A base de cálculo do IPTU ante a atual proposta de Reforma Tributária

04/10/2023 às 12:51
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Valéria Furlan

O presente artigo1 questiona a necessidade de se submeter à apreciação do Congresso Nacional proposta de reforma do texto original da vigente Carta Magna, desta feita para fazer constar expressamente o que já está previsto na legislação complementar (CTN/66), e pacificado na doutrina e jurisprudência, a despeito de não ser observado pela legislação infralegal de boa parte dos Municípios brasileiros, qual seja a possibilidade de atualização monetária do valor venal do imóvel, mediante simples decreto do Prefeito, nos limites do índice oficial, por lei estabelecido (Súmula n. 160, do STJ); seja para facultar expressamente o que, consoante vasto entendimento doutrinário, resulta da análise sistemática e teleológica da nossa Constituição Cidadã, qual seja a possibilidade de o Poder Executivo estabelecer critérios para a fiel execução da lei, mais precisamente, para a apuração do valor real do imóvel que permitirá o cálculo do IPTU devido, no caso concreto.

Vejamos. O “valor venal” do imóvel urbano, segundo entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência, é a base de cálculo constitucionalmente possível do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) e que deverá constar na lei que o instituir. Convém salientar que a apuração do montante devido, a título de IPTU, resulta da aplicação da alíquota, igualmente prevista em lei, sobre o valor real do imóvel que pertence ao contribuinte. Aqui reside, pois, uma das maiores dificuldades para o Município, qual seja identificar, anualmente, para fins de cobrança do referido imposto, o valor econômico de cada imóvel urbano sujeito à tributação.

Também não paira dúvidas de que o princípio da capacidade contributiva contém a diretriz constitucional que deve ser levada em conta no exercício da competência tributária para instituir impostos. Significa dizer, em termos econômicos, que quem tem mais deve pagar proporcionalmente mais que quem tem menos. No caso dos impostos, essa aferição é feita a partir do exame do fato gerador e da correlata base de cálculo. Nesses termos, o montante devido por cada contribuinte, a título de imposto, estará em conformidade com sua capacidade contributiva, objetivamente considerada.

Em atenção ao aludido princípio constitucional, reserva-se à lei ordinária municipal, no caso do IPTU, a função de estabelecer que sua base de cálculo será o valor venal do imóvel, isto é, o valor de sua venda, no mercado, por ocasião da ocorrência do fato gerador. Feito isso, ao Poder Executivo caberá, a cada caso concreto, a função de avaliar o imóvel e proceder ao cálculo do imposto para que o contribuinte, regularmente notificado, possa realizar o respectivo pagamento. Parece simples, mas, mesmo que seja, este assunto continua a demandar maiores considerações, com amparo no valioso material doutrinário existente a seu respeito.

De fato. Ao receber o carnê do IPTU, a maioria dos contribuintes se insurge quanto ao valor econômico atribuído ao seu imóvel. Alega-se que houve aumento de imposto sem lei e, ademais, sem observância do princípio da “não surpresa”, a rigor, da anterioridade tributária. O posicionamento da Suprema Corte não pôs fim a essa celeuma, assim como não têm tido melhores resultados a reforma do Texto Constitucional, por meio das famigeradas emendas constitucionais. Cite-se, para ilustrar, que a fixação da base de cálculo do IPTU passou a figurar entre as exceções aos mencionados princípios, por força da Emenda Constitucional n. 3/93.

Para melhor compreensão do tema proposto, convém distinguir a base de cálculo prevista na lei (base abstrata) daquela que resulta da sua aplicação no mundo fenomênico (base concreta). No caso em comento, o valor venal do imóvel é a base abstrata, que, por meio da atuação administrativa, tornar-se-á concreta, ou seja, expressará o real valor de mercado do imóvel, para fins de cálculo do IPTU. Assim, o envio do “carnê do IPTU” para o contribuinte pressupõe a referida aplicação da lei ao caso concreto.

Tornando ao nosso rumo, cumpre salientar que o cerne da questão reside em saber se, no caso concreto, a aferição de eventual aumento do valor econômico do imóvel, em comparação com o valor estipulado no exercício financeiro anterior, deve resultar da observância dos critérios estabelecidos na (i) legislação municipal infralegal, ou se, ao contrário, esses critérios precisam constar na própria (ii) lei municipal e atualizados, também mediante lei de igual hierarquia. São duas situações, frise-se, completamente distintas.

Vejamos as consequências, e relevância, da referida distinção. Na primeira hipótese, eventual impugnação do contribuinte terá por objeto a demonstração de que o valor atribuído ao imóvel pelo fisco, a despeito do disposto na Lei municipal, não corresponde ao real valor de mercado, seja pela não observância da legislação municipal infralegal, seja pela insuficiência ou inaptidão de seus critérios de apuração. Noutro giro, a defesa sustentará a ilegalidade do ato de aplicação da lei ao caso concreto. Na segunda hipótese, caberá ao contribuinte demonstrar que a própria lei municipal vulnera o princípio constitucional da capacidade contributiva ao estabelecer critérios inadequados à identificação do real valor de mercado do imóvel. Em suma, no primeiro e no segundo, cuida-se de mera ilegalidade e de grave inconstitucionalidade, respectivamente.

Nesses termos, o cerne da questão cinge-se em saber se – além de determinar que a base de cálculo do IPTU é o valor venal do imóvel -, também caberia à lei municipal estabelecer os critérios que deverão ser considerados para sua aplicação ao caso concreto, isto é, para a apuração do valor de mercado do imóvel que, uma vez fixado pela autoridade administrativa, será utilizado no cálculo do IPTU.

De nossa parte, continuamos a crer que é tarefa própria do Executivo aplicar, de ofício, a lei ao caso concreto, ainda que se faça necessário explicitá-la com vistas a sua fiel execução. Desse modo, por meio de “decreto” – ato normativo infralegal típico do Chefe do Poder Executivo -, o Prefeito poderá estabelecer e manter atualizados os critérios que deverão ser observados pelos servidores municipais na apuração do valor concreto dos imóveis cadastrados no respectivo Município. Nesses termos, será feito o cálculo do IPTU, cujo montante deverá ser pago pelos respectivos contribuintes – sem prejuízo do direito a eventual impugnação -, após a regular notificação.

Saliente-se que, à luz da CF/88, apenas a determinação da base de cálculo abstrata do IPTU estará sujeita à plena observância dos princípios constitucionais da legalidade e anterioridade tributária. Os critérios infralegais a serem estabelecidos para a fiel aplicação da lei ao caso concreto, desde que não alterem o teor da lei, terão eficácia imediata, haja vista ser de conhecimento de todos que a base de cálculo do IPTU é o valor venal do imóvel. Por igual razão, diga-se de passagem, não se deve confundir (i) aumento do valor econômico do imóvel, no mundo fenomênico, com (ii) ampliação da base de cálculo abstrata do IPTU, legalmente prevista, pois somente nesta segunda hipótese há de ser observado o regime jurídico constitucional tributário.

A propósito, em reforço a essa distinção, vale lembrar que “atualização monetária” não implica aumento do valor econômico do imóvel, exceto se exceder o índice legal (cf. §2º, do art. 97, do CTN/88), razão pela qual, observando-se essa ressalva, poderá ser levada a cabo por meio de simples “decreto”, sempre que se fizer necessário o reajuste. Nesse sentido, enfatiza a Súmula 160 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), verbis: "É defeso, ao município, atualizar o IPTU, mediante decreto, em percentual superior ao índice oficial de correção monetária.".

A despeito dessas diretrizes legais, doutrinárias e do Superior Tribunal de Justiça, interpretação diversa ainda persiste, ensejando elevação do ônus tributário sobre a sociedade. De fato, com o devido pesar, essas e tantas outras questões de maior ou igual relevância ainda não receberam aplicação condigna com o disposto na nossa festeja Constituição Cidadã. Diversamente, o caminho deveras talhado para esse fim, desacompanhado da certeza de melhores resultados, redunda na aprovação de sucessivas propostas de reforma do Texto Constitucional original.

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Para ilustrar, vejamos a atual proposta de Reforma Tributária. Em 2023, o Poder Executivo entendeu que a melhor solução seria a construção do texto pelo próprio Poder Legislativo, a partir do debate realizado. Com esse propósito, formou-se um Grupo de Trabalho destinado a analisar e debater “todo o cabedal de conhecimento acumulado nos últimos anos”,2 com vistas a apresentar um substituto para a PEC n. 45/2019. No tocante à tributação da propriedade, em especial, tende a implementar os avanços constantes nos substitutivos das PECs n. 45 e 110.

No que concerne ao objeto do presente estudo, a atual proposta de Reforma Tributária visa a incluir no texto constitucional, no afã de solucionar o aludido problema, a expressa possibilidade de o Poder Executivo municipal atualizar a base de cálculo do IPTU, conforme critérios fixados em lei municipal. É dizer, além da possibilidade que já restou contemplada pela festejada Constituição-cidadã de 1988; expressamente prevista no §2º, do art. 97, do Código Tributário Nacional (CTN/66); e explicitada pela Súmula n. 160, do Superior Tribunal de Justiça; propõe-se acrescentar à redação do Poder Constituinte Originário de 1988, por meio de emenda constitucional, o que, consoante vasto entendimento doutrinário, resulta da análise sistemática e teleológica da nossa Constituição Cidadã, qual seja a possibilidade de o Poder Executivo estabelecer critérios para a fiel execução da lei, mais precisamente, para a apuração do valor real do imóvel que permitirá o cálculo do IPTU devido, no caso concreto.

Por todo o exposto, propugnamos que qualquer reforma na Carta Magna deve ser medida de extrema excepcionalidade, afinal, a vitalidade das normas jurídicas é assegurada pela via da interpretação jurídica, a qual pressupõe uma análise ampla do texto constitucional de forma a compreender as vigas mestras que sustentam todo o nosso ordenamento jurídico e que, por essa razão, não podem ser desconsideradas no exercício das funções estatais, propriamente ditas. Noutro giro, cabe ao Legislativo editar suas leis em plena conformidade com as diretrizes constitucionais e, ao Judiciário, proferir decisões, amparadas numa fundamentação que, em seu conjunto, sejam coerentes e harmônicas entre si, sob pena de, se assim não proceder, fragilizar a importância do nosso vigente Estado Democrático de Direito.


  1. Elaborado em 27.9.2023.

  2. Relatório do grupo de trabalho destinado a analisar e debater a pec nº 45/2019, https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2285113

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Sobre a autora
Valéria Furlan

Professora Titular da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Doutora e mestre em Direito Tributário pela PUC/SP, com pós-doutorado pela Universidade de Bologna/Itália.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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