Por Ricardo Russell Brandão Cavalcanti
Defensor Público Federal. Professor Efetivo do IFPE. Mestre e Doutor em Direito. Especialista em Ciência Política.
Introdução
“Entidades pedem ao governo fim de incentivo à privatização de presídios”Fonte: https://www.terra.com.br/nos/entidades-pedem-ao-governo-fim-de-incentivo-a-privatizacao-de-presidios,ae364beb42abdaacadc78516866e57867b1ze37g.html1 é a notícia mais recente no meio jurídico e político em decorrência do Decreto 11.498/2023, que prevê incentivos de financiamentos para o Sistema CarcerárioDecreto 11.498/2023: Art. 1º O , passa a vigorar com as seguintes alterações: § 1º (...) X - segurança pública e sistema prisional;2. Desse modo, o questionamento que surge é se é juridicamente viável e razoável a utilizado de Parcerias Público-Privadas para a construção e manutenção de presídios e penitenciárias.
A resposta ao referido questionamento é o que se pretende fazer no presente estudo por meio de uma pesquisa descritiva e exploratória.
Das Parcerias Público-Privadas
De antemão, não podemos confundir as Parcerias Público-Privadas com a privatização, que se dá quando o Poder Público, em virtude de um desinteresse em continuar prestando uma determinada atividade, transfere os ativos ao setor privado, ainda que estabelecendo alguns compromissos acerca da prestação dos serviços3, ou seja, existe a privatização quando o Poder Público vende para a iniciativa privada uma empresa estatal, o que deve ser feito por meio de processo seletivo que dê igual oportunidade a todas e todos que tenham interesse em adquirir a pessoa jurídica estatal e a prestar o serviço e também buscando garantir que a empresa que adquirir os ativos continue a prestar com qualidade e de forma universal o serviço até então prestado pelo Poder Público, principalmente ao menos favorecidos que não possuam condições de arcar com altos valores para poderem usufruir do serviço a ser prestado.
Desse modo, na privatização existe, a priori, um caminho sem volta, pois nela efetivamente há um repasse do Poder Público de parte do seu patrimônio para a iniciativa privada, só voltando o serviço a ser público se a privatização for anulada ou se o Poder Público readquirir os ativos que foram vendidos para a iniciativa privada por meio de outro contrato, diferentemente do que acontece nas Parcerias-Público Privadas, onde existe um contrato público com prazo de validade, continuando o Poder Público a ser o titular do serviço, repassando apenas temporariamente a sua execução.
Além disso, na privatização o Poder Público se exime de sua responsabilidade quanto ao serviço que estava sendo por ele prestado, pois ele passa a ser de responsabilidade da pessoa privada que adquiriu os ativos, diferentemente da Parcerias Público-Privada, onde o Poder Público continua sendo titular do serviço público objeto da PPP e continua responsável pelo serviço em conjunto com o parceiro privado.
Desse modo, consideramos pertinente quando Laure Athias afirma que a Parceria Público-Privada seria uma terceira via entre a prestação direta do serviço público pelo próprio Poder Público e a privatização4ou ainda quando Paula Osório e Luís Todo Bom afirmam que as PPPs seriam ao mesmo tempo uma alternativa à forma tradicional de contratação do Estado e uma alternativa à privatização5. Nesse sentido, Ricardo da Costa Nunes e Selene Peres Nunes, também considerando as PPPs como uma terceira via, mencionam que o seu uso é uma opção para governantes críticos da desestatização, tendo em vista existir, na ótica dos referidos autores, uma visão popular no sentido de as PPPs não estarem tão relacionadas a uma visão liberal6.
Visto isso, no Brasil existem apenas dois tipos de PPPs previstos na legislação, quais sejam: as concessões administrativas e as concessões patrocinadas.
A concessão patrocinada seria uma forma de concessão de serviço público que pressupõe a cobrança de tarifa dos usuários com o acréscimo de uma contrapartida ao parceiro privado paga pela Administração7, ou seja: existe um subsídio pago pelo Poder Público8, como comumente acontece com o serviço realizado pelos metrôs, no qual os passageiros pagam suas passagens, mas o valor cobrado não é suficiente para remunerar o parceiro privado, existindo, assim, uma contrapartida do Poder Público.
Desta feita, Fernando Vernalha Guimarães afirma que a Parceria Público-Privada na modalidade concessão patrocinada pode vir a ter duas finalidades, quais sejam: viabilizar projetos que não são autossuficientes e calibrar o nível de risco que está envolvido em um projeto de infraestrutura o tornando mais atraente para o parceiro privado9.
Quanto à outra modalidade de Parceria Pública-Privada no Brasil, a concessão administrativa, nela a Administração Pública é a própria usuária direta ou indireta do serviço prestado, remunerando o parceiro privado pela prestação do serviço10, o que é justamente o caso dos presídios ou penitenciárias onde há uma PPP, uma vez que, naturalmente, não há qualquer pagamento por parte dos detentos nem muito menos uma prestação de um serviço público para eles, haja vista que os presidiários não são hóspedes do Poder Público e sim custodiados11, o que implica em o próprio Poder Público ser usuário indireto do serviço, conforme será aprofundado no próximo tópico.
PPPs no Sistema Prisional
Na área de Justiça e segurança pública, as Parcerias Público-privadas são utilizadas em alguns países na construção de presídios ou de penitenciárias, realidade muito presente nos Estados Unidos, onde se é comum passar para a iniciativa privada a gestão global dos presídios12.
A título comparativo, a legislação portuguesa dá margem para a utilização de PPPs para a finalidade acima13, algo que talvez venha a ser ampliado com o tempo como solução para a situação de superlotação na qual se encontram mais da metade das prisões portuguesas, conforme levantamento da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Psicologia da Justiça14. Dentro da realidade supramencionada, em 2004 foi criada em Portugal, por meio do Decreto-Lei n.º 145/2004, a primeira Parceria Público-Privada Portuguesa na área prisional, no caso, o Estabelecimento Prisional Especial de Santa Cruz do Bispo, no Concelho de Matosinhos, destinado à população reclusa feminina, no qual o Estado ficou com as funções de segurança e coordenação do tratamento penitenciário e o parceiro privado com as funções de mera gestão, como “manutenção e conservação de instalações e equipamentos, lavandaria e engomaria, restauração, cantina, assistência médico-sanitária, apoio ao tratamento penitenciário, creche, assistência religiosa e espiritual, ensino e formação profissional”15.
No Brasil, por outro lado, apesar da lei nacional das Parcerias Público-Privadas não prever expressamente a referida possibilidade, existem em âmbito estadual alguns presídios e algumas penitenciárias construídos por intermédio do instituto em testilha e outros ainda em construção, existindo discussões acerca da adoção do modelo também para os presídios federais16.
Assim, a lógica de mencionado Decreto 11.498/202 é que a adoção do modelo de PPPs no Brasil pode vir a ser uma solução para a melhora da situação dos presídios brasileiros, tendo em vista que eles, tal como é público e notório, estão extremamente lotados, repletos de rebeliões e mortes e com grande histórico de violação aos Direitos Humanos, sendo reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal-STF Brasileiro um verdadeiro “estado de coisas inconstitucionais”17 no sistema carcerário brasileiro. Nesse sentido, importante se faz o relato de um antigo detento do Estado de São Paulo mencionado por Bruno Paes Manso no seu mais recente livro: “O sistema prendia, mas não soltava nem respeitava as regras da execução da pena. “A lei de execução penal tem 204 artigos. Nem metade deles é cumprida”. O governo cria seus próprios monstros”18.
Entretanto, a opção das PPPs para o problema em questão deve ser feita com muita cautela, pois existem alguns autores de Direito Administrativo defendendo a impossibilidade de se utilizar das PPPs para a construção de presídios, sob o argumento de se tratar de uma delegação de uma atividade exclusiva do Estado19.
Assim, estamos diante da tradicional discussão sobre a possibilidade ou não de delegação do Poder de Polícia e nosso entendimento é o de que de que são delegáveis os atos do presídio e das penitenciárias de mera gestão administrativa, devendo continuar com o Estado o Poder de Império diante dos custodiados.
Desse modo, a assistência meramente material ao preso, como o fornecimento de vestuário, alimentação e produtos de limpeza, bem como a própria construção do presídio, podem ser delegados, o mesmo não acontecendo com as questões envolvendo execução penal, como, por exemplo, atividade jurisdicional, de segurança e organização do trabalho dos presos20, que devem ficar sobre o encargo do Juiz de Execução Penal que tem atribuição no local de jurisdição do presídio, sendo uma questão fora das próprias atribuições do próprio Poder Executivo, estando inserida como uma atividade-fim do Poder Judiciário.
A própria fiscalização dos presos deve ser realizada por agentes de Estado, no caso, pelos outrora agentes penitenciários e agora policiais penais no Brasil21, cujas atribuições previstas em lei não podem ser delegadas para a iniciativa privada.
Outrossim, o contrato a ser realizado com o parceiro privado não pode, tal como vem se aventando22, ser realizado de forma que se estimule o encarceramento em massa por meio de cláusulas que exijam um valor mínimo de pessoas presas e um pagamento que se vincule ao número de pessoas encarceradas, pois as referidas possibilidades estimulam a continuidade na prisão e já está mais do que evidente que um maior encarceramento não é a solução, principalmente em um país no qual a maior parte da população carcerária é pobre e negra.
Considerações finais
Buscar alternativas para a degradante situação do sistema carcerário brasileiro é uma medida extremamente importante, pois nossos presídios e nossas penitenciárias são verdadeiras masmorras e não permitem qualquer tipo de ressocialização.
A utilização das PPPs, que se diferem da privatização, para resolver o referido problema é uma opção juridicamente viável no Brasil e que deve ser debatida por toda a população. Entretanto, o uso das PPPs para o fim em comento não pode ser feito de forma açodada, mas sim mediante um amplo debate com a sociedade civil e por meio de contratos públicos que não estimulem o encarceramento em massa.
Enfim, não podemos ficar presos em um único entendimento de que a PPP para o Sistema Carcerário é uma boa ou uma má opção, mas sim devemos debater e estudar mecanismos para que a referida possibilidade seja realmente eficaz e de acordo com o interesse público primário. O que não podemos, em hipótese nenhuma, é manter as penitenciárias e os presídios brasileiros na situação atual.
REFERÊNCIAS
GOMES, Andréia de Oliveira1 RICCI, Camila Milazotto. Aspectos negativos e positivos da privatização dos presídios brasileiros, Artigo apresentado no 4º Simpósio de Sustentabilidade e Contemporaneidade nas Ciências Sociais organizado pela COOPEX-Coordenação de pesquisa e extensão do Centro Universitário da Fundação Assis Gurgacz, 2016. Disponível em https://.fag.edu.br/upload/contemporaneidade/anais/593
GOMES, Conceição Et al. Parcerias Público e Privadas e Justiça: uma análise comparada de diversas experiências. Coimbra: CES, 2007.
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LAURE, Athias. Responsabilité politique et design contractuel des Partenariats Public Privé, Revue économique, V 60(4) (2009), pp.1011-1021.
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MANSO, Bruno Paes. A fé e o fuzil: crime e religião no Brasil do Século XXI. São Paulo: Todavia, 2023.
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OSÓRIO, Paula; BOM, Luís Todo. Parcerias Público-Privadas em Angola, Revista de Economia Global e Gestão, V 13, N 2 (2008). pp.27-41.
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SILVEIRA, Alfredo Maciel da; BORGES, Luiz Ferreira Xavier. A definição de PPP-Parcerias Público Privado no Brasil, Revista de negócios, N 8 (2003), pp.1-16. Disponível em https://proxy.furb.br/ojs/index.
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GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Parceria Público-Privada, 2ªed, São Paulo: Saraiva. 2013.p.91.︎
Lei Brasileira11.079/2004Art. 2o: § 1o Concessão patrocinada é a concessão de serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, quando envolver, adicionalmente à tarifa cobrada dos usuários contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado.︎
Idem, ibidem.p.101.︎
Lei Brasileira 11.079/2004Art. 2o: § 2o Concessão administrativa é o contrato de prestação de serviços de que a Administração Pública seja a usuária direta ou indireta, ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação de bens.︎
GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Parceria Público-Privada, 2ªed, São Paulo: Saraiva. 2013.p.180.︎
GONÇALVES, Pedro Costa. O exercício de Poderes Públicos de Autoridade por Entidades Privadas com Funções Administrativas, Almedina: Coimbra, 2008.p.73.︎
GOMES, Conceição Et al. Parcerias Público e Privadas e Justiça: uma análise comparada de diversas experiências. Coimbra: CES, 2007.p.302.︎
Decreto-Lei Português 145/2004 Artigo 2.º Âmbito e mecanismos de gestão 1 - As funções específicas do Estado relativas à segurança, coordenação do tratamento penitenciário e articulação com os tribunais e demais órgãos e serviços do Estado são exclusivamente asseguradas pela Direcção-Geral dos Serviços Prisionais. 2 - As actividades de apoio à gestão prisional, relativas à logística e prestação de serviços à população reclusa, tais como as de manutenção e conservação de instalações e equipamentos, lavandaria e engomaria, restauração, cantina, assistência médico-sanitária, apoio ao tratamento penitenciário, creche, assistência religiosa e espiritual, ensino e formação profissional, podem ser confiadas a entidades privadas, nos termos que vierem a ser estabelecidos por via de protocolo, acordo ou outra forma de colaboração, a celebrar pela Direcção-Geral dos Serviços Prisionais e sujeito a homologação pelo Ministro da Justiça.︎
Possuímos conhecimento das referidas discussões em decorrência da nossa atuação como Defensor Público Federal no Brasil.︎
ACÓRDÃO do Supremo Tribunal Federal, ADPF 347 MC/DF, Disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo798.htm.︎
MANSO, Bruno Paes. A fé e o fuzil: crime e religião no Brasil do Século XXI. São Paulo: Todavia, 2023, p.173.︎
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GOMES, Andréia de Oliveira1 RICCI, Camila Milazotto. Aspectos negativos e positivos da privatização dos presídios brasileiros, Artigo apresentado no 4º Simpósio de Sustentabilidade e Contemporaneidade nas Ciências Sociais organizado pela COOPEX-Coordenação de pesquisa e extensão do Centro Universitário da Fundação Assis Gurgacz, 2016. Disponível em https://.fag.edu.br/upload/contemporaneidade/anais/593
Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:705185dbab.pdf. p.7.︎
MÂNICA, Fernando Borges; BRUSTOLIN, Rafaella. Gestão de Presídios por Parcerias Público-Privadas: uma análise das atividades passíveis de delegação, Rev. Bras. Polít. Públicas, V 7, N 1 (2017), pp.304-320. p.307.︎
No âmbito federal no Brasil a carreira de agentes penitenciários é regulamentada pela lei 10.693/2003. Além dessa lei, cada estado-membro prevê em sua esfera o cargo de agente penitenciário estadual. Frise-se, entretanto, que todas essas leis, inclusive a federal, vão ter que se adaptar ao novo Texto Constitucional, pois a Emenda Constitucional 104 de 2019 mudou o nome dos agentes penitenciários para Policiais Penais nos termos do Art. 3º do art. 144.︎
Fonte: https://www.terra.com.br/nos/entidades-pedem-ao-governo-fim-de-incentivo-a-privatizacao-de-presidios,ae364beb42abdaacadc78516866e57867b1ze37g.html︎