Comentários sobre a decisão do STF, na ADI nº 5.938, que trata da proibição da realização de trabalhos insalubres por mulheres gestantes e lactantes, em atenção aos direitos socias à saúde e à proteção à maternidade
I - Introdução
O Supremo Tribunal Federal – STF, órgão que detém competência para analisar, de maneira concentrada, a inconstitucionalidade das Leis Federais, no Brasil (art. 102, I, “a”, CF/88), por decisão da maioria de seus membros, sendo apenas um contrário, declarou inconstitucional a necessidade de apresentação, por mulheres gestantes e lactantes, de atestado de saúde, emitido por médico de sua confiança, que recomende o afastamento do trabalho nos casos em que haja realização de atividades insalubres em grau médio ou mínimo, que constam, como obrigação das trabalhadoras, no artigo 394-A, incisos II e III, da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, com redação dada pela Lei nº 13.467/2017, sendo que o inciso I do mesmo artigo dispensa a apresentação de atestado, no caso de exercício de atividades insalubres de grau máximo. A decisão em análise restou ementada da seguinte forma:
“DIREITOS SOCIAIS. REFORMA TRABALHISTA. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL À MATERNIDADE. PROTEÇÃO DO MERCADO DE TRABALHO DA MULHER. DIREITO À SEGURANÇA NO EMPREGO. DIREITO À VIDA E À SAÚDE DA CRIANÇA. GARANTIA CONTRA A EXPOSIÇÃO DE GESTANTES E LACTANTES A ATIVIDADES INSALUBRES”1.
Vale destacar que no decorrer do julgamento acima foram utilizados diversos fundamentos que tratam da violação de direitos humanos e direitos sociais pelos dispositivos legais declarados, em parte, inconstitucionais, como se verá mais adiante.
II – Breve relato sobre as partes do processo, os fatos e manifestações apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal – STF, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.938
A Consolidação das Leis do Trabalho, que já vigora no Brasil desde 1943, foi alterada, em 2016, pela Lei nº 13.287/2016, que lhe inseriu o artigo 394-A, como forma de assegurar a toda mulher gestante ou lactante o afastamento de qualquer atividade insalubre. No entanto, no ano seguinte, houve edição da Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017, que passou a exigir a apresentação de atestado médico recomendando o afastamento do trabalho, nos casos de realização de atividades insalubres de grau médio ou mínimo, que foi alterada pela Medida Provisória nº 808, 14 de novembro de 2017, para que voltasse a prevalecer a necessidade de afastamento de atividades insalubres de qualquer grau.
Todavia, essa Medida Provisória, de acordo com o que dispõe o art. 62, §3º, CF/88, deveria ter sido aprovada pelo Congresso Nacional, no prazo de até 120 dias, já considerada a possibilidade de prorrogação, para ser convertida em Lei, o que não ocorreu, motivo pelo qual perdeu a sua vigência, em 23 de abril de 2018, retornando, assim, a vigorarem as disposições menos protetivas da Lei nº 13.467/2017.
Assim, em 26/04/2018, três dias após a perda da vigência da Medida Provisória nº 808/2017, a Confederação Nacional do Trabalhadores Metalúrgicos ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI, questionando a inconstitucionalidade dos incisos II e III, do artigo 394-A, da Consolidação das Leis do Trabalho, com redação dada pela Lei nº 13.467/2017, sob os argumentos de que as normas em questão vulnerariam dispositivos constitucionais sobre proteção à maternidade, à gestante, ao nascituro e ao recém-nascido (art. 6º, 7º, XXXIII, 196, 201, II, e 203, I, todos da CF/88); violariam a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho (art. 1º, III e IV, da CF/88) e o objetivo fundamental da República de erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III, da CF/88); desprestigiariam a valorização do trabalho humano e não assegurariam a existência digna (art. 170 da CF/88); afrontariam a ordem social brasileira e o primado do trabalho, bem-estar e justiça sociais (art. 193 da CF/88); e vulnerariam o direito ao meio ambiente do trabalho equilibrado (art. 225 da CF/88). Ademais, além dos preceitos constitucionais citados acima, apontou a requerente violação do princípio da proibição do retrocesso social.
Instada a se manifestar, a Presidência da República apontou, no que tange à questão dos riscos à saúde e à proteção da maternidade, direitos sociais reconhecidos pelo artigo 6º, da Constituição Federal Brasileira2, que nem toda atividade insalubre seria prejudicial às gestantes e lactantes, e que tal análise deveria ocorrer caso a caso, de acordo com informações prestadas pelo Ministério do Trabalho, sendo, portanto, favorável à manutenção das normas impugnadas.
A Advocacia-Geral da União, órgão jurídico responsável pela defesa das normas objeto de impugnação por inconstitucionalidades (art. 4º, IV, da Lei Complementar nº 73/1993), também se manifestou pela improcedência da ação, ressaltando que o princípio da vedação ao retrocesso social não poderia assumir uma afeição absoluta, ao ponto de causar verdadeira imutabilidade dos direitos e imobilização de todo o sistema de proteção de direitos, devendo ser respeitado, apenas, o núcleo essencial de garantias, e alegou que os dispositivos impugnados seriam mais protetivos, pois permitiriam o pagamento de remuneração superior às mulheres, em razão da incidência do adicional de insalubridade.
Por outro lado, a Procuradoria-Geral da República manifestou-se pela procedência da ação, em razão dos dispositivos impugnados serem materialmente inconstitucionais, pois violariam direitos fundamentais das mulheres ao possibilitarem a realização de trabalho em situações insalubres, o que afrontaria o caráter concretizador de direitos constante da medida de vedação do trabalho de gestantes e lactantes em qualquer grau. Alegou, ainda, que as normas em questão representariam um retrocesso social, no tocante à autorização do trabalho de gestantes e lactantes em condições insalubres, uma vez que reduziriam de forma arbitrária e injustificada o nível de proteção à vida, à saúde, à maternidade, à infância e ao trabalho em condições dignas e seguras.
III – dos fundamentos apontados no acórdão pela procedência e pela improcedência da ADI nº 5.938
Como mencionado ao norte, o julgamento pela procedência da ADI 5.938 se deu pela maioria dos votos dos Ministros do STF, que sustentaram fundamentos semelhantes, dentre os quais, os seguintes:
a) Os direitos sociais foram consagrados pela Constituição Federal Brasileira como uma espécie dos direitos fundamentais, sendo considerados liberdades positivas e que devem ser observados de maneira obrigatória num Estado Social de Direito, como o caso do Brasil;
b) A Constituição Federal Brasileira prevê, no seu artigo 6º, diversos direitos sociais, entre eles a proteção à maternidade, que serve de fundamento para a operacionalização de diversos outros direitos sociais instrumentais, tais como a licença-gestante, a proteção do mercado de trabalho da mulher, a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;
c) A proteção contra a exposição da gestante e lactante a atividades insalubres é um importante direito social instrumental de proteção da mulher e da criança, tratando-se de normas que asseguram o cumprimento dos direitos sociais da mulher e de efetivação de integral proteção ao recém-nascido, possibilitando seu pleno desenvolvimento, sem riscos decorrentes da exposição a ambiente insalubre;
d) A proteção à maternidade e a integral proteção à criança são direitos irrenunciáveis, que não podem ser afastados por qualquer que seja o motivo ou hipótese, ainda que pela própria gestantes ou lactante, pois pode causar prejuízo a ela e ao recém-nascido.
Por outro lado, pela improcedência da demanda, votou o Ministro Marco Aurélio, que sustentou o seguinte:
Os dispositivos impugnados são adequados, pois visam atender às exigências do mercado de trabalho, servindo, inclusive, para evitar discriminação na contratação de mão de obra feminina. Ressaltou, ainda, que toda visão demasiadamente protetiva de gênero pode vir a causar mais prejuízo do que benefício para o grupo protegido, pois, no caso em análise, poderia gerar diminuição na contratação de mulheres pelas empresas;
As mulheres não devem gozar de super tutela, ou seja, aquela que é concedida além do razoável, visto que deve ser assegurado a elas realizar suas próprias escolhas acerca da necessidade do afastamento de atividades que entendam que possam ser prejudiciais ou insalubres;
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A exigência de apresentação de atestado médico que recomende o afastamento não é desarrazoada, pois é de fácil obtenção pela gestante e lactante;
A reforma trabalhista, que ocorreu, no Brasil, no ano de 2017, foi necessária para, dentre outros pontos, possibilitar a criação de novas oportunidades de emprego, estando de acordo com os preceitos da Constituição Federal/88, motivo pelo qual os conflitos eventualmente existentes deveriam ser latentes, de fácil percepção, o que não ocorre no caso dos autos.
IV – Análise do julgamento da ADI nº 5.938
No julgamento analisado, foi ressaltado que, mesmo havendo regulamentação, por Lei emanada do Congresso Nacional, sobre a necessidade de se conceder maior proteção às mulheres gestantes ou lactantes, no ambiente de trabalho, que é o que se espera, a partir da compreensão de que a exposição a agentes insalubres pode causar danos à saúde das mesmas ou a do recém-nascido, ofendendo, assim, o disposto no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que trata do direito à saúde, e no artigo 19 da Convenção Interamericana do Direitos Humanos, que trata dos direitos das crianças, o Supremo Tribunal Federal entendeu que, ao incorporar no ordenamento jurídico brasileiro as medidas de proteção previstas no artigo 394-A, incisos II e III, da CLT, o legislador não o fez de maneira plena, pois ainda permitiu a realização de atividades laborais insalubres em grau mínimo ou médio, em caso de não apresentação de atestado médico, o que viola, dentre outros, os dispositivos internacionais mencionados e o próprio artigo 6º da Constituição Federal Brasileira, que trata dos direitos sociais.
Assim, mesmo havendo criação de política pública, inclusive por meio da elaboração de Lei de caráter protetivo, houve necessidade de intervenção judicial da Corte Suprema Brasileira, para que fosse garantido o grau máximo de proteção às mulheres gestantes e lactantes e aos recém-nascidos, quanto aos níveis de exposição a agentes insalubres, em razão da ofensa de seus direitos sociais, em especial no que tange à saúde e à proteção à maternidade.
Importante destacar que as normas impugnadas por meio da ADI nº 5.938 tratam de direitos das mulheres que trabalham na iniciativa privada, que são regidas pela Consolidação das Leis do Trabalho, porém, pelo fato terem sido abordadas questões relativas aos direitos humanos e aos direitos sociais, que já foram reconhecidos em convenções e tratados internacionais ratificados pelo Brasil e que foram, inclusive, incluídos no artigo 6º da CF/88, não há dúvida que as suas conclusões também se aplicam às servidoras públicas.
No entanto, vale ressaltar que, antes da publicação da decisão debatida ao longo deste artigo, já havia previsão legal, no Brasil, de vedação da realização de atividades insalubres por parte das servidores públicas federais gestantes e lactantes, enquanto durar a gestação e a lactação, desde 1990, sendo que a Lei nº 8.112/90, que trata do estatuto dos servidores públicos federais foi repetido pela grande maioria dos demais entes da federação brasileira (Estados e Municípios), o que ressalta que a política pública voltada para os servidores públicos já estava adequada às normas internacionais.
Por outro lado, como as normas acima mencionadas não se aplicam às trabalhadoras da iniciativa privada, houve necessidade do ajuizamento de demanda judicial, por um dos seus legitimados (art. 103, CF/88), para que o nível de proteção que já era concedido às servidoras públicas fosse também estendido às demais trabalhadoras.
Ademais, cumpre destacar que a sentença em análise é de fundamental importância para o Direito Brasileiro, em especial ao Direito Administrativo, pois nela restou consignado, por ampla maioria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, que os autoridades públicas brasileiras não estão livres para criarem, ainda que por meio Leis, regulamentações que violem direitos sociais já consagrados em tratados internacionais que foram ratificados pelo Brasil e que, por vezes, já foram incluídos na própria Constituição Federal, como ocorrer com a proteção à maternidade e à saúde, que são direitos sociais reconhecidos de maneira expressa pelo artigo 6º, da CF/88.
Neste ponto, é importante ressaltar os ensinamentos da professora Graciela Christine, que defende, de forma muito clara, que os direitos sociais, num estado de direito, devem ser compreendidos como verdadeiros direitos humanos3, que gozam de extensa rede de proteção e que devem fomentar a elaboração, por parte dos Estados, de políticas públicas efetivas e concretas para assegurar-lhes cumprimento.
Assim, além do reconhecimento e da aplicação dos direitos humanos e dos direitos sociais já mencionados, há necessidade, ainda, de reconhecimento e aplicação de outros direitos que deles são decorrentes, pois buscam a concretude de seus preceitos e que são tidos por direitos sociais instrumentais, tais como, no que tange ao assunto abordado neste trabalho, a licença-gestante, o direito à segurança no emprego, a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei, a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança, dentre outros, o que restou devidamente consignado nos votos favoráveis à ação dos Ministros da Suprema Corte Brasileira, no julgamento da ADI nº 5.938, em 2019.
V - Conclusão
Neste artigo foi realizada uma análise crítica da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, na Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 5.938, que trata da impugnação de dois dispositivos específicos da Consolidação das Leis do Trabalho que permitiam a realização de atividades insalubres, nos graus médio e mínimo, por mulheres gestantes e lactantes.
Foi observado que, para que a permissão acima deixasse de ser aplicada, a trabalhadora interessada deveria apresentar atestado emitido por médico de sua confiança que recomendasse o afastamento das referidas atividades insalubres, o que foi tido como inconstitucional pela ampla maioria dos Ministros da Suprema Corte Brasileira.
Constatou-se que por ser o Brasil signatário de diversas convenções e tratados internacionais que reconhecem e recomendam a observância de múltiplos direitos humanos e direitos sociais não poderia criar regulamentação própria, ainda que por meio de Lei, que estabelecesse condições menos protetivas às mulheres gestantes e lactantes, bem como aos recém-nascidos, em razão da necessidade de obediência aos direitos sociais da saúde e da proteção à maternidade.
Por fim, foi abordado que, em razão da necessidade de observância dos direitos sociais, que devem ser compreendidos como verdadeiros direitos humanos, o Poder Público deve elaborar medidas efetivas e concretas, inclusive por meio de normas de Direito Administrativo, que assegurem a aplicação de outros direitos sociais deles decorrentes, que são tidos como direitos sociais instrumentais.
VI – REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BALBÍN, Carlos F., Manual de Derecho Administrativo, 5ta edición actualizada y ampliada. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: La Ley, 2021.
CHRISTE, GRACIELA, Los derechos sociales en acción: La intersección de los derechos sociales en el derecho administrativo. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Grupo Editorial HS, 2017.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo – 27ª ed. Rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2010.
Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo – 30.ed. Rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2017.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.
_______. Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993. Institui a Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União e dá outras providências. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 1990.
_______. Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 1990.
_______. Supremo Tribunal Federal (Plenário). ADI 5.938. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. Data do julgamento: 29/05/2019.
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). ADI 5938. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. Data do julgamento: 29/05/2019.︎
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