, portanto, requisitos cumulativos5.
Através deste dispositivo, o interessado no imóvel alugado é considerado um terceiro em relação ao contrato de locação, pelo menos inicialmente, exceto quando o contrato é registrado no cartório de imóveis, tornando o negócio conhecido por terceiros. Com essa medida, busca-se evitar uma maior restrição ao direito de propriedade imposta pela legislação de locação.
Vale ressaltar que essas disposições se aplicam tanto para locações residenciais quanto não residenciais, e o fato de o inquilino ter direito à renovação do contrato ou tê-lo obtido através dessa ação não impede a aplicação do direito de rescisão examinado.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, mesmo que haja um processo em andamento para a renovação do contrato, se este não estiver registrado, o novo comprador tem o direito de efetuar a denúncia vazia, ou seja, ele não está sujeito à renovação do contrato em curso, a menos que deseje assumi-la.
Uma vez que a lei menciona a alienação, não é necessário fazer distinção entre negócios jurídicos gratuitos ou onerosos. Todo ato inter vivos de transferência como doação, permuta ou dação em pagamento, é abrangido pela lei, desde que seja passível de registro imobiliário.
Importante notar que o atual Código Civil incorporou esse dispositivo da lei de locação no (artigo 576, CC), incluindo também a exigência do registro do contrato. Contudo, a maioria dos casos de locações imobiliárias são reguladas pela presente lei (inquilinato), não pelo Código Civil, especialmente devido ao artigo 2.036, presente nas disposições transitórias.
É interessante enfatizar essas situações em que o legislador concede efeitos excepcionais ao contrato quando este está registrado no cartório de imóveis.
Quando o legislador decide proteger certas relações contratuais da interferência de terceiros, confere à obrigação um efeito real que é alcançado através do registro (sempre imobiliário, não de títulos e documentos). Nessa situação, uma vez que o contrato é registrado, terceiros que adquiram o imóvel devem respeitar a obrigação durante o prazo estipulado. Em qualquer caso, o registro confere uma eficácia limitada a todos, o que só é possível porque a lei estabelece um direito real a uma relação obrigacional.
Por meio desse registro autorizado pela lei, vai contra o princípio da relatividade das convenções, que determina que o contrato só vincula as partes envolvidas. O novo proprietário deve respeitar o prazo do contrato de locação, do qual não fez parte.
Igual eficácia real ocorre no artigo 33, da mesma Lei do Inquilinato, existirá um direito real para o inquilino, se houver registrado devidamente o contrato, o qual lhe permitirá haver o imóvel, ou então, exclusivamente, um direito pessoal estampado em um pedido de perdas e danos6.
Destaca Venosa (2020, págs. 182 e 183):
A ação do locatário preterido para haver o imóvel para si, na qual se deposita o preço e consectários, depende do registro imobiliário do contrato locativo pelo menos trinta dias antes da alienação, e deve ser proposta dentro em seis meses a contar do registro do ato de alienação. Não ocorrendo essas condições, não terá o locatário o direito com eficácia real. Certas relações oriundas de contratos, por força de disposição legal, alcançam parâmetro de direito real. É precisamente o que ocorre nesse dispositivo do inquilinato. O contrato de locação, com o registro imobiliário, permite que o locatário oponha seu direito de preferência erga omnes, isto é, perante qualquer um que venha a adquirir a coisa locada.
Percebendo, pois, o inquilino a intenção do locador em alienar o prédio, deve prontamente registrar seu contrato, se não o fez anteriormente. Não procedendo ao registro, ou não levado a efeito na forma e tempo devidos, só lhe restará a ação indenizatória.
III) – Conclusão:
O contrato de locação, como típico instituto de direito pessoal, gera efeitos inter partes, em regra. Contudo, pela averbação deste contrato na matrícula do imóvel, confere-se publicidade ao mesmo, gerando oponibilidade erga omnes atinente a relação locatícia.
Referências
BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República, [2023]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em 08/08/2023.
BRASIL, Lei nº 8.245 de 18 de outubro de 1991. Dispõe sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes. Brasília, DF: Presidência da República, [2023]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8245.htm. Acesso em 08/08/2023.
Gonçalves, Carlos Roberto – Direito Civil: contratos em espécie – direito das coisas v.2/ Carlos Roberto Gonçalves / coord. Pedro Lenza. – 9. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2021.
Pereira, Caio Mário da Silva / Instituições de direito civil: direitos reais / Caio Mário da Silva Pereira; revista, atualizada e ampliada por Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho. – 27. Ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019.
Kümpel, Vitor Frederico / Direito Civil, 4: direito das coisas / Vitor Frederico Kumpel. – São Paulo: Saraiva, 2005.
Venosa, Silvio de Salvo, Lei do Inquilinato Comentada / doutrina e prática: Silvio de Salvo Venosa. – 15. ed. – São Paulo: Atlas, 2020.
Gonçalves, Carlos Roberto – Direito Civil: contratos em espécie – direito das coisas v.2/ Carlos Roberto Gonçalves / coord. Pedro Lenza. – 9. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2021. Pág 609 e 610;︎
Pereira, Caio Mário da Silva / Instituições de direito civil: direitos reais / Caio Mário da Silva Pereira; revista, atualizada e ampliada por Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho. – 27. Ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019. Pág. 103.︎
Kümpel, Vitor Frederico / Direito Civil, 4: direito das coisas / Vitor Frederico Kumpel. – São Paulo: Saraiva, 2005. Pág. 88.︎
Venosa, Silvio de Salvo, Lei do Inquilinato Comentada / doutrina e prática: Silvio de Salvo Venosa. – 15. ed. – São Paulo: Atlas, 2020. Pág. 20.︎
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RECURSO ESPECIAL. AQUISIÇÃO. SHOPPING CENTER. LOJAS. LOCAÇÃO. AÇÃO DE DESPEJO. CLÁUSULA DE VIGÊNCIA. REGISTRO. AUSÊNCIA. OPOSIÇÃO. ADQUIRENTE. IMPOSSIBILIDADE.
1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).
2. A controvérsia gira em torno de definir se o contrato de locação com cláusula de vigência em caso de alienação precisa estar averbado na matrícula do imóvel para ter validade ou se é suficiente o conhecimento do adquirente acerca da cláusula para proteger o locatário.
3. A lei de locações exige, para que a alienação do imóvel não interrompa a locação, que o contrato seja por prazo determinado, haja cláusula de vigência e que o ajuste esteja averbado na matrícula do imóvel.
4. Na hipótese dos autos, não há como opor a cláusula de vigência à adquirente do shopping center. Apesar de no contrato de compra e venda haver cláusula dispondo que a adquirente se sub-rogaria nas obrigações do locador nos inúmeros contratos de locação, não há referência à existência de cláusula de vigência, muito mesmo ao fato de que o comprador respeitaria a locação até o termo final.
5. Ausente o registro, não é possível impor restrição ao direito de propriedade, afastando disposição expressa de lei, quando o adquirente não se obrigou a respeitar a cláusula de vigência da locação.
Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:6. Recurso especial provido.
(REsp n. 1.669.612/RJ, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 7/8/2018, DJe de 14/8/2018.)︎
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RECURSO ESPECIAL. LOCAÇÃO DE IMÓVEL. DIREITO DE PREEMPÇÃO DO INQUILINO (LEI 8.245/1991, ART. 33). CONDIÇÕES PARA O EXERCÍCIO. DESCUMPRIMENTO PELO LOCATÁRIO. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.
1. Em harmonia com o Código Civil, no art. 221, caput, segunda parte, estabelece a Lei do Inquilinato em seu art. 33, no que interessa ao exercício do direito de preferência na aquisição do imóvel locado pelo inquilino, duas obrigações para o locatário: a) primeiro, para habilitar-se a eventual e futuro exercício do direito de preempção, deve registrar o contrato de locação, averbando-o na respectiva matrícula do registro imobiliário competente, dando, assim, plena publicidade a terceiros, advertindo eventual futuro comprador do bem, de modo a não ser este surpreendido, após a compra, pela pretensão de desfazimento do negócio pelo locatário preterido; b) segundo, pertinente agora já ao exercício do direito de preferência pelo inquilino preterido e que se tenha oportunamente habilitado, deverá este depositar o preço da compra e demais despesas da transferência, desde que o faça no prazo decadencial de seis meses após o registro da alienação impugnada no registro imobiliário.
2. Na hipótese, é correto o entendimento do eg. Tribunal de Justiça ao dar provimento à apelação da adquirente, julgando improcedente a ação proposta pela inquilina, assentando que o contrato de locação somente fora averbado após a realização do negócio jurídico firmado entre o locador e a ora recorrida.
3. Recurso especial desprovido.
(REsp n. 1.272.757/RS, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, relator para acórdão Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 20/10/2020, DJe de 12/2/2021.)︎