RESUMO: 1. O estudo parte da inicial compreensão de que tanto normas-regra como normas-princípio possuem natureza prima facie, vez que são derrotáveis por outras normas. O atributo da derrotabilidade para as normas-princípio assumindo relevo ainda maior, pois será a norma em sentido contrário que findará por determinar qual parte da realidade será regida pelo estatuído neste ou naquele princípio conflitantes. 2. Na sequência, explicita-se a necessidade de a ciência jurídica tomar em consideração a unidade do direito como ponto de partida para se chegar a todas as conclusões decorrentes da respectiva estrutura (antecedente, operador deôntico, estatuição), daí se podendo extrair os atributos normativos, dentre os quais o da derrotabilidade, que se apresenta e merece distinta consideração no desenvolvimento de todo o presente trabalho. 3. Diante do relevo que representam as ideias de Robert Alexy no cenário jusfilosófico, faz-se uma análise crítica de seu modelo de suporte fático, notadamente o suporte fático em sentido amplo, a se concluir que o mesmo não passa pelo teste da individuação normativa, vez que tal conceito faz associar o suporte fático em sentido estrito (este sim composto apenas por elementos da norma individual) com as restrições a um dado direito fundamental; o que se compreende não ser correto, já que, analiticamente, não é possível se extrair a inteligência de uma norma a partir de elementos de outra. 4. Em seguida, é feita análise da metodologia utilizada em teorias externas, nas quais se encontram méritos, por exigirem a ponderação entre normas mediante discurso jurídico argumentativo, e por enxergarem a norma individual como ensejadora de posições jurídicas prima facie, tomando-se em análise as respectivas restrições, até se chegar a um direito em definitivo após a solução dos conflitos normativos que se apresentam. 5. Sendo de concluir que a correta leitura normativista aponta para o conjunto de normas e das respectivas colisões, vistos os direitos fundamentais como situações jurídicas definitivas a partir da criação de normas de decisão.
Palavras-chave: Direitos fundamentais, prima facie, derrotabilidade, situação jurídica.
INTRODUÇÃO
O presente ensaio parte da consideração de que o ordenamento jurídico se encontra permeado pelas mais variadas normas as quais, por pertencerem a esta mesma ordem jurídica, encontram-se em latente estado de colisão com os outros tantos enunciados normativos.
Deste estado e situação de qualquer norma no universo do correspondente ordenamento jurídico, a Ciência Jurídica extrai de seu material de trabalho – a norma enquanto unidade do Direito – a propriedade denominada derrotabilidade, cujo significado consiste na razão de o preenchimento dos pressupostos de aplicabilidade de um enunciado (o antecedente) nem sempre significar seu concreto emprego para um fato jurídico em específico.
A derrotabilidade, assim, a significar que as normas jurídicas em sua singularidade, inclusive as normas atributivas de direitos fundamentais, somente têm aplicação meramente prima facie. Ou seja, ensejam a estatuição de uma posição jurídica de vantagem em favor dos sujeitos a que se destina, porém em caráter não definitivo.
A aplicabilidade definitiva a depender da verificação de aplicabilidade potencial de outra norma para um caso, e – a depender da solução de eventual conflito normativo – da atribuição de qual norma deverá reger a situação posta, e então poder gerar os efeitos descritos na estatuição do enunciado correspondente, de acordo com deôntico programado.
Este trabalho, em suma, encontra-se iluminado pelo interesse científico em demonstrar o equívoco da compreensão jurídica (doutrinária e jurisprudencial) de se pretender estabelecer, antecipadamente e antes da verificação de qualquer colisão normativa, uma suposta essencialidade de um núcleo intangível em normas de direitos fundamentais.
O desiderato maior – baseado no predicado da derrotabilidade das normas jurídicas – será o de demonstrar que também as normas de direitos fundamentais estão fadadas a, em casos específicos e diante de peculiares circunstâncias fáticas, cederem lugar à incidência de outras normas de idêntica natureza fundamental, funcionando as normas, uma em relação às outras, como recíprocos limites ou restrições.
Partir-se-á do estudo da individuação normativa, da exposição da estrutura de uma norma jurídica completa, mormente dos elementos que a compõem, e do modo como estes atuam, sob a perspectiva eminentemente normativista.
Do estudo estrutural da norma jurídica individualizada, pretende-se demonstrar que qualquer norma de direito fundamental possui, como já expressado, uma consequência jurídica meramente prima facie.
Por mais nobre que seja o bem jurídico protegido por enunciado normativo de direitos fundamentais, poderá o mesmo vir a não reger juridicamente a determinada situação fática posta, em razão de não serem absolutos os direitos fundamentais.
De tais nortes científicos, abordando-se o acerto ou não da teoria alexyana sobre o suporte fático para direitos fundamentais; para então firmar a compreensão designadamente normativista para os direitos fundamentais, e notadamente para casos em que determinada condição disposta no antecedente de uma norma coincide com o antecedente de formulação normativa em sentido contrário, a redundar em colisão normativa que somente será transponível mediante detida e fundamentada ponderação, para então se estabelecer o direito em definitivo.
Mediante tal equacionamento normativo, direitos fundamentais enquanto situações jurídicas meramente prima facie – após várias etapas do percurso, desde a interpretação até a construção de uma norma de decisão – poderão ser tidos como situações jurídicas em definitivo. Conclusão que vêm a evidenciar o desacerto em se pretender, de antemão, estabelecer um núcleo ou conteúdo essencial para tais direitos, em vindo a ser cientificamente consideradas as propriedades e os componentes da unidade do Direito.
1. DIREITOS FUNDAMENTAIS: NORMAS-PRINCÍPIO, NORMAS-REGRA E PROCESSO DECISÓRIO
É de se adiantar que a derrotabilidade trata-se de atributo inerente a qualquer norma jurídica, tanto regra como princípio. Diante, porém, da primazia do uso de normas-princípio no quadro do pós-positivismo fundante do constitucionalismo moderno, relativo à centralidade dos direitos fundamentais, é por dever deixar assente algumas linhas do percurso evolutivo de tal espécie normativa, a fim de que o presente trabalho se funde em bases para a correta compreensão do fenômeno jurídico objeto de análise.
Quer-se dizer que, se é certo que caráter prima facie é comum às regras e aos princípios, não se pode deixar de mencionar que é notadamente em relação às normas-princípio, e às interentes colisões entre estas, onde se observa com maior frequência este fenômeno e suas implicações, das mais importantes para a filosofia contemporânea do Direito Constitucional.
Traçadas estas ligeiras premissas, para enfatizar tanto a normatividade como o caráter central dos princípios no constitucionalismo hodierno.
Desde que triunfa o Estado Constitucional de Direito1, a Constituição passa a ser o vetor do ordenamento jurídico, justamente por nela estarem contidos todos os valores de uma dada sociedade, transpostos aqueles para o corpo constitucional primordialmente sob forma de princípios constitucionais, tidos como autênticas normas jurídicas,2-3 estabelecendo a grande gama de Direitos Fundamentais.
De um jusnaturalismo onde os princípios serviam basicamente como inspiração de ideais de equidade e de justiça, sendo sua normatividade praticamente inexistente4-5, assiste-se a uma escalada até a atual quadra do Pós-Positivismo6, em que não mais se discute a normatividade dos mesmos.
Norma, nesta quadra, subdivide-se em regras e princípios7, estes como normas direta e/ou indiretamente aplicáveis, possuindo o diferencial de servirem de substrato para função interpretativa do Direito, justamente devido a sua hegemonia axiológica irradiante dentro do ordenamento jurídico8-9.
E como qualquer norma, os princípios, enquanto texto, somente mediante interpretação e análise concreta podem se tornar norma10-11. Porém, se para a interpretação de regras, o silogismo parecia evidenciar uma estatuição com menos dificuldade; para as normas-princípio, que hoje permeiam o ordenamento, a tarefa se torna mais complexa.
Esta complexidade inerente à aplicabilidade de uma norma-princípio acaba por se mostrar um ponto-chave para a compreensão de todo o estudo que se apresenta; a razão maior para que se apresente este capítulo em específico para esta questão.
A maior complexidade reside primordialmente na indeterminação da estrutura da previsão (antecedente) nas normas-princípio12. Ou seja, pelo fato de os princípios possuírem antecedentes, pelo modo como estão estruturados, que não especificam previamente todas ações humanas ou estados de coisas que, uma vez apresentados, despoletam sua consequência.
Os princípios possuem, em razão desta estrutura da previsão, uma quantidade ilimitada de condições disjuntivas13, ainda não conhecidas até a efetiva interpretação para um caso em específico.
Considerando que os conflitos normativos são desencadeados quando há sobreposição de dois antecedentes normativos14, a circunstância da extensividade das condições dos antecedentes nas normas-princípio faz com que estas normas estejam muito mais vulneráveis aos conflitos normativos do que normas-regra, já que estas últimas possuem previsão que especifica condutas ou estados que ensejam a estatuição15.
Então, embora seja correta compreensão de que tanto normas-regra como normas-princípio possuem natureza prima facie – já que ambas são derrotáveis por outras normas16 –, o atributo da derrotabilidade para as normas-princípios assume relevo ainda maior, pois será a norma em sentido contrário que findará por determinar qual parte da realidade será regida pelo estatuído neste ou naquele princípio conflitantes. Ou seja, a norma em sentido contrário acaba por determinar onde pára a consequência de outra norma-princípio17, a se demonstrar o quão importante para o Direito se apresenta o estudo da derrotabilidade das normas e a consequente compreensão de sua natureza prima facie.
Eis a importância deste prévio enfoque para, primeiro, assumir e firmar a indiscutível normatividade dos princípios (ao lado das regras), servindo o apanhado histórico-evolutivo para fundar a constatação; em seguida, trazendo-se luzes para a importância da compreensão da derrotabilidade das normas, com especial ênfase para o processo exegético que envolve normas principiológicas, em face de suas propriedades estruturais que propiciam as tantas colisões normativas com todas as inerentes circunstâncias, todas fundamentais para a Ciência Jurídica.
2. INDIVIDUAÇÃO NORMATIVA E DERROTABILIDADE
Cabe ao investigador e ao intérprete, antes de se ater às propriedades verificáveis em normas jurídicas – antes mesmo de sua leitura, de sua verificação semântica e previamente a qualquer interpretação – dispor-se a deter na compreensão daquilo que é o elemento-base da Ciência Normativa: a norma jurídica.
Somente atendo-se ao elemento nuclear do Direito, podendo-se compreender suas propriedades e atributos. Necessário, pois, compreender-se a norma, para sem seguida proceder à análise da derrotabilidade.
O problema da individuação normativa consiste propriamente em se saber como o direito se encontra dividido, quais são suas unidades básicas. Diante da relevância do assunto, afirma-se ser esta a tarefa primeira para filósofos do direito, cabendo a estes decidir quais seriam os princípios da individuação, a partir dos quais se torne possível separar, em unidades, o material normativo pressuposto como válido, tarefa sem a qual sequer seria possível a compreensão de um sistema jurídico18.
Quanto à individuação normativa, muito se discutiu em décadas, destacando-se no ponto o acerto da compreensão alcançada de ser o dever a principal preocupação do direito; sendo a sanção existente simplesmente para garantir o implemento do dever.
Credita-se, ao direito e às normas jurídicas, a função de servir como diretivas socialmente obrigatórias, e que, não seguidas, dariam ensejo a uma resposta19. O dever ser, no sentido de um discurso diretivo, e não o conteúdo de um discurso meramente indicativo, seria então o traço distintivo de uma norma20.
As normas se configurariam, pois, de forma a servirem de razões para a conduta, servindo as razões tanto para explicar determinado comportamento como para guiá-lo.
O direito, então, seria configurado por um conjunto de normas, estas como um sentido de dever ser e como a unidade da atividade científica; a norma sendo, destarte, a unidade métrica do direito, a partir da qual este último se organiza e da qual se extrai as correspondentes proposições da ciência jurídica21.
Ter-se-ia a norma jurídica completa quando a proposição normativa possui “antecedente que inclua todas as condições de cuja verificação o consequente depende”, sendo esta a completude relevante; descartando-se para tanto as condições de validade, pois fatos relativos à validade somente obliquamente seriam condições do consequente enquanto conclusão de um silogismo, de modo que a completude da norma não dependeria da exposição de condições de validade22.
Por sua vez, a norma encontra-se prevista, enquanto estrutura linguística, por meio de proposições normativas, das quais se extrai o sentido do dever ser nelas expresso.
Partindo da consideração de que a norma jurídica possui uma natureza deôntica, tal natureza encontra-se intrinsecamente associada à ideia de uma consequência referente ao cumprimento do dever ser normativo. Da natureza deôntica, logo consiste a norma em uma ordenação em determinado sentido23, este sentido podendo ser o de ordenar, permitir ou proibir certas condutas humanas24.
De sua parte, da natureza deôntica e ordenadora da norma, há se constatar ser a mesma ainda hipotética, por depender de determinadas condições. A hipoteticidade levando a uma ideia de eventualidade, já que o dever ser dependeria da verificação de pressupostos. Por fim, a norma jurídica teria ainda a propriedade da generalidade, vista como indeterminabilidade dos destinatários a quem se dirige25.
De tais propriedades, extrai-se a maneira como se encontra estruturada uma norma jurídica. Ou seja, toda e qualquer norma se encontra construída no esteio do sentido de sua natureza deôntica, consistente em uma ordenação, a ser imposta mediante a configuração hipotética de verificação de determinadas condições, dirigida a sujeitos indeterminados.
A estrutura normativa, assim, assenta-se na arrumação de uma previsão, de um operador deôntico e de uma estatuição em uma formulação normativa. De tal estrutura, podendo-se depreender todas as propriedades acima aludidas26.
No atual estágio do desenvolvimento da ciência jurídica, existe certo consenso no sentido de que as formulações normativas seriam estruturas triádicas, composta pelos elementos previsão, operador deôntico e consequência. Sendo assente que formulação normativa não se confunde com norma; pois enquanto a primeira se configura com a estrutura linguisticamente formulada, a segunda consiste no resultado extraído da primeira27.
A partir de tal premissa, há de se admitir que uma formulação normativa nem sempre expressa uma norma considerada completa, e outras vezes pode-se detectar a existência de mais de uma norma em um só enunciado normativo28.
Pressupondo que os grandes problemas relacionados à estrutura de uma norma jurídica completa dizerem respeito à previsão, é de advertir não fazerem parte do antecedente normativo nem condições de validade; nem as condições comuns de aplicação; nem muito menos as condições negativas29-30.
Norma jurídica seria, assim, uma unidade deôntica contendo apenas as suas condições positivas, em particular de aplicabilidade. A par de não fazerem parte da previsão as condições de validade e as condições comuns (por não serem requisitos de que dependem a consequência ou estatuição), merece especial ênfase a afirmação do jusfilósofo de Lisboa de que não compõem a previsão as condições negativas31.
Seriam condições negativas tudo o que evita a consequência prevista. São negativas, portanto, não por estarem expressas por meio de uma negação; mas por inibir a consequência. Condições negativas não fazem parte do antecedente exatamente porque este não comportar invalidadores normativos, estes devendo ser vistos como exteriores à norma que venha a ser vencida. Ou seja, uma condição negativa – que pode vir a impor a derrota de determinada norma – somente poderia fazer parte de uma unidade normativa distinta.
Algo diferente, porém, é a distinção entre condições positivamente formuladas daquelas formuladas com um tipo de negação. O que importa, afinal, é que tanto positiva como negativamente formuladas as condições, podem as mesmas funcionar como condições tanto positivas como negativas, a depender da derrotabilidade em causa32.
Associado à ideia de condições negativas, cabe destacar que a previsão realiza outra tarefa de suma importância, qual seja a de criar não-condições, ou seja tudo aquilo que não pode levar a uma consequência jurídica prevista no enunciado. Sendo certo que as não-condições são indispensáveis para a própria condicionalidade da norma33.
Assim, por estas anotações, resta demonstrada a importância e as tarefas desempenhadas pela previsão do enunciado. A mais evidente a de se configurarem as condições da previsão como tudo aquilo que é necessário para que ocorra a consequência; de sorte que soluções jurídicas dependeriam, fundamentalmente, da escolha dos antecedentes nas formulações normativas.
Sendo primordial constatar, com isso, que não existe incompatibilidade entre efeitos jurídicos se duas ou mais normas não compartilham de iguais condições de aplicabilidade, sendo este ponto crucial para constatar que a existência de conflitos normativos depende exatamente da sobreposição dos antecedentes das normas colidentes34.
Traçados os parâmetros básicos acerca da estrutura da norma, como núcleo de um sistema jurídico, nos capítulos seguintes já se poderá averiguar uma das propriedades mais importantes e que se trata do objeto principal do presente ensaio jurídico: a derrotabilidade.
3. DERROTABILIDADE E A NATUREZA PRIMA FACIE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Sentadas as premissas metodológicas a definirem o conteúdo do material normativo, pode-se dispor a respeito da propriedade inerente a qualquer norma do ordenamento jurídico, a derrotabilidade, da qual se depreende que o preenchimento dos pressupostos contidos no antecedente de um enunciado normativo não enseja, necessariamente, a aplicabilidade do mesmo.
Quer-se dizer, traduz-se a derrotabilidade na possibilidade de exclusão da consequência jurídica como um resultado efetivo, face à possibilidade de ser este resultado excepcionado por comando normativo diverso35.
A percepção de tal propriedade normativa é extraída do próprio percurso a ser percorrido pelo exegeta quando diante a análise uma situação jurídica. Qual seja, deve partir de cada uma das normas envolvidas; passando pela determinação semântica das mesmas; quando então cabe a verificação de quais normas podem ser aplicáveis ao caso e, resolvendo o potencial conflito, chegar-se ao momento da construção de uma norma de decisão36.
A própria e mera eventualidade de uma norma – aparentemente aplicável – vir a ser vencida por outra em sentido diverso, deixa evidente o atributo de se trata.
A propriedade da defeasibility ou derrotabilidade das normas de direitos fundamentais, esta explica a constatação de a norma garantidora dever ser interpretada apenas como uma proteção prima facie, dependendo a proteção definitiva de um passo seguinte, qual seja a verificação de prevalência ou não de restrições oriundas de uma norma em sentido contrário37.
A se enfatizar, por seu turno, que a ideia de que seja possível a admissão da existência de normas derrotáveis no direito mostra-se completamente compatível com as orientações do positivismo jurídico38.
A esta propriedade, Herbert L.A Hart39 já fazia menção, a defender que, para além do fator linguagem ou da vagueza ou da textura aberta do direito, pode advir de algo além, qual seja da incapacidade humana de prever todas as possíveis combinações de circunstâncias que o futuro pode vir a deparar. Problemas de aplicação que somente podem ser resolvidos quando surgem concretamente, para além da mera dedução40; já se falando desde então na ideia de peso, que variaria caso a caso, conforme os interesses em conflito41.
É de se compreender que, enquanto diante apenas de proposições normativas, somente é possível a identificação de posições jurídicas defensáveis com características nada além que prima facie. O resultado concludente, contudo, é somente alcançado, uma vez clarificado o significado normativo-linguístico à luz do espectro de possíveis interpretações; e mostrando-se necessária uma avaliação dos enunciados passíveis de aplicação, guiado por critérios extraídos do sistema normativo, sob enfoque do posto no caso concreto, cuja resolução requer sempre uma decisão entre as alternativas abertas e de acordo com as singularidades postas.42
Portanto, observa-se que haveria, em qualquer situação jurídica, um dever/direito não concludente ou prima facie, já que vencível; e por outro lado o dever/direito tido como concludente ou final, sendo este o que resolve a questão, tornando o que era uma posição jurídica de vantagem em situação jurídica em concreto regida pelo direito43.
Anote-se, uma vez mais, que a natureza prima face é comum a qualquer espécie normativa, abrangendo, pois, tanto regras como princípios, já que ambos são derrotáveis por outras normas44.
O certo, porém, é que atributo da derrotabilidade para as normas-princípios assume relevo ainda maior, pois será a norma em sentido contrário que findará por determinar qual parte da realidade será regida pelo estatuído neste ou naquele princípio conflitantes45.
Ou seja, a norma em sentido contrário acaba por determinar onde para a consequência de outra norma-princípio46, pois os princípios – diversamente das regras – possuem o diferencial quanto à estrutura de seu antecedente, possibilitando uma grande extensão de condições disjuntivas não limitadas47, o que enseja, sem dúvidas, significativas possibilidades potenciais de conflitos normativos.
Devendo ser esclarecido que o nascedouro de tal colisão normativa dá-se quando condições são partilhadas pelo antecedente de mais de uma norma, uma passível de derrota por outra48.
Quer-se dizer que além de as regras terem condições limitadas, ainda que disjuntivas, a já diminuir as hipóteses de conflito em comparação com o que ocorre com os princípios, é de se ainda acrescentar que comumente os conflitos entre regras podem ser solucionados através de normas que regem os conflitos normativos, as quais estabelecem ordem de prevalência através de critérios predeterminados.
Ao passo que os princípios, além de estarem mais sujeitos aos conflitos devido à estrutura de seu antecedente, tais conflitos são solucionados comumente por meio da ponderação, já que, como salientado supra, o próprio sentido da norma-princípio somente pode ser delimitado pelo sentido que a restrição o imponha sob as circunstâncias relevantes de um caso concreto.
Configurando-se a detecção destes aspectos como a chave de compreensão da tamanha importância que o atributo da derrotabilidade desempenha, mormente em se tratando de normas-princípio, cujo próprio significado somente será encontrado após o que venha a norma de decisão estabelecer.
Assim, a natureza prima facie, no sentido aqui defendido, não decorreria apenas do fato de os princípios serem normas vagas, gerais, abstratas, abertas, indeterminadas ou axiológicas, mas por serem derrotáveis ou superáveis49. Dito de outro modo, os princípios, por expressarem deveres prima facie, somente têm seu conteúdo definitivo estabelecido após o sopesamento com outros colidentes, que lhe podem impor uma eventual derrota50.
A natureza prima facie das normas que estabelecem direitos fundamentais, notadamente aquelas estatuídas por meio de princípios, decorre do fato de os mesmos estabelecerem um direito ainda não delimitado, a depender da análise da restrição para, da resultante da análise da colisão, verificar-se um direito então definitivo.51
O exame de um direito delimitado se realizaria através de dois passos, quais sejam, primeiro se pergunta se a consequência jurídica buscada forma parte do conteúdo do direito prima facie. Sendo esta a situação, o passo seguinte seria o de se examinar se o direito prima facie há de ser limitado no caso concreto. Mediante um processo de decisão onde se estabelece qual dos princípios, em conformidade com as circunstâncias concretas de colisão, possui um maior peso, ao fim do qual se alcançaria um direito definitivo52.
É de se deixar evidenciado, ademais, que as restrições aos direitos fundamentais podem se configurar tanto através de princípios como através de regras53; sendo, através da ponderação, que se vem a obter o conteúdo juridicamente ordenado pelos direitos fundamentais, chegando-se ao que se entende por proteção definitiva54.
Ou seja, a vencibilidade da norma, e deste modo o atributo da derrotabilidade, decorre da potencialidade de uma restrição vir a prevalecer, tanto a restrição sendo um outro princípio como uma regra.
Não havendo hierarquização precisa nos sistemas constitucionais entre os vários direitos fundamentais, de modo tal que os conflitos podem se dar de diversas maneiras e em circunstâncias as mais diversas55, podendo-se concluir que a vencibilidade das normas é inerente a todas elas e pode ser imposta por quaisquer delas.
De modo que as premissas que seriam suficientes para uma conclusão de uma norma podem ser modificadas constantemente a partir de novas premissas que a vida cotidiana apresenta, sendo não enumeráveis previamente as tantas possíveis exceções àquela conclusão inicial. Se é correto afirmar não ser possível de antemão determinar os precisos casos de aplicabilidade de uma norma-princípio, também é certo que não é possível saber-se o conjunto de exceções ao mesmo56.
Demais disso, tendo em vista que não há a prioridade entre umas sobre outras normas, significa afirmar que duas normas de colisão funcionam, cada uma, como uma exceção à aplicabilidade da outra. De forma tal que, quando são verificados os respectivos antecedentes normativos de ambas, nenhum deles de per si é considerado já suficiente para despoletar a respectiva estatuição, pois até então tudo o que se tem é um conflito de deveres prima facie57.
Para a solução de tais conflitos, em que cada uma das normas funciona como restrição à outra – não havendo um critério prévio para determinar os fatores que estabeleçam maior peso a qualquer delas – é de se observar o grau de afetação no caso concreto, o peso em abstrato das mesmas, bem como a segurança das premissas relativas à tal afetação58.
Ou seja, uma prioridade prima facie determina carga de argumentação suficiente para justificar a prevalência de uma norma de direito fundamental sobre outra; sendo robustos os fundamentos em favor de um dos princípios (mesmo que funcionem como uma restrição no caso concreto), está cumprida suficientemente aquela prioridade prima facie em determinado sentido, através de procedimento decisório racional59.
A característica da derrotabilidade das normas de direitos fundamentais exige, assim, este largo procedimento em todos os casos, afinal estar a haver uma preterição de uma norma, a qual merece ser sempre devidamente justificada.
Deste modo, apresenta-se indispensável um modelo constitucionalmente adequando de controle da atuação dos poderes constituídos no domínio dos direitos fundamentais, que permita uma metodologia de ponderação de interesses e valores sem perda da força normativa da Constituição60.
Este dever de estabelecer a preponderância de uma e a derrota de outra norma, embora deva ser um procedimento técnico e racional, não é, contudo, “um procedimento algorítmico” que dê ensejo à obtenção de uma resposta pronta e apriorística. Ao contrário, pelo fato de a metodologia requerer a consideração pormenorizada das circunstancias fáticas relevantes, há de se proporcionar ao intérprete campo de ação necessário para estabelecer com racionalidade e equidade a prevalência de uma das normas61.
Tal mecanismo sendo a chave para se atribuir a consequência definitiva ao que antes seria uma posição jurídica em potencial ou prima facie; quando, a partir de circunstâncias concretas de colisão, possa-se atribuir maior peso a uma das normas envolvidas62.
Mecanismo ponderativo que, embora dê certa margem de ação ao intérprete, oferece suficiente racionalidade, que limita possível arbítrio, e por isso a merecer valor metodológico63.
A centralidade de tal metodologia – pela qual se estabelece a prioridade em concreto de uma norma – evidencia-se, sobretudo, por se estar a decretar o afastamento da aplicabilidade de uma norma de modo definitivo para aquele caso em particular. Convertendo em definitivo um direito que era prima facie defensável, e, no mesmo ato, a estabelecer a derrota da norma em sentido inverso.
Por isso, o dever de se cumprir o brocardo segundo o qual “quão alto seja o grau de prejuízo a um princípio, tanto deve ser a importância da realização do outro”64.
Este método (de atribuição da prevalência de uma norma e a derrota de outra) seria algo para além da subsunção, muito embora esta também não seja dispensada, pois antes de ponderar e estabelecer a vitória/derrota de uma norma, primeiro se subsume o caso àquelas normas passíveis de serem aplicadas65, naquelas situações onde há a sobreposição de previsões. Para, seguidamente, verificar-se o grau de prejuízo a um princípio; a comparação da importância da realização de outro princípio contrário; e, por fim, averiguar-se se a importância da realização do principio contrário justifica o prejuízo sofrido pelo outro66.
A prevalência de um e derrota em concreto de outro princípio dar-se-ia através da tarefa sempre necessária de: detectar as normas relevantes no sistema para a solução de um caso; a examinar os fatos, as circunstâncias concretas do caso com interação com os elementos normativos; para enfim se estabelecer a prevalência e intensidade de um princípio sobre outro67.
Exsurgindo com especial destaque na escolha da norma vencedora e, portanto, da vencida, a obrigatoriedade de dever de proporcionalidade; a se impor como uma condição formal ou estrutural de aplicação de normas de direitos fundamentais; com o que se promove a devida e integral realização dos bens juridicamente resguardados no ordenamento68. Funcionando o dever de proporcionalidade como uma chave do balanceio, propiciando um controle jurídico do mecanismo de estabelecimento definitivo de posições jurídicas até então prima facie.
É devido, por fim, deixar assente que o atributo da derrotabilidade tem por significado a possibilidade de a norma vencida poder se mostrar vencedora em outras circunstâncias fáticas estabelecidas. Dito de outra forma, a determinação em sentido de vitória de uma norma sobre outra não implica invalidação daquela cuja aplicabilidade foi afastada no caso concreto, pois o peso que enseja a vitória/derrota de cada norma varia de acordo com cada situação específica69.
4. DERROTABILIDADE E DIREITOS FUNDAMENTAIS
4.1. O SUPORTE FÁTICO EM SENTIDO AMPLO EM ROBERT ALEXY:
INDIVIDUAÇÃO NORMATIVA E A IDÉIA DE DERROTABILIDADE
Dada a influência que os estudos de Robert Alexy exerce sobre o tema, será tomado como partida a compreensão do catedrático sobre o suporte fático, com enfoque para os direitos a prestações negativas (direitos de defesa). Para, em seguida, fazer-se uma análise crítica do acerto de suas conclusões, bem como se estão de acordo com a analiticidade que a Ciência Normativa exige, partido da inaugural compreensão de individuação e da posição jurídica prima facie resultante de uma norma individual, nos termos das abordagens analíticas feitas nos precedentes capítulos.
Para o catedrático de Kiel, “a consequência jurídica de uma norma é produzida quando todas as suas condições são satisfeitas”; sendo “possível construir um conceito de suporte fático do direito fundamental que abarque a totalidade das condições para uma consequência jurídica definitiva desse direito”70.
Até aqui, nada a ser contestado da compreensão alexyana, estando em completa consonância com a normatividade, com o material normativo em espécie. No entanto, haveria um desacerto de Alexy no passo a seguir, quando pretendeu formular dois conceitos de suporte fático: o chamado suporte fático em sentido estrito – com cuja formulação ora se concorda, por dizer respeito apenas a uma dada norma; e o nominado suporte fático em sentido amplo, que parece estar equivocado, como será demonstrado à frente.
Conforme adiantado, nada se pode contestar quanto à formulação alexyana de suporte fático em sentido estrito, por estar composto apenas por elementos presentes em uma só norma. Tais elementos seriam, para direitos fundamentais de defesa, o âmbito de proteção da norma (bem protegido) e a intervenção do Estado na esfera de proteção normativa71, mediante a presença dos quais seria acionada a consequência prima facie da norma de direitos de defesa. Nada a se questionar, portanto.
Quanto a este conceito de suporte fático (o em sentido estrito), parece não restarem dúvidas de que atende os critérios de individuação normativa esmiuçado.
Por sua vez, já ao formular o conceito de suporte fático em sentido amplo, ao menos para direitos de defesa, Alexy parece ter cometido um equívoco analítico, ao sustentar que este suporte fático seria formado a partir de duas normas: a primeira, que prevê um direito de defesa, e a segunda norma que traz a possibilidade de restrição ao mesmo direito.
Ao dar ensejo aos colóquios iniciais de sua teoria do suporte fático, o autor adverte que o assunto, associado à ideia de âmbito de proteção dos direitos fundamentais, seria o “lado positivo” da garantia dos ditos direitos; contrastando com as restrições aos mesmos direitos fundamentais, que seria o lado negativo dos mesmos, ou seja, aquilo que lhes restringe72.
Não se ateve o mestre de Kiel para identidade da norma, para a necessidade de enxergar a norma isoladamente; e, a partir daí, verificar se aquela norma identificada como sendo aplicável estaria em colisão com outra cuja previsão também fosse preenchida em um caso concreto.
Transparece, da construção alexyana para suporte fático em sentido amplo, que não foi devidamente observada a individuação normativa. Embora estivesse ciente da e atento à característica da derrotabilidade da norma, fez inserir aspectos externos à norma no âmbito de seu suporte fático em sentido amplo, o que não se mostra possível à luz de uma análise técnica a partir da própria norma.
Como outrora evidenciado ao ser tratada a norma jurídica como unidade do direito, o sentido de unidade normativa é aquele de um dever ser quando preenchidas determinadas condições73; o dever ser no sentido de um discurso diretivo e não meramente indicativo como traço distintivo de uma norma74; sendo que a proposição normativa completa possui o “antecedente que inclua todas as condições de cuja verificação o consequente depende”75; seguindo ainda a compreensão de que apenas condições positivas devem ser tidas como condições de uma norma76; sendo condições negativas tudo o que inibir a consequência, ou seja que lhe pode impor uma derrota77.
De tais balizas, a compreensão é de que o conceito alexyano de suporte fático em sentido amplo parece não estar em conformidade com uma teoria analítica da individuação normativa, justamente por este sentido amplo de suporte fático considerar – além do suporte fático em sentido estrito de uma dada norma – as condições de uma norma outra (a cláusula de restrição), como se possível fosse extrair as condições gerais de uma norma a partir do comando de outra.
Quer-se dizer que o modelo não se atém, primordialmente, para a tarefa primeira e essencial da ciência jurídica, que seria a de determinar o sentido de dever ser através da determinação e descrição da norma, a ser descodificada, e de interpretar enunciados normativos e expô-los como norma78.
O conceito de suporte fático de uma norma não poderia abranger nada além de componentes de uma norma em sua singularidade, enquanto unidade do direito. Suporte fático a significar tudo o que, uma vez verificado, despoleta uma consequência jurídica (ainda prima facie), de uma norma individualizada; significando o suporte fático, pois, as condições do antecedente normativo.
Equívoco não há em se poder enxergar direitos fundamentais como situações jurídicas definitivas – como parece ser o desiderato de Alexy. O que se põe em discussão, apenas, é o fato de se transpor, em se saltar a norma individual diretamente para a situação jurídica, quando o caminho a ser percorrido deve ser, inicialmente, o de estabelecer uma posição jurídica prima facie sem ainda se ater às restrições. Deste modo se compreendendo normativamente o direito, a partir da norma jurídica na sua individuação, como adverte a abalizada doutrina79.
A fragilidade do modelo de suporte fático em sentido amplo reside no fato de ter sido desenvolvido a partir da leitura conjunta de normas em um só bloco sintético, quando o caminho percorrido deveria ser outro: a partir da norma passível de ser derrotada, de cada uma das normas envolvidas portanto; passando pela determinação semântica das mesmas; até se chegar ao momento da construção de uma norma de decisão80.
O modelo de suporte fático em sentido amplo, aqui estudado, não trata de uma norma em si, aquela que garante prima facie uma globalidade de condutas, mas do direito fundamental visto após a resolução de conflitos que se criam, chegando à situação jurídica em definitivo.
Se suporte fático for entendido como a previsão contida na norma que, uma vez verificada, gera uma consequência (o sentido de condições para a norma ser aplicável a gerar a consequência prima facie ou não concludente), há de se constatar que o modelo formulado por Alexy não se mostra corretamente formulado à luz de uma individuação normativa81.
Assim, no que toca ao normativismo, verifica-se o desacerto de uma compreensão de suporte fático que envolva aspectos positivos e negativos, intrínsecos e extrínsecos à norma.
Não se mostra possível que condições negativas componham o suporte fático de uma norma, pois condições negativas são, na verdade, não-condições daquela, cuja presença não desencadeia a consequência estatuída. Não sendo correto computar exceções ou as condições de regulação como parte do suporte fático dentro de um conceito de norma em que a individuação seja aquela consagrada, onde “se A, deve ser B”82.
Para o conceito de suporte fático em sentido amplo não se pode concordar com a colocação das restrições como um componente, sob o olhar do normativismo. O equívoco, sob o prisma normativista, estaria justamente por pretender enxergar, globalmente, a previsão ou o antecedente considerando as exceções ou as interferências de outra norma; quando, no entanto, ficou demonstrado que restrições, condições negativas que são, não podem ser consideradas como pertencentes a um mesmo antecedente, já que compõem unidades normativas distintas83.
Pode-se chegar a afirmar que geraria “confusões teóricas” a noção de completude das normas se considerados em conjunto os aspectos negativos; devendo-se afastar a equivocada noção kelseniana de que completude da norma dependeria da inclusão das exceções à sua aplicabilidade84, justamente por estarem as exceções inseridas em normas outras, ainda quando dispostas no mesmo enunciado normativo, a gerar um conflito normativo entre normas85.
Em suma, o conceito alexyano de suporte fático em sentido amplo para direitos fundamentais, mormente para direitos de defesa, não se sustenta sob o critério da individuação normativa. Porém se o modelo não se mostra correto para a formulação de um suporte fático, no entanto, merece louros ao remeter à compreensão dos passos necessários para soluções de conflitos normativos, alusivo às situações jurídicas que de meramente prima facie (já que normas são derrotáveis) venham a se configurar definitivas após o percurso interpretativo que culmina com a criação da norma de decisão. É o que será objeto do capítulo seguinte.
4.2. TEORIAS EXTERNAS PARA OS DIREITOS FUNDAMENTAIS: A SUBJACENTE IDÉIA DE DERROTABILIDADE E DO CARÁTER PRIMA FACIE
Se fica evidenciado que, de uma perspectiva normativista, o conceito de suporte fático em sentido amplo de Robert Alexy não se mostra perfeito, por sua vez, o mesmo remete à teoria correspondente, qual seja a teoria ampla dos direitos fundamentais, a qual possui grande relevo para a sistemática relativa aos direitos enquanto situação jurídica.
Eis o grande mérito da teoria ampla de Alexy: dispor sobre a metodologia correta para a compreensão dos direitos fundamentais enquanto situação jurídica.
Diz respeito a teoria ampla ao trato do jogo de colisão entre normas prima facie aplicáveis, ou seja aos passos metodológicos para a criação da norma de decisão, que vem a por termo à disputa normativa, conforme os contornos fáticos associados aos jurídicos do caso concreto. A teoria ampla de Alexy, como teoria dos princípios, apresenta-se como uma expressão de deveres prima facie, cujo definitivo conteúdo somente será fixado após o sopesamento da colisão com demais normas86.
Quer-se dizer que a teoria ampla tem premente a ideia de que os princípios não determinam diretamente uma conduta a ser seguida, mas estabelecem fins normativamente relevantes, porém sua efetiva concretização a depender de uma solução de correta aplicação87. Os princípios sendo tratados como mandamentos de otimização, diretrizes que podem se realizar em diversos graus, a depender das várias circunstâncias factuais e notadamente da presença de demais normas contrárias para ordenarem em definitivo88.
A teoria alexyana, ao firmar serem prima facie as posições jurídicas estabelecidas por normas de direitos fundamentais – exatamente em virtude do atributo da derrotabilidade das normas jurídicas – configura-se entre aquelas teorias denominas externas. Pois que orientada pela compreensão de que qualquer limite ao um direito fundamental seria decorrência de uma restrição extrínseca89.
Distingue-se, neste tipo de abordagem de normas, o dever não concludente (não definitivo), o qual pode ser vencido, ou seja é derrotável, daquele concludente ou final. Compreendendo-se que o conjunto de situações dispostas no antecedente de uma norma não basta para se alcançar um direito em definitivo ou conclusivo, pois o antecedente de uma norma somente atribui razões ainda prima facie em determinado sentido90.
Assim, como uma teoria externa, estabelece-se a distinção entre direitos restringíveis (limitáveis) e não restringíveis (não limitáveis), no sentido de que qualquer direito pode ser restringido por norma diversa, entendendo-se não restringíveis aqueles já dispostos em definitivo, já quando a norma de decisão vem a torná-lo final para uma dada situação fático-jurídica.
Em outras palavras, nas teorias externas, o direito fundamental não se encontra precisamente delimitado originariamente, apenas expressa um direito que tende a expandir-se e cujos limites/exceções somente futuramente poderão determinar-se caso a caso; por isso apresentando o caráter prima facie, já que a determinação final se dará posteriormente, ou seja após a ponderação com normas em sentido contrário91.
Mostrando-se, destarte, serem as teorias externas aquelas apropriadas para o correto enfrentamento da colisão entre objetos normativos distintos; refutando teorias internas, que têm as restrições como limites imanentes ao direito a que se refere, algo que erroneamente seria alusivo ao conteúdo do próprio direito antes de sua restrição92.
Rejeita a teoria dos princípios ou teoria ampla a pretensão de dispor, prévia e intempestivamente, sobre o âmbito de proteção de uma norma sem a verificação das respectivas exceções.
Sendo firmado não ser possível compreender direitos fundamentais em sua qualidade de princípios e pretender “ponderar intuitivamente” suas restrições como se contida no tal direitos93. Ao contrário de teorias restritas, as teorias externas/amplas enxergam os direitos fundamentais tanto na perspectiva interna da norma, como pela ótica externa alusiva às restrições.
Verificando-se, assim, que a teoria externa, dentre as quais a teoria dos princípios de Alexy, reforça o valor dos direitos fundamentais; sendo a colisão algo inerente à própria consideração dos direitos fundamentais como princípios94, não havendo qualquer coerência nas teorias internas, que visam a estabelecer um conteúdo definitivo de uma norma a partir dela própria.
E mais, as restrições ou limites, por serem normas autônomas e aptas a serem aplicadas também em sua plenitude de acordo com a colisão em concreto, também elas (as restrições e limites) devem ser verificadas em sua potencialidade de optimização. De modo tal a se constatar que tão como os direitos não são absolutos, também não o são as correspondentes restrições95, podendo-se afirmar existir uma mútua restringibilidade entre os vários princípios, uns a funcionarem como limites de outros.
A engenharia para elaboração da teoria dos direitos fundamentais em Alexy, como teoria externa que é, apresenta-se como estruturada em conformidade com dogmática científica que concebe a interpretação jurídica como passos a serem seguidos em sequência.
Deveras, a teoria ampla de suporte fático tem o mérito de não pretender suplantar, do texto, conteúdo disposto na correspondente expressão linguística da formulação normativa, tal como ocorre em teorias restritas (como a dos limites imanentes), que indevidamente se dispõem a delimitar a previsão normativa96.
A teoria ampla alexyana mostra-se como uma teoria externa, ainda, ao distinguir direitos prima facie em relação a direito (enquanto situação jurídica) definitivo, após a análise das restrições97.
Também a evidenciar ser uma teoria externa ao explicitamente fazer críticas diretas à teorias restritas, por pretenderem dispor antecipadamente sobre o que não estaria protegido por uma norma, sem a devida fundamentação e independentemente de sopesamentos98.
Emblemática, neste aspecto, a passagem em que Alexy assevera que “de forma contraditória com o texto constitucional, a teoria restrita retira do suporte fático condutas que são típicas”, para em seguida deixar em aberto a pergunta do que seria preferível: um relaxamento da vinculação ao texto no âmbito do suporte fático ou um relaxamento da vinculação do texto no âmbito das restrições99.
Preciso magistério defende que “os pressupostos teóricos da teoria dos princípios, nos moldes desenvolvidos por Alexy, implica necessariamente a rejeição das teorias restritas sobre o suporte fático”100, vez não existir substrato científico para que se aceite como verdadeiras as teorias restritas como a dos limites imanentes101 ou do alcance material; ou ainda teorias que admitam que regulação infraconstitucional, a título de regulamentar um direito fundamental, acabem por amputá-lo ou reduzi-lo além ou fora do que disposto na formulação linguística102.
Longe de se assemelhar com teorias internas, o modelo alexyano guarda proximidades com uma teria externa, uma vez que a teoria dos princípios entende os direitos fundamentais com garantias prima facie, distinguido-os dos chamados direitos definitivos, após a verificação da colisão com as respectivas restrições. De modo tal que a teoria dos princípios seria uma autêntica teoria externa, já que o conteúdo definitivo do direito seria extraído “a partir de fora”103.
Há, é verdade, doutrina de nomeada a compreender que Alexy adota um “modelo autônomo alternativo” ou um “modelo combinado”104; porém, ainda assim, seria de ser acolher a teoria alexyana ao se estabelecer nesta a necessidade de ponderação no domínio da análise das restrições, por se tratar esta a metodologia a estar necessariamente presente na dogmática para os direitos fundamentais105, associada a uma teoria de argumentação e fundamentação jurídica106; de tal modo que, tanto o modelo dos direitos fundamentais enquanto princípios tanto o modelo da teoria externa, ambos seriam aqueles que mais satisfatoriamente correspondem aos propósitos de um controle adequado da atuação dos poderes no que se refere às restrições107.
A metodologia da ponderação, em Alexy, permitiria uma “superação compensatória” de suas deficiências, sem perda da força normativa da Constituição108, ainda que se entenda ter Alexy adotado uma concepção por demais ampliativa na previsão normativa dos direitos fundamentais, que sobrecarregaria o “lado dos limites, depositando e esgotando aí toda solução dos problemas decorrentes da necessária compatibilização de liberdade com interesses e valores” opostos109.
A par destas colocações, o que não se põe em dúvida é que, certamente, não é restrita a teoria ampla de suporte fático em Alexy110. Ou seria ampla ou seria autônoma. Refutada, destarte, qualquer possibilidade de aproximar a teoria de Alexy dentre aquelas que acabam por restringir o conteúdo de normas de direitos fundamentais através de indevida manipulação de linguagem, e extraindo, do âmbito de proteção normativo, condutas várias que estariam protegidas por dada norma de direito fundamental; faltando-lhe, assim, uma devida analiticidade. Muito pelo contrário, as críticas que existem em relação à teoria de Alexy são justamente por ampliar o alcance das normas de garantias, com acima se vê111.
Sendo de se requerer, adicionalmente à ideia de teoria dos princípios como uma teoria externa, que a ponderação a fundar a precedência de uma norma sobre outra seja orientada por uma teoria da argumentação jurídico-racional112. De modo tal que, associando-se uma teoria da argumentação jurídica racional ao imperativo da ponderação, não haja nenhum déficit de racionalidade113.
Em suma, a par de todas as críticas expostas ao longo do presente texto, embora o modelo de suporte fático alexyano não se mostre tecnicamente perfeito (ao pretender dispor conglobadamente de previsões de mais de um antecedente); é de se reconhecer seus valiosos contributos. A virtude a consistir em ter Alexy expressado a compreensão sobre os passos necessários para soluções de conflitos normativos, alusivo às situações jurídicas que, de meramente prima facie (face à derrotabilidade), passam a ser configurar definitivas após prudente ponderação com outras normas (limites), até se chegar à disposição de uma norma de decisão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao se CONCLUIR que direitos fundamentais garantidos mediante princípios são direitos derrotáveis, vencíveis, já que podem normas outras restringir sua respectiva realização em casos concretos.
A leitura normativista a considerar as restrições fazendo parte do processo de formulação de uma norma de decisão, não sendo esta um mero resultado que possa ser extraído automaticamente através de simples associação de fatos a uma determinada norma.
Constituindo-se todo este processo um longo itinerário, desde a determinação semântica de enunciados selecionados; passando pela solução dos conflitos; para enfim se chegar à dita norma de decisão.
O normativismo a olhar para o desenvolvimento da norma de decisão a partir do conflito normativo de normas interpretadas, as restrições vistas não como condições da previsão de uma mesma norma, mas como elemento indispensável de um processo de formulação da situação jurídica definitiva.
O conteúdo resultante da incidência de uma norma do conjunto normativo em relação aos fatos diz a ver com norma de decisão, representando, no entanto, ainda um estágio intermediário entre a norma do ordenamento e a realidade.
Ficando certo, destarte, que a formulação da norma de decisão não pode ser extraída de forma automática a partir da confrontação entre um conjunto de fatos e uma norma unitária. Enquanto visto o direito a partir de uma norma apenas, daí decorrem meras posições jurídicas prima facie, já que há a possibilidade de prevalência de outra norma em um caso concreto (derrotabilidade).
Longe, pois, de ser um mero processo subsuntivo, consiste a dicção dos direitos fundamentais em um complexo procedimento metodológico mediante o qual se estabelece a resolução dos conflitos que se criam. Fundado na técnica da ponderação que, iluminada pelo dever de proporcionalidade, através do discurso jurídico-argumentativo114-115, enseja a configuração da situação jurídica em definitivo, que vem a tornar específicas (definitivas) situações meramente potenciais ou prima facie116.
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