Um tema vem ganhando força e atenção aos olhos do direito brasileiro: o processo estrutural.
Vale dizer, consiste em uma transformação no processo civil tradicional, onde o individualismo e a bilateralidade imperam, tendo por objetivo único a resolução da crise do direito material específico, um conflito de interesses, levado às portas do Poder Judiciário.
A par do modelo tradicional, tem-se que o juiz ao receber a petição inicial, tem o dever de apontar a quem assiste o direito, basicamente aos olhos da lei ou dos precedentes vinculantes, em razão do novo sistema inaugurado pelo Código de Processo Civil de 2015.
Por outro lado, de difícil conceituação, está o processo estrutural, o qual reivindica uma série de adaptações procedimentais com vistas a abarcar e resguardar direitos sensíveis e que atinjam um número grande sujeitos, ou seja, questões de alta relevância.
Seria como uma espécie de ação coletiva, em que pese o microssistema coletivo adotado no Brasil, muitas vezes restringir os legitimados, além de, quando legitima qualquer cidadão excluir algumas matérias importantes, como são respectivamente a ação civil pública e a ação popular.
Um exemplo dos casos estruturais: o direito e o acesso à saúde. Tal fato se materializa quando eventuais questões abrangem um altíssimo número de indivíduos, com demandas muitas vezes similares e que não recebem um tratamento adequado quando são postas em juízo singularmente, em ações ajuizadas individualmente, além de não raro serem prolatadas decisões conflitantes.
Questões como acesso a leitos hospitalares, realização de procedimentos cirúrgicos, acesso a medicamentos, dentre outros, dizem respeito a pontos sensíveis, muitas vezes buscados individualmente por uma extensa camada da sociedade, e, quando pleiteado através de ações coletivas, a exemplo da ação civil pública, há a necessidade de legitimado ativo específico, fato que, de certo modo, restringe o acesso à justiça, em efeito contrário ao almejado.
Como exemplo de um processo estrutural, podemos citar a ação civil pública nº 0002012-48.2006.4.05.8100, que tramitou na 6º Vara Federal do Tribunal Regional Federal da 5º Região – Subseção de Fortaleza, onde se discutiu as longas filas de espera para cirurgias ortopédicas urgentes e de alta complexidade no estado do Ceará.
De certo, o fundo da demanda afeta parcela significativa do estado, especialmente aqueles que compõem uma camada de baixo poder aquisitivo e necessitam sobremaneira dos auxílios públicos.
Consubstancia-se corriqueiro, em todas as unidades federativas do país, a necessidade de melhoria no atendimento da saúde pública, o que levou o ministério público, no processo mencionado, requerer uma solução para o impasse.
Vejam que o alcance das demandas estruturais abrange diversos assuntos delicados, na maioria das vezes relacionados ao interesse público, envolvendo algum dos entes estatais, porém podendo, por vezes, versar acerca de assuntos particulares que atinjam um maior número de pessoas em similaridade ou que necessitem de adaptações procedimentais com vistas a oferecer soluções que o processo civil tradicional não está sendo capaz de acolher.
Na demanda acima elencada, órgãos públicos das mais variadas escalas manifestaram-se, emitindo opiniões excludentes de suas responsabilidades no sentido de que o procedimento não seria urgente, os hospitais públicos credenciados junto ao SUS estariam diminuindo a frequência de realização desse tipo de cirurgia, os profissionais habilitados seriam escassos, haveria uma longa fila de espera, dentre outros.
Após proposta de termo de ajustamento de conduta apresentada pelo ministério público, não houve interesse de nenhum ente, autoridade ou hospital público em aderir ao pacto.
Aliás, revela-se corriqueira na administração pública a prática de transmitir a responsabilidade a algum congênere.
Um adendo interessante da demanda em estudo. O Poder Público estadual e municipal, do Ceará e de fortaleza, alegou ausência de condições financeiras para possibilitar e elevar o contingente de médicos para a realização de cirurgias dessa espécie.
Coerentemente, rechaçando tal argumento, o magistrado sentenciante alertou que os envolvidos gastam milhões de reais anualmente com celebrações de ano novo e carnaval, o que jogou ao chão o apelo de falta de verba pública.
Ato contínuo, sobreveio sentença ordenando a realização e racionalização de procedimentos ortopédicos eletivos, determinando a organização da fila e das cirurgias em um período de tempo escalonado para o regular decréscimo do contingente cirúrgico, se assemelhando a um plano de metas, cuidadosamente determinado, sem excessos, para que se pudesse resolver o problema, antes individual e agora estrutural, externado no caso em tela. Extrai-se trecho da sentença:
“julgo parcialmente procedente o pedido para determinar que a União, o Estado do Ceará e o Município de Fortaleza adotem as medidas atinentes à solução definitiva da problemática da fila de espera das cirurgias eletivas ortopédicas de alta complexidade, relativas aos Hospital Geral de Fortaleza e Hospital Universitário Walter Cantídio, nos seguintes prazos: a) três meses para quantificar, em cadastro unificado, a fila das cirurgias eletivas ortopédicas de alta complexidade, com a indexação por nome do paciente, tempo de espera e procedimento cirúrgico; c) dozes meses para redução em 10% da fila consolidada; c) vinte e quatro meses para redução da fila consolidada em 50%; d) trinta e seis meses para redução de 90% da fila consolidada; e) e que em trinta e seis meses o prazo máximo de espera na fila para cirurgia ortopédica de alta complexidade deverá corresponder a três meses.”
A solução estruturada imposta na sentença, inteligentemente estipulou marcos temporais para o poder público, dialogando e atuando em conjunto, reduzir as longas filas de espera dos hospitais credenciados no SUS, exemplificando, perfeitamente, um processo estrutural seguido de uma solução, também, estrutural e estruturada.
Nota-se, que não se trata de uma procedência ou improcedência tradicional do pedido como nas demandas individuais do processo civil, ou da possibilidade ou não da realização do procedimento cirúrgico de alta complexidade.
A razoabilidade do sentenciante se ancorou na ciência de impossibilidade de cumprimento da obrigação pura pelos requeridos, e, em razão disso arquitetou um plano de ação a ser seguido e estruturado de modo a viabilizar não só pedidos individuais, mas sim beneficiar toda a coletividade que necessita do bem comum.
É uma sentença que destrincha o problema da saúde pública no país, considerando e ponderando todos os argumentos postos pelas defesas dos entes públicos envolvidos, atraindo, desse modo, o diálogo entre as partes e a não imposição de obrigações de fazer as quais certamente não seriam cumpridas caso determinadas coercitivamente.
Em uma demanda individual aquele que pede quer ver o seu direito satisfeito por aquele contra quem se pede, independentemente dos argumentos de defesa.
Em contrapartida, aquele contra quem se pede opõe defesas diretas ou indiretas de mérito, e, ao final, apenas um sairá vencedor no caso concreto.
O que diferencia o processo estrutural do individual é exatamente a criatividade, a busca por soluções não binárias, como ter ou não ter o direito, como ser ou não ser possível a realização do procedimento cirúrgico ortopédico complexo.
Buscou-se, levando-se em conta todas as limitações postas, contemplar os direitos e limitações materiais de cada litigante, estruturando-se um plano escalonado para que, como ao entabular um acordo, beneficiará inúmeros pacientes, o que não ocorreria em uma demanda individual, incapaz de cumprir esse mister.
Percebeu-se que os próprios requeridos atestaram a falência da política pública da saúde no estado do Ceará. Desse modo, o juízo atento ao caso e buscando uma solução inteligente e consentânea aos litígios estruturais, estipulou um plano de ação envolvendo todos os atores políticos, sem fixar multa ou impor obrigações desarrazoadas ou materialmente inatingíveis, mas prezando e estimulando o próprio diálogo em diversas audiências públicas na fase de cumprimento de sentença.
Conclui-se, desse modo, que os processos estruturais escapam ao modelo tradicional do processo civil, onde se dá unicamente aquilo que se pede, com vistas a montar, de fato, uma estrutura processual e procedimental diferenciada e apta a resolver demandas coletivas e complexas, onde a criatividade, bom senso e cooperação entre os diversos atores do processo se faz necessária.