A custódia de mulheres transexuais e travestis em unidade prisional específica lgbt+ 

20/09/2023 às 17:44

Resumo:


  • A população LGBT+ no sistema penitenciário enfrenta invisibilidade e falta de consenso sobre o local adequado para custódia, com discussões sobre unidades masculinas, femininas, alas LGBT+ ou unidades prisionais específicas.

  • Resoluções e legislações buscam estabelecer diretrizes para o acolhimento de transexuais e travestis no cárcere, mas a realidade ainda é marcada por violências e violações de direitos.

  • Unidades prisionais específicas para LGBT+ surgem como uma alternativa mais adequada, proporcionando segurança e respeito às identidades de gênero e sexualidades dos indivíduos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

RESUMO

O tema LGBT+ desde de o ano de 2011 passou a fazer parte dos temas a serem abordados pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Entretanto é grande a invisibilidade dessa população no cárcere, especialmente a atenção voltada às mulheres transexuais e travestis. Desse modo, não há consenso quanto ao local adequado para essa custódia no sistema penitenciário. Assim, através da revisão bibliográfica e estudo da legislação, resoluções, portarias, busca-se entender qual o local adequado para a custódia de transexuais femininas e travestis. Se em unidades masculinas, levando-se em conta o caráter biológico; se em unidades femininas, atendendo o gênero autodeclarado; se em alas LGBT+ nas unidades prisionais masculinas ou ainda, em unidades prisionais específicas LGBT+ atendendo as especificidades de identidade de gênero e/ou sexualidade.

Palavras-chave: política penitenciária. inclusão. transexuais.

ABSTRACT

Since 2011, the LGBT+ theme has become part of the topics to be addressed by the National Council for Criminal and Penitentiary Policy. However, the invisibility of this population in prison is great, especially the attention given to transsexual and transvestite women. Thus, there is no consensus on the appropriate place for this custody in the penitentiary system. Thus, through the literature review and study of legislation, resolutions, ordinances, we seek to understand the appropriate place for the custody of female transsexuals and transvestites. If in male units, taking into account the biological character; if in female units, meeting the self-declared gender; whether in LGBT+ wards in male prison units or in specific LGBT+ prison units meeting the specificities of gender identity and/or sexuality.

Keywords: penitentiary policy. inclusion. transsexuals.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende abordar o encarceramento de mulheres transexuais e travestis, o local para onde estão sendo encaminhadas para o cumprimento de pena, bem como identificar qual o local adequado para essa custódia enquanto privadas de liberdade. Para tanto, utilizou-se da metodologia de revisão bibliográfica e análise da legislação atinente a temática.

Desse modo, busca-se entendimento quanto o local adequado para a custódia de mulheres transexuais e travestis, visto que desde o ano de 2011, a temática LGBT passou a fazer parte do Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária no Brasil. E, desde então, vem se discutindo, de forma tímida, a custódia de pessoas transexuais e travestis no sistema penal.

É sabido que os espaços masculinos são permeados de violência, preconceitos e sem acesso a itens e/ou signos femininos. Em contrapartida, as alas LGBT em unidades penais masculinas se mostram vulneráveis com a possibilidade de inclusão de presos heterossexuais, enquanto nas prisões femininas, a custódia de transexuais femininas e travestis é idealizada em espaços separados da população carcerária.

2. DESENVOLVIMENTO

O Brasil no ano de 2021 contabilizava 11.490 (onze mil quatrocentos e noventa) pessoas LGBT em privação de liberdade. De acordo com a Nota Técnica nº 28/2021/DIAMGE/CGCAP/DIRP/DEPEN/MJ de 18 de agosto de 2021, do total de LGBT, havia 876 (oitocentos e setenta e seis) pessoas que se declaravam como travestis e 559 (quinhentos e cinquenta e nove) pessoas que se reconheciam como mulheres transexuais, recolhidas nas unidades penais. 

Nesse sentido, os termos travesti e mulher transexual tratam de identidade de gênero, a qual refere-se ao processo de se identificar como homem, como mulher ou ainda, de não se identificar nem como homem nem como mulher. 

Quanto as identidades de gênero, cabe trazer à tona a abordagem de Morello Ferreira (2021, p. 121) quanto a sigla LGBTI+: 

Na sequência da sigla LGBTI+ quanto a identidade de gênero, temos: T de pessoas transexuais e travestis, sendo que os transexuais são pessoas designadas biologicamente com um determinado gênero, mas que se reconhecem como o gênero oposto, e podem ou não passar por transição de gênero com ou sem cirurgias de modificações corporais. 

Nesse contexto, mulher trans é a pessoa que ao nascer foi designada biologicamente como do sexo masculino, porém se identifica como sendo do gênero feminino. Já homens trans é a pessoa que ao nascer foi designado biologicamente como do sexo feminino, porém se identifica como sendo do gênero masculino. Já as travestis, são pessoas designadas biologicamente do gênero masculino ou como intersexo e constroem nelas mesmas a identidade feminina, passando a se reconhecer como travesti.   

Desse modo, sabe-se que para alocação das pessoas em unidades prisionais é utilizado o critério biológico. Assim, a segregação é realizada conforme os genitais apresentados pelo privado de liberdade, sendo que as pessoas que apresentam pênis são encaminhadas para unidades penais masculinas, enquanto para unidades femininas são direcionadas as pessoas com vagina. 

Entretanto, conforme explicitado, essa divisão biológica deixa de abarcar as pessoas dissidentes quanto à identidade de gênero, pois deixam de reconhecer o gênero autodeclarado, como o caso de mulheres transexuais e travestis. 

De acordo com Tarzwell e Lima & Nascimento citados por Dornelles (2020, p. 56), a binariedade é fonte de abusos em desfavor dos indivíduos que transcendem essa lógica

Assim, as transexuais e travestis são encaminhadas para unidades prisionais masculinas, e lá colocadas no convívio comum com os demais detentos. 

Nessa lógica, Fonseca e Cancela (apud DORNELLES, 2020, p. 56):

(...) escrevem sobre travestis presos, classificar alguém com pênis como homem e, com isso, atribuir a ele um lugar para cumprir sua sentença, “reflete que os órgãos genitais são privilegiados como fator de identificação em lugar da verdadeira identidade transexual”.

Consta que nesses espaços masculinos, a população carcerária transexual está sujeita a vários tipos de violência, desde violência física, sexual e psicológica, até violência institucional. 

Quanto a essas violações vivenciadas pelas mulheres transexuais e travestis, Sanzovo (2021, p. 17) identificou maior vulnerabilidade e ainda, maior penalização das travestis e transexuais em relação aos demais detentos.

Todavia, essas violências suportadas pela população transexual e travesti desrespeita os preceitos internacionais, como o caso do Pacto de San José da Costa Rica, promulgado no Brasil através do Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992: 

1.Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. 2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem as penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano. (Brasil, 1996, artigo 5º)  

Ainda nesse segmento, no ano 2006 ocorreu a formação dos Princípios de Yogyakarta, documento este voltado para a proteção da comunidade LGBTI+, recepcionado pelo Brasil. E, segundo Dornelles (2020, p. 40):

Os princípios mais relevantes são o 3º que afirma que “ninguém será obrigado a se submeter a procedimentos médicos, incluindo esterilização, cirurgia de redesignação sexual e terapia hormonal como requisito para o reconhecimento legal de sua identidade de gênero” e 9º, que diz que todos devem ser tratados com dignidade “independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero, conceitos que são fundamentais para a dignidade de todas as pessoas.

Assim, no Brasil, a partir do quadriênio 2011/2014, a temática LGBT passou a fazer parte do Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária.

O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP em conjunto com o Conselho Nacional de Combate à Discriminação – CNCD/LGBT editaram a Resolução 01, de 15 de abril de 2014, estabelecendo parâmetros de acolhimento de LGBT+ em privação de liberdade.

A resolução trouxe o entendimento da sigla LGBT, abordando os espaços de vivência específico para transexuais e travestis, condicionado a manifestação de vontade quando custodiadas em unidade masculina; o uso de prenome social; o uso de roupas conforme o gênero declarado; o direito a visita íntima; o acesso à saúde e manutenção de tratamento hormonal e ainda o acesso à educação formal e profissionalizante.

Tal resolução passou a inspirar decisões do Poder Judiciário quanto a transferência de pessoas transexuais para unidades penais de acordo com o gênero autodeclarado.

Já para o quadriênio 2020/2023, o plano do CNPCP propôs readequação das unidades prisionais:

A reorganização do sistema prisional é imperativa e urgente, perpassando por medidas básicas, como a readequação das unidades prisionais, com a inexorável observância de suas capacidades físicas instaladas, a separação dos presos – previsão expressa na Lei de Execução Penal (BRASIL, 1984), com o implemento de outras e atuais distinções pela natureza dos delitos, pertencimento à organização criminosa, gêneros sexuais (por exemplo, Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgêneros-LGBT) etc. – e culminando com o controle e o exercício do poder estatal. Nesse mister e em paralelo, impõe-se também o desafio da efetiva implementação de políticas públicas voltadas para assegurar o direito dos presos à saúde, à assistência jurídica e à assistência social, almejando reverter esse caótico quadro retratado do sistema penitenciário brasileiro. (Brasil, 2019, 80/81)

Assim, uma das propostas do plano do CNPCP para os anos de 2020 a 2023 é readequação de unidade prisionais, levando-se em conta o quesito presos da comunidade LGBT+, desta forma, propõem-se a criação de espaços de vivência específica como já idealizado pela Resolução Conjunta nº 1/2014, bem como a possibilidade de criação de unidade especifica à população LGBT.

Nessa direção, o DEPEN editou a Nota Técnica nº 9/2020/DIAMGE/CGCAP/DIRP/DEPEN/MJ acerca das orientações a respeito dos procedimentos quanto a custódia de pessoal LGBTI+ a serem adotadas pelos sistemas penitenciários estaduais.

  Já na esfera do Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) implementou a Resolução nº 348/2020, estabelecendo diretrizes e procedimentos a serem observados pelo Poder Judiciário no âmbito criminal com relação ao tratamento da população lésbica, gay, bissexual, transexual, travesti ou intersexo que seja custodiada, acusada, ré, condenada, privada de liberdade, em cumprimento de alternativas penais ou monitorada eletronicamente. 

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Desse modo, passou a possibilitar a manifestação de vontade de pessoas LGBT+ quanto ao lugar de encarceramento, facultando a escolha entre unidades penais masculinas e femininas conforme o gênero autodeclarado e ainda, se alocadas em convívio comum com a população carcerária ou espaço de vivência específico.

Entretanto, mesmo diante dessa implementação nas resoluções e orientações quanto a abordagem das transexuais e travestis no cárcere, é flagrante a invisibilidade da população LGBT+ em privação de liberdade diante das propostas realizadas pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP, Conselho Nacional de Justiça (CNJ), entre outros.

Essa invisibilidade é vista na sociedade como um todo. Desta forma, Fagundes (2020, p. 30) destaca que “os transgêneros são considerados pela maior parte da sociedade como indivíduos abjetos, que não ocupam uma posição dentro da atual sociedade.” 

Esse pensamento representa o descaso que acomete as mulheres transexuais e travestis quando em privação da liberdade. 

Segundo Manfrin citada por Sanzovo (2021, p. 35):

(...) as travestis e as transexuais representam a população LGBT mais vulnerável do sistema prisional. Isto porque, após analisar suas falas, a pesquisadora deparou-se com depoimentos de violências, preconceito e violações, tanto resultantes da própria estrutura penitenciária, dos servidores públicos, como demais presos:

O ingresso de um homossexual no universo prisional pode trazer experiências marcadas pelo preconceito e pela violência, especialmente em relação às travestis e transexuais. Essas situações de violência podem ser expressões com conotação pejorativa no uso de roupas masculinas, cortes de cabelos padronizados dentre outros. (MANFRIN, 2013, p. 110)

De todas as violações vivenciadas pelas pessoas no cárcere, as presas transexuais e travestis ainda são submetidas a outras violações, como a proibição da manutenção do comprimento dos cabelos, o uso de nome social, o uso de vestimentas de acordo com o gênero, entre outros. Sem contar ainda, as violências perpetradas por outros detentos em razão da identidade de gênero e/ou sexualidade.

Diante dessas violações e seguindo as instruções da Resolução 01/2014 do CNPCP, alguns Estados brasileiros passaram a adotar alas e/ou celas específicas para essa população, bem como adequação na triagem e classificação dos custodiados.

É o caso, em especial, do Estado de Minas Gerais que foi o primeiro a implementar espaço exclusivo à população carcerária LGBT+.

Conforme Sestokas (apud Sansozo, 2021, p. 78);

“A criação de “alas” específicas para o público LGBT é uma conquista oriunda da pressão da sociedade civil junto aos movimentos ativistas por direitos LGBT, após constantes denúncias de violência e casos de assassinatos nos presídios”.

Nos espaços específicos para a população transexual e travestis, as internas têm acesso a itens pessoais femininos, a manutenção do comprimento dos cabelos, que contribui para o resgate da autoestima. Nessa perspectiva, na pesquisa conduzida por Sanzovo (2021) verificou-se que as presas em alas LGBT tinham amplo acesso a itens femininos e que não era imposto o corte de cabelo de forma padronizado, sendo facultado a manutenção do comprimento dos cabelos.

Em contrapartida, nos espaços exclusivamente masculinos, as transexuais são alocadas em unidades prisionais cuja população carcerária em sua grande maioria é composta por presos que não possuem convívio com outros presos nas demais unidades prisionais, como caso de presos por crimes sexuais, presos delatores, entre outros. Nesses espaços masculinos, as presas transexuais não têm acesso a itens femininos, como os produtos para manutenção de cabelo, itens de maquiagem e roupas femininas.

Sanzovo (2021, p. 136) identificou que nesses espaços masculinas, as transexuais e travestis associam a ausência de itens de feminilidade à depressão.

Já em atenção à assistência à saúde, vislumbra-se que o acesso a terapia hormonal é praticamente inexistente, tanto nas alas LGBT como nas unidades penais exclusivamente masculinas.

Insta salientar, que a Resolução Conjunta nº 1/2104 preconiza que é garantido à travestis e transexuais em privação de liberdade a manutenção do tratamento hormonal e o acompanhamento de saúde.

E, sabe-se que a terapia hormonal é contemplada pelo Sistema Único de Saúde - SUS desde o ano de 2008, além do acompanhamento multidisciplinar e cirurgias de modificação corporal. O processo transexualizador disponibilizado na rede SUS foi ampliado e redefinido através da Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013, passando a atender ainda travestis e homens trans.

Sanzovo (2021) estabelece ainda uma comparação entre as experiências vivenciadas pelas detentas transexuais com as demais pessoas privadas de liberdade nas alas específicas LGBT, bem como no CDP-II de São Paulo.

Sendo que, identificou que a vivência em unidade masculina é permeada por violências e preconceitos, como o caso de separação dos utensílios utilizados pelas presas transexuais.

Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:

Nessa continuidade, Fagundes (2020, p. 82/83):

Um caso em destaque ocorrido no Brasil, em Minas Gerais, a respeito da reeducanda transgênero Vitória Fortes, gerou a criação da primeira ala gay reservada para os indivíduos transgêneros., Vitória se automutilava quando se encontrava no presídio masculino para conseguir chamar a atenção dos membros da diretoria, conforme confiram o relato dela: [...] era obrigada a ter relação sexual com todos os homens das celas, em sequência. Todos eles rindo, zombando e batendo em mim. Era ameaçada de morte se contasse aos carcereiros. Cheguei a ser leiloada entre os presos. Um deles “me vendeu” em troca de 10 maços de cigarro, um suco e um pacote de biscoitos. [...] Fiquei calada até o dia em que não aguentei mais. Cheguei a sofrer 21 estupros em um dia. Peguei hepatite e sífilis. Achei que ia morrer. Sem falar que eu tinha de fazer faxina na cela e lavar a roupa de todos. Era a primeira a acordar e a última a dormir.

Relatos de estupro e outras violências no cárcere sofrido por detentas travestis e transexuais são bem corriqueiros, sendo que essa violência sempre vem acompanhada de ameaças pelos agressores, ficando a vítima fica à mercê dos seus algozes. Desta forma, buscando evitar esse tipo de situação e assim salvaguardar a integridade física dessa população, é que se recomenda a criação de alas especificas a população transexual. Todavia, por ora são poucos os espaços específicos pelo país, sendo que a grande maioria das presas transexuais e travestis em unidades masculinas estão recolhidas em celas separadas, mas no convívio com a população em geral.

Já unidades penais com ala específica para população LGBT, verificou crescente onda de violência, após a transferências de presos heterossexuais que se autodeclaram LGBT para inclusão nas referidas alas, buscando maior segurança durante o cumprimento da pena.

Desse modo, subentende-se que a vivência anterior a chegada desses homens e heterossexuais, as Alas LGBT era um espaço que possibilitavam às travestis e transexuais vivência tranquila, sem violência e preconceitos.

Quanto à alocação das presas transexuais no cárcere, aponta-se ainda, a segregação administrativa imposta a essa população, que segundo Dornelles (2020, p. 46) que “uma das respostas oficiais ao risco de vitimização de transgêneros é a segregação administrativa, uma prática frequentemente usada para proteger as pessoas vulneráveis em geral (...)”

Nesta direção é o pensamento de Ferreira (2018, p. 225):

De acordo com essas narrativas, podemos perceber que a opção por manter pessoas trans em espaços segregados é frequentemente a política mais imediata em que prisões conseguem pensar em termos de tratamento penal especifico de mulheres trans e travestis. No entanto, nem sempre essa decisão é tomada tendo em consideração a responsabilidade institucional de proteção das pessoas privadas de liberdade; é, isto sim, a maneira que as prisões encontram, muitas vezes, para gerenciar as identidades de gênero dissidentes com a utilização mínima de recursos institucionais, tendo em vista que tomam por referência, também, a noção de que essas vidas valem menos – e por isso podem ser mais facilmente maltratadas, tendo relacionamentos reprimidos (quer dizer, sendo impedidas de terem contato com namorados/maridos), permanecendo longas horas em isolamento total, tendo de conviver com pessoas com demandas de saúde mental desatendidas pelo Estado e, em última instancia, sofrendo a violência física dos próprios policiais que exercem atividades na prisão. Quando optam, por isso, em segregar para verem-se livres do “problema”, as pessoas trans estarão fadadas a perderem direitos e a experimentarem situações de reiteradas de violência.

Algumas unidades prisionais recorrem a segregação administrativa na tentativa de contornar o problema de convivência entre presas transexuais e demais população masculina, na tentativa de proteger essas pessoas transexuais. Entretanto, essa segregação se mostra sempre de forma compulsória e geralmente são transferidas para alas denominadas de seguro, onde se encontram outros presos que não tem convivência com os demais, em razão do tipo de crime praticado ou ainda, por ser integrantes de facções criminosas rivais.

Por outro lado, na pesquisa apresentada por Sanzovo (2021, p. 161), há relatos sobre a convivência em unidades penais femininas, os quais dão conta de que o convívio com as mulheres não seria possível, em razão de suposta violência perpetrada às transexuais. E ainda, que seria viável a criação de ala LGBT num presídio feminino.

[...] se colocar a gente numa cadeia de mulher, vai ser muito mais perigoso do que aqui, sabe porque? Às vezes, as mulheres vão querer ficar com a gente, abusar da gente porque é homem e tem o órgão, às vezes as mulheres vão querer ser melhor do que a gente, porque tem órgão feminino, coisa que a gente deveria ter, entendeu? Então fica essa coisa, esse impasse.

[...] acho que daria certo um raio para travesti e transexual, mas dentro do presídio feminino entendeu? Um raio separado, mas que fosse dentro da cadeia de mulher, tipo assim, três raios de mulher um só de travesti, aí sim poderia dar certo, porque o que entrasse para as mulheres, ia entrar para a gente, não ia ser barrado nada, talvez desse certo.

Desta forma, a orientação do Departamento Penitenciário Nacional quando aborda a inclusão de mulheres transexuais e travestis em unidades prisionais femininas é de que a custódia dessa população seja realizada em espaço de vivência específico, separada das demais presas.

Neste sentido, apresenta Ferreira (2018, p. 206):

Sobre essa questão, é importante explicar que não advogamos pela ideia de que as mulheres trans e travestis deveriam cumprir penas em casas prisionais femininas em todos os casos, quer dizer, como uma conclusão decorrente de nossa crítica ao modelo biologicista que tem sido adotado. Desde a nossa perspectiva, um modelo de tratamento penal que respeita as identidades de gênero trans deve, também, comportar a possibilidade de “atender a individualização da pena, algo estabelecido na Lei de Execução Penal (LEP) brasileira e que corresponde a premissa de que cada pessoa privada de liberdade terá suas demandas individuais compreendidas e atendidas.

No Estado de São Paulo, a Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo (SAP) através da Resolução SAP – 11, de 30 de novembro de 2014, que trata da atenção à travestis e transexuais no âmbito do sistema penitenciário, determina que somente após a realização de cirurgia de redesignação sexual é que a presa transexual poderá ser inserida no convívio comum com as demais internas na unidade prisional feminina.

Já no Estado do Espírito Santo, com um olhar voltado para os privados de liberdade LGBT+, inaugurou no ano de 2021, unidade penal específica para população LGBT+.

O Estado ainda, editou a Portaria 473-R datada de 25 de maio de 2021, que institui e regulamenta os parâmetros e procedimentos para atendimento à população LGBTI+ em situação de privação ou restrição de liberdade no âmbito das Unidades Prisionais.

Quanto à Unidade Prisional especializada, trata-se da Penitenciária de Segurança Media II – PSME2 do Complexo de Viana, com capacidade para 296 (duzentos e noventa e seis) custodiados, conforme a Secretaria de Estado de Direitos Humanos.

De acordo com o Webinário “Ecos do Congresso – Pessoas LGBTI Privadas de Liberdade”, promovido pela Aliança Nacional LGBTI em 27/07/2021, foram apesentadas as particularidades da custódia de LGBTI+ na PSME2.

Percebe-se que a primeira unidade penal LGBT abriga presos(as) com condenação em regime fechado e semiaberto, bem como presos(as) provisórios(as). Que a unidade penal recebe pessoas privadas de liberdade vindas de outros estabelecimentos penais, mediante manifestação de vontade e condicionado a autodeclaração de identidade de gênero e/ou sexualidade.

Foi apresentado ainda, que quando incluídos na PSME2, os(as) internos(as) recebem atendimento psicossocial e são encaminhados às galerias, que são divididas por regime prisional e ainda, subdivididas por identidade de gênero e sexualidade.

E, em atenção às mulheres, “as presas autodeclaradas como lésbicas permanecem em unidades femininas do Estado”. (G1, 2021)

No evento virtual, foi abordado também, que é possibilitado às internas transexuais e travestis a manutenção do comprimento do cabelo, acesso a itens femininos e ainda, a realização do dia da beleza, onde é permitido o uso de prancha para cabelos e outros acessórios. Abordou-se também, a realização de visitas íntimas, independente de identidade de gênero e/ou sexualidade do parceiro.

Ainda nesse caminho, foi o Webinar: Unidade Prisional exclusiva para LGBTQIA+: uma alternativa viável?, promovido pela Comissão de Política Criminal e Penitenciária da Ordem dos Advogados do Brasil da Seccional de São Paulo, em 17/09/2021.

Abordou-se a situação de homens cisgêneros e heterossexuais, os quais buscando regalias e benesses passaram a se declarar LGBT+ para serem transferidos para penitenciaria LGBT do Complexo de Viana, sendo que para a concretização da referida transferência, basta autodeclaração de identidade de gênero e/ou sexualidade.

Tal situação vai ao encontro ao abordado por Sanzovo (2021) e do apresentado por Ferreira (2018, p. 218):

“(…) bem como a suspeita de que “homens heterossexuais” estariam assinando o termo de declaração de homossexualidade por perceberem que aquele espaço ofereceria algum privilégio, como não ser superlotado, ou pela possibilidade de estabelecerem relações afetivas sexuais com as travestis...”

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta esteira, os achados na presente pesquisa dão conta, por ora, que unidades penais LGBT são o ideal para a permanência de transexuais femininas e travestis no cárcere, em razão das especificidades da identidade de gênero e/ou sexualidade.

Da revisão bibliográfica abordada e da legislação apresentada, verifica-se a complexidade que envolve a questão de mulheres transexuais e travestis enquanto privadas de liberdade e o seu local de custódia.

De todo o apresentado e das problemáticas na alocação de transexuais e travestis em ambientes masculinos, seja pela violência suportada por essa população, e a supressão de direitos, bem como pela restrição no acesso a itens e signos femininos, entende-se que não é o ambiente ideal para a referida custódia, ainda que custodiadas em celas e/ou alas específicas.

Nesse mesmo sentido, entende-se também por ora, a inviabilidade da manutenção de presas transexuais e travestis em cárceres femininos, mesmo que em espaços totalmente separados das demais presas, conforme orientado pelo Departamento Penitenciário Nacional.

Desse modo, diante da possibilidade de criação de espaço único para as pessoas privadas de liberdade LGBT, como a Penitenciaria de Segurança Media 2 do Complexo de Viana no Espirito Santo, entende-se que seria o melhor cenário para a alocação de mulheres transexuais e travestis em privação de liberdade.

A afirmativa baseia-se, na possibilidade da garantia da segurança e assim preservação da vida, sendo garantidos todos os direitos, buscando possibilitar a socialização e atendimento às demandas e especificidades da identidade de gênero e/ou sexualidade.

REFERÊNCIAS

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Sobre o autor
Eduardo Morello Ferreira

Bacharel em Direito pela Universidade do Oeste Paulista – UNOESTE com especialização em Direitos LGBT+ pela Instituição Verbo Jurídico e, especialização em MBA em Política Criminal e Gestão Penitenciária pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo – UNASP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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