Como surgem as riquezas? Como o capitalismo sobrevive a tantos ciclos econômicos, mesmo quebrando vários indivíduos nesse processo?
Katharina Pistor, pesquisadora e professora alemã da faculdade de direito da universidade de Columbia nos EUA parte destas perguntas para desenvolver a sua tese de como a codificação do capital permite não apenas a criação de riquezas, mas também o monopólio dela por parte de alguns, os quais são intrinsecamente associados à existência de desigualdades.
No seu livro, The Code of Capital: How the Law Creates Wealth and Inequality, Pistor descreve como a codificação transforma bens em capital, e como advogados conseguem transformar qualquer bem em um capital que normalmente não seria convertido.
O argumento geral da autora é de que a codificação jurídica do capital é um processo engenhoso, sem o qual o mundo nunca teria atingido o nível de concentração de riqueza que existe hoje (PISTOR, 2019, p. 3). A autora pontua que não é o ativo em si, mas a sua codificação jurídica que protege o respectivo titular das flutuações da economia, conferindo longevidade à sua riqueza e criando desigualdades (PISTOR, 2019, p. 6 apud LOUREIRO, 2020).
Primeiramente, Pistor descreve a ideia de ativos (assets) nos quais ela trata suas ideias:
“I use the term “asset” broadly to denote any object, claim, skill, or idea, regardless of its form. In their unadulterated appearance, these simple assets are just that: a piece of dirt, a building, a promise to receive payment at a future date, an idea for a new drug, or a string of digital code. (PISTOR, 2019 p.2)”
Ou seja, um ativo pode ser uma casa, uma vaca, uma técnica, um objeto, mas esse bem por si só não tem valor. A valoração começa quando se codifica esse bem, quando ele é introduzido ao ordenamento jurídico, que é um recurso social, ou uma ferramenta social.
Dessa forma, a partir dessa criação social é que o indivíduo poderá afirmar que tal ativo é seu, e proteger dos outros. Para ela, isso ocorre através de certos privilégios (modules) que o ativo passa a ter após a codificação:
Prioridade: na disputa, ao garantir prioridade ou preferência (priority);
Durabilidade: temporalidade, pela sua permanência no tempo (durability);
Universalidade: no espaço, pelo caráter universal (universality);
Conversabilidade: na garantia de fungibilidade (convertibility).
Com a prioridade, é possível saber quem tem a maior prioridade sobre determinado bem. Um exemplo disso diz respeito à preferência de credores em um processo de falência. No ordenamento jurídico brasileiro tal ideia é permeada na lei de falência, em que há uma ordem de preferência de credores:
Art. 83. A classificação dos créditos na falência obedece à seguinte ordem:
I - os créditos derivados da legislação trabalhista, limitados a 150 (cento e cinquenta) salários-mínimos por credor, e aqueles decorrentes de acidentes de trabalho;
II - os créditos gravados com direito real de garantia até o limite do valor do bem gravado;
III - os créditos tributários, independentemente da sua natureza e do tempo de constituição, exceto os créditos extraconcursais e as multas tributárias;
IV - (revogado)
V - (revogado);
VI - os créditos quirografários, a saber:
a) aqueles não previstos nos demais incisos deste artigo;
b) os saldos dos créditos não cobertos pelo produto da alienação dos bens vinculados ao seu pagamento; e
c) saldos dos créditos derivados da legislação trabalhista que excederem o limite estabelecido no inciso I do caput deste artigo
VII - as multas contratuais e as penas pecuniárias por infração das leis penais ou administrativas, incluídas as multas tributárias;
VIII - os créditos subordinados, a saber:
a) os previstos em lei ou em contrato; e
b) os créditos dos sócios e dos administradores sem vínculo empregatício cuja contratação não tenha observado as condições estritamente comutativas e as práticas de mercado;
IX - os juros vencidos após a decretação da falência, conforme previsto no art. 124 desta Lei.
Com a durabilidade é possível entender por quanto tempo aquele bem tem validade, isso ajuda a dar confiança a um determinado ativo, a saber, um credor confia em receber um terreno como uma garantia, pois sabe que é um bem que perdura no tempo e é passado de geração para geração.
Outrossim, com a universalidade é possível entender que aquele determinado bem não só fará direito entre as partes, como também erga omnes.
Por fim, a conversibilidade, é uma garantia ao próprio dono do ativo, pois ele sabe que caso não tenha utilidade ou vontade de permanecer com ele, poderá converter em pecúnia e vender a terceiro interessado.
Tais privilégios aos ativos permitiram a criação de riqueza no ocidente, tendo em vista que garantiram a segurança em trocas comerciais.
Por fim, Katharina Pistor convida a refletir sobre um papel central do advogado nesse processo, pois ele não apenas ajuda o cliente a se adequar ao código, como também reflete sobre a função deste e ajuda a delimitar o seu sentido, suas fronteiras, gerando riqueza para o seu cliente e uma possível desigualdade perante o mercado.
Para exemplificar isso, pensemos em um bem imaterial, como uma técnica, diferente de um bem real, como uma casa, a qual tem um limite de moradores. Uma técnica não possui tal barreira física, contudo, com a codificação da propriedade intelectual, essas “cercas” puderam ser impostas a terceiros.
Pensemos na técnica de catalogação de um gene responsável pelo câncer de mama. A primeira empresa que conseguiu o feito foi a Myriad Genetics, que utilizou da codificação jurídica para proteger sua metodologia de catalogação da reprodução de outras companhias, por meio da patente e proteção da propriedade intelectual em 1994.
A partir disso, escreveram cartas para médicos e outras empresas, proibindo-os de utilizarem suas próprias técnicas para analisar tal gene, obrigando-os a adotar apenas o kit teste deles para essa averiguação, porque tinham a patente e o direito de monopolização.
Desta feita, foram processados por médicos e outras empresas de pesquisa genética, pois a Myriad Genetics estava, de fato, patenteando o DNA humano. O deslinde dessa história ocorreu em 2013 com a derrubada da patente em uma decisão da suprema corte dos EUA.
Ocorre que durante esses 19 anos, a Myriad Genetics criou uma vasta base de dados de código genético de clientes e aperfeiçoamento da técnica, o que fez surgir outra riqueza, pois o teste deles é o mais confiável devido a esse banco de dados.
Assim, Pistor demonstra que o conhecimento e proteção jurídica conseguido através de advogados foi o suficiente para gerar outra riqueza que não existia, o banco de dados. Nesse processo, os advogados criaram riqueza e desigualdade.
Dessa forma, queda-se a análise sobre o papel do direito, principalmente do advogado, para a regulamentação de ativos, bens, e a geração de riqueza, trazendo a baila a visão crítica que o profissional deve ter no seu papel com a prestação de um serviço que gere tamanho impacto à sociedade.
Referências:
Decodificando o código do capital de Katharina Pistor a partir do Brasil, Série direito e desenvolvimento, v.4;
PISTOR, Katharina. The Code of Capital. Princeton: Princeton University Press, 2019;
New Economic Thinking. Coding land and ideas/ The law of capitalism. YouTube, 26/10/2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yqTLfJS2yiE&t=12s