De início, os municípios possuem competência para proteger bens de valor histórico [art. 23, III e IV], além da competência para legislar sobre assuntos de interesse local [art. 30, I] e de proteger o patrimônio histórico-cultural local, observadas as legislações e a ações fiscalizadoras federal e estadual [art. 30, IX]. Cita-se:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
[...]
III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos
IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural;
V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação;
Art. 30. Compete aos Municípios:
I - legislar sobre assuntos de interesse local;
[...]
IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.
Então, percebe-se que o Município possuí competência para organizar a sua atuação protetiva do patrimônio cultural, isso pode se dar através de lei ou regulamento que especifique como a administração local atuará, com sua estrutura e diante da realidade local. Sempre observando as legislações federais e estaduais.
Nessa linha, o art. 216, da Constituição traça diretrizes gerais sobre o patrimônio cultural brasileiro:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
Já o art. 216-A, estabelece o Sistema Nacional de Cultura, com o intuito de centralizar informações e fortalecer a cooperação entre os entes federativos envolvendo as políticas culturais:
Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais.
§ 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.
§ 2º Constitui a estrutura do Sistema Nacional de Cultura, nas respectivas esferas da Federação:
I - órgãos gestores da cultura;
II - conselhos de política cultural
[...]
§ 3º Lei federal disporá sobre a regulamentação do Sistema Nacional de Cultura, bem como de sua articulação com os demais sistemas nacionais ou políticas setoriais de governo.
§ 4º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão seus respectivos sistemas de cultura em leis próprias.
Percebe-se, especialmente da leitura do §4º, do art. 216-A, que o Município pode organizar o seu sistema de cultura em lei própria.
Tombamento
Para Matheus Carvalho[1], o tombamento é “intervenção do Estado na propriedade”, que “visa à proteção ao meio ambiente, no que tange à conservação dos aspectos da história, arte e cultura de um povo”.
Segundo o Autor, a “competência para praticar os atos necessários ao tombamento de bens públicos ou privados é concorrente entre os entes federativos”, e assim “o mesmo bem pode sofrer mais de um tombamento, simultaneamente”. Completa, CARVALHO[2]:
“a competência legislativa também é concorrente, devendo a União expedir normas gerais, atribuindo a possibilidade de edição de normas específicas aos estados e ao Distrito Federal, não havendo competência legislativa atribuída aos entes municipais, devendo determinar os tombamentos que considerar relevantes, em observância às leis federais e estaduais”
Assim, o tombamento figura apenas como um dos meios de proteção ao patrimônio cultural e essa espécie de proteção, de intervenção do Estado, encontra guarida no Decreto-Lei nº 25/1937. De modo que o município não possuí competência constitucional para legislar sobre a matéria, mas o reúne competências correlatas para organizar a sua atuação prática de proteção ao meio ambiente cultural e processar tombamentos. Isso respaldado no art. 30, I, da Constituição Federal, e na lógica de que as realidades locais são variadas, as necessidades processuais também, e cada município melhor conhece suas nuances e limitações, ao ponto de tecer o seu funcionamento da maneira que consigna mais adequada, utilizando-se das regras e institutos já estabelecidos pelas legislações Federal e Estadual, e assim acontece com o tombamento.
Veja, o próprio Decreto-Lei nº 25/1937, embora regulamente os efeitos do tombamento, que são gerais, também acaba tratando de aspectos específicos, materialmente aplicáveis à União, como os livros de registros e a atuação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Esses aspectos podem ser adaptados na lei ou no regulamento municipal, já que os tombamentos municipais serão registrados em livros próprios e concretizados por órgão local.
Embora os municípios não possuam competência para inovar, criar novas figuras de proteção ou de intervenção, devendo se valer das já existentes, reguladas pela União e pelo respectivo Estado, entende-se que é possível que seja regulamentada a aplicação prática dessa atuação/proteção/desses institutos, em face da estrutura administrativa local, ou às peculiaridades locais de preservação, já que é cristalina a competência municipal para realizar o tombamento.
A Lei Local
É comum encontrar leis locais que estabelecem o processo de tombamento e outras ações, leis que apenas internalizam os instrumentos já disponíveis no ordenamento jurídico brasileiro, estabelecendo a forma prática de se preservar bens e valores culturais no município, inclusive, criando órgão específico para atuar nessas demandas. E isso é organizacional, ou seja, atende com as obrigações municipais de zelo cultural, previstas no art. 30, IX, e 216-A, §1º e §4º, todas da Constituição Federal de 1988.
Conclusão
Conclui-se que os municípios não reúnem competência constitucional para legislar sobre o tombamento, espécie de intervenção do Estado na propriedade, ou sobre a proteção do patrimônio histórico-cultural, mas podem, observando as Leis Federais e Estaduais, regulamentar/legislar sobre a sua estrutura, sobre como processar os tombamentos locais e sobre a articulação do sistema de cultura local.
[1] CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 10 ed. São Paulo: JusPODIVM, 2022. p 1325
[2] p 1326