Resumo
O presente artigo explora o impacto da era digital, em particular o papel das redes sociais, na liberdade de expressão e na responsabilidade civil. Ele destaca como a globalização e o acesso à internet aproximaram as pessoas, ao mesmo tempo em que aumentaram a circulação de informações. As redes sociais trouxeram comodidade, conexões profissionais e pessoais, entretenimento, exposição de conteúdo e novas formas de aprendizado, no entanto, também permitiram o surgimento de problemas como a disseminação de conteúdos ofensivos, como o discurso de ódio, fake news e comentários maldosos. O artigo examina a legislação brasileira, dando foco ao Marco Civil da Internet, e discute a responsabilidade civil dos usuários das redes sociais em relação à liberdade de expressão, considerando os limites desse direito. Ele explora a distinção entre responsabilidade civil subjetiva e objetiva e como esses princípios se aplicam ao ambiente digital. Conclui que a liberdade de expressão, embora seja um direito fundamental, não deve ser usada para promover abusos, e a responsabilidade civil desempenha um papel crucial na proteção dos direitos dos usuários dessas redes. O artigo enfatiza a necessidade de equilibrar a liberdade de expressão com a responsabilidade civil para criar um ambiente online inclusivo e seguro.
Palavras-chave: Redes Sociais. Abuso de direito. Liberdade de expressão. Responsabilidade Civil. Marco Civil da Internet.
Abstract
This article explores the impact of the digital age, particularly the role of social networks, on freedom of expression and civil responsibility. It highlights how globalization and internet access have brought people closer together while increasing the circulation of information. Social networks have brought convenience, professional and personal connections, entertainment, content exposure, and new forms of learning; however, they have also allowed the emergence of issues such as the dissemination of offensive content, such as hate speech, fake news, and hurtful comments. The article examines Brazilian legislation, with a focus on the Internet Civil Rights Framework (Marco Civil da Internet), and discusses the civil responsibility of social media users in relation to freedom of expression, considering the limits of this right. It explores the distinction between subjective and objective civil responsibility and how these principles apply in the digital environment. It concludes that freedom of expression, although a fundamental right, should not be used to promote abuse, and civil responsibility plays a crucial role in protecting the rights of users of these networks. The article emphasizes the need to balance freedom of expression with civil responsibility to create an inclusive and safe online environment.
Keywords: Social media. Abuse of rights. Freedom of expression. Civil responsability. Civil Rights Framework for the Internet.
INTRODUÇÃO
Em decorrência da globalização, o acesso à internet, sobretudo às redes sociais, gerara a permanente sensação de que todos os indivíduos do planeta estão “logo ao lado”. Isso ocorre devido a frenética circulação de informações, onde uma notícia em pouquíssimos instantes pode chegar ao outro lado do mundo.
As redes sociais proporcionaram praticidade e imediaticidade na comunicação; contribuíram na solidificação de novas profissões e ofícios, além de fortalecer conexões profissionais e pessoais já existentes; expandiram e revolucionaram os meios de entretenimento; abriram espaço para a exposição de vídeos, fotos, pensamentos, ideias e autopromoção; possibilitaram novas formas de estudar e adquirir conhecimento; deram voz a diversos grupos sociais. Essa vivência digital da sociedade tornou-se o padrão no mundo contemporâneo, estando cada vez mais interativa e influente no cotidiano e nos comportamentos dos usuários.
De maneira geral, o ambiente virtual facilitou abundantemente a vida das pessoas, contudo, também se propiciou o surgimento de diversos problemas. O mal uso desse espaço viabilizou o alastramento de conteúdos ofensivos, como o discurso de ódio, fake news e comentários danosos, ocasionando, em muitos casos, o oposto dos tantos benefícios propostos na sua criação. É diante desse cenário que tópicos jurídicos se tornam alvo de indagações e debates, essencialmente no que diz respeito à violação de direitos.
A Responsabilidade Civil tem servido como o principal mecanismo para controlar os comportamentos dos indivíduos que ultrapassam seus direitos e ferem os direitos do próximo, como também possui a capacidade de buscar a reparação desses danos, sejam eles materiais, morais ou estéticos.
A liberdade de expressão é um direito fundamental da pessoa humana, que garante a busca e o compartilhamento de informações, como a manifestação de ideias, pensamentos e opiniões, sem censura ou represália governamental. Trata-se de um direito de todo o cidadão, expresso e protegido pela Constituição Federal Brasileira de 1988, no entanto, atualmente é muito comum deparar-se com o uso desse direito para julgamentos, calúnias e ofensas nas redes sociais, o que traz o questionamento: há limites no uso da liberdade de expressão nas redes sociais?
O presente artigo tem como pretensão realizar uma análise expositiva acerca do cenário digital moderno e as ferramentas que transformam esse meio de comunicação entre os usuários, visando expor o desenvolvimento daquele que pratica o abuso do direito nas redes sociais, em referência ao poder disseminado de informações que a internet concedeu.
Para isso, será realizado um estudo em torno da responsabilidade civil dos usuários das plataformas digitais em face do direito de liberdade de expressão, considerando até que ponto a livre manifestação e exposição de pensamento é exercida e quais são os limites desse direito, e evidenciando os aspectos jurídicos que tangenciam o conflito desse cenário contemporâneo em constante evolução do “mundo virtual”.
O método de abordagem será o dedutivo e a metodologia terá como principal fonte de pesquisa a revisão bibliográfica, onde foi analisado a legislação brasileira, bem como artigos científicos apropriados à temática, com o intuito de concluir qual é a modalidade adequada de responsabilidade civil aos usuários das redes sociais, sobretudo no que tange conteúdos ofensivos publicados que ferem os direitos do outro, juntamente com a delimitação dos limites da liberdade de expressão na internet.
O primeiro capítulo aborda o direito digital no Brasil na perspectiva do uso da internet na realidade contemporânea, dando enfoque ao Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), descrevendo suas principais características e fazendo uma breve análise em sua relação com o direito e em sua aplicabilidade, como também trazendo um breve estudo dos direitos da personalidade, em especial os direitos à privacidade e à imagem, visto que são direitos frequentemente violados no ambiente virtual.
O segundo capítulo, trata do ensaio da liberdade de expressão no contexto da era digital, expondo seu conceito e aspectos, tal qual sua constitucionalidade, abordando de forma mais abrangente quais são os seus limites, afim de sanar o questionamento proposto anteriormente. Na sequência, aprofundando-se na problemática dos conteúdos ofensivos publicados por terceiros nas redes sociais como consequência do abuso desse referido direito.
O terceiro capítulo, explora o desdobramento da responsabilidade civil no meio digital e seus desafios no mundo moderno, para, em continuação, analisar esse panorama no cenário de reparar o dano causado pelo usuário que ofende terceiros na sociedade virtual, baseando-se firmemente no legislador brasileiro.
1. DIREITO DIGITAL NO BRASIL E O USO DO AMBIENTE VIRTUAL
As redes sociais online são ambientes digitais que reúnem perfis de indivíduos com interesses e afinidades comuns, facilitando a interação e a troca de informações. Elas representam relacionamentos afetivos e/ou profissionais, refletindo as interações humanas no mundo virtual. A participação ativa dos usuários envolve o compartilhamento de links e conversas, promovendo a conexão e a formação de vínculos dentro da comunidade online. Embora tenham ganhado destaque com a tecnologia, as redes sociais não são uma novidade, já existindo na sociedade muito antes da internet, sendo impulsionadas pela busca por pertencimento a grupos e pela necessidade de compartilhar conhecimento e interesses com outros indivíduos (Zenha, 2018).
A evolução da sociedade encontra-se intrinsecamente relacionada ao progresso humano e à tecnologia. Na medida em que descobrimos novas técnicas e aprimoramos nossas ferramentas necessárias que desempenham um papel crucial para a subsistência e qualidade de vida das pessoas na era moderna, concluímos que a tecnologia se tornou um componente indispensável para o nosso desenvolvimento social e econômico (Castro, 2019).
Nesse viés, Castro (2019) consigna que, neste contexto, surgem desafios legais nas interações humanas decorrentes das atividades virtuais, dada a crescente utilização da internet no cotidiano. Com a crescente importância das ferramentas digitais e a tendência de substituição de ações do mundo físico pelo ambiente eletrônico, torna-se imperativo examinar as normas jurídicas que se aplicam a esse novo cenário, a fim de garantir a segurança das relações cibernéticas de maneira adequada e específica.
Em síntese, a interação entre a sociedade e a tecnologia é evidente, e isso tem implicações significativas no campo jurídico. À medida que continuamos a avançar no mundo digital, é crucial que o sistema jurídico se adapte e evolua para abordar as complexidades das atividades virtuais, garantindo assim a justiça e a equidade nas relações cibernéticas.
De acordo com Fachini (2020), o campo do direito digital se concentra em estabelecer normas e regulamentações para orientar o uso de ambientes digitais pelas pessoas, além disso, busca garantir a proteção das informações armazenadas nesses espaços e em dispositivos eletrônicos. Esse ramo do direito tem como objetivo lidar com as complexidades legais geradas pelo avanço da tecnologia digital e suas interações com a sociedade. Tal âmbito surgiu em resposta à rápida evolução da tecnologia da informação e comunicação, que trouxe consigo uma série de desafios legais e questões relacionadas à privacidade, segurança cibernética, propriedade intelectual, comércio eletrônico, entre outros.
O Direito Digital abrange uma ampla gama de tópicos, incluindo regulamentações sobre dados pessoais, contratos eletrônicos, crimes cibernéticos, proteção de propriedade intelectual na era digital, responsabilidade dos provedores de serviços online e questões de jurisdição em um ambiente virtual sem limites definidos. É um campo em constante evolução, à medida que novas tecnologias emergem e a sociedade se adapta às mudanças na paisagem digital. Portanto, a principal finalidade do Direito Digital é fornecer diretrizes legais para garantir a segurança, a justiça e a ordem nas interações digitais, promovendo um ambiente confiável para a internet, e, por conseguinte, às redes sociais.
1.1 O Marco Civil da Internet
Mesmo quando há a forte vontade de prevenir e combater uma variedade de crimes e delitos, nem sempre é possível eliminá-los completamente. No entanto, é definitivamente possível reduzi-los de forma considerável, minimizando os danos que eles causam e contribuindo para criar uma sociedade menos propensa ao crime (Lima, 2016 apud Cavalcanti e Leonarde, 2023).
Tal concepção se aplica não apenas ao mundo físico, mas também ao mundo virtual, que se tornou uma parte inseparável da vida humana. Portanto, é crucial que a legislação esteja atenta a esse cenário e trabalhe para criar um ambiente congruente ao convívio justo, ordenado e pacífico que desejamos para todas as atividades humanas (Cavalcanti e Leonarde, 2023).
Com o propósito de regulamentar a nova realidade em que a sociedade se encontrou graças a popularização da internet, a Lei Federal nº 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet, foi responsável por regularizar o uso desse espaço virtual no Brasil. Ela definiu princípios, garantias, direitos e deveres para a sua utilização, visando mais segurança e democracia.
Segundo Sobrinho (2020, p. 11) a referida lei “foi recepcionada com entusiasmo e vista como o início de um novo paradigma institucional, bem como diploma hábil a nortear as relações nas redes e proteger os direitos fundamentais no plano digital”. Isto é, ela é vista como um instrumento necessário para equilibrar a expansão do mundo on-line com a preservação dos valores fundamentais da sociedade.
Em vista disso, infere-se que a falta de limites na internet, principalmente nas redes sociais, pode levar alguns usuários a se envolverem em comportamentos abusivos devido a impressão de que possuem liberdade ilimitada e não enfrentarão consequências por suas ações. O Marco Civil deteve um impacto significativo na forma como os negócios são conduzidos online, bem como nas várias formas de entretenimento digital. Cabe observar que a Lei nº 12.965/2014 não impõe penalidades criminais, mas fornece diretrizes para comportamentos no ambiente digital.
Por outro lado, mencionada lei também aborda questões de privacidade, intimidade e outros direitos fundamentais garantidos pela Constituição. De acordo com Braz, Bufulin e Bacellar (2020, p. 560) “os dois primeiros princípios expressamente previstos no artigo 5º da referida lei são o princípio da garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento e o princípio da proteção da privacidade (art. 3º, I e II do Marco Civil)”.
No que diz respeito à liberdade de expressão, um direito fundamental, é importante destacar como essa liberdade foi adaptada à realidade do espaço virtual. A aplicação do Marco Civil neste contexto é frequentemente incerta, especialmente devido à natureza ilimitada da internet. Embora as redes sociais tenham facilitado o intercâmbio cultural, também deu origem a uma sensação ilusória de liberdade ilimitada e, por vezes, a um sentimento de impunidade (Marra, 2019).
1.2 Dos Direitos de Personalidade
Os direitos de personalidade são elementos que derivam da dignidade da pessoa humana e compõem sua essência individual. Eles se dividem em dois subgrupos: os direitos à integridade física, que protegem o corpo humano mesmo após a morte, e os direitos de integridade moral, que abrangem aspectos subjetivos como liberdade, honra e intimidade. O presente estudo se concentrará na análise dos direitos morais, nessa perspectiva, o artigo 5°, X, da Constituição Federal de 1988 institui:
Art. 5º [...]
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
Em concordância com Sobrinho (2020), todos esses direitos compõem o conjunto moral da pessoa, sendo um bem jurídico de grande importância. Sua proteção é abrangente e se reflete em dispositivos das garantias fundamentais e também no Código Civil de 2002. Por exemplo, o inciso V do art. 5º da Constituição assegura o direito de resposta em caso de dano material, moral ou à imagem. A defesa desses bens jurídicos reflete uma nova valorização dos aspectos não relacionados ao patrimônio, que contrasta com a tradicional ênfase patrimonialista na doutrina civil.
É crucial enfatizar que, apesar da proteção dos direitos da personalidade, essas garantias não são absolutas. Os critérios para sua aplicação variam dependendo das partes envolvidas no conflito de direitos, como pessoas famosas ou indivíduos com laços afetivos, e do conteúdo da mensagem em questão, incluindo sua veracidade e forma de expressão.
Além disso, com o surgimento de novas formas de interação social na contemporaneidade, esses critérios adquiriram nuances adicionais. Por exemplo, a maneira como as mensagens são expressas nas redes sociais difere da comunicação física e presencial, o que requer análises diferenciadas para situações semelhantes envolvendo as mesmas partes e mensagens. Portanto, em casos de conflito, a avaliação deve considerar as particularidades de cada situação, utilizando a ponderação de princípios como ferramenta.
2. LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A ERA DIGITAL
A liberdade de expressão, ou liberdade de manifestação do pensamento, é um princípio fundamental que sustenta a democracia e desempenha um papel crucial no avanço da sociedade. Ela tem sido objeto de discussão e proteção ao longo da história, desde os filósofos gregos da Antiguidade até as recentes discussões sobre regulamentação da internet no século XXI.
No contexto brasileiro, a liberdade de manifestação do pensamento está assegurada no artigo 5°, IV, da Constituição Federal de 1988, in verbis:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
“A liberdade de expressão é a base de qualquer sistema democrático comprometido com os ideais de liberdade e de autonomia” (Medrado, 2019, p. 346 apud Simeão e Dias, 2020, p. 250). No seu sentido mais amplo, ela é entendida como o direito de expressar opiniões, ideias e pensamentos sem sofrer censura ou interferência, seja por parte do governo ou de entidades privadas.
Deste modo, sendo fundamental para a livre troca de informações, o debate público e a promoção da diversidade de perspectivas. Contudo, é importante notar que esse direito não é absoluto e pode encontrar limitações quando entra em conflito com outros direitos ou quando é usada de maneira prejudicial, como a propagação de conteúdos ofensivos, incitação ao ódio ou disseminação de desinformação.
A era digital trouxe consigo novos desafios, incluindo a responsabilidade das plataformas online e a proteção da privacidade dos indivíduos. Para Fernandes Junior e Fernandes (2022), devido à velocidade com que as informações se espalham na internet, quando qualquer informação é publicada perde-se o controle sobre sua disseminação, pois se espalha de maneira difusa, o que possibilita que uma informação negativa gere efeitos prejudiciais em grande escala quando se trata de atos ilícitos.
A rapidez na troca de informações e a capacidade de transmitir mensagens instantaneamente impactaram profundamente a noção de privacidade. Hoje, a vida íntima das pessoas pode ser compartilhada em diferentes graus nas redes sociais, alcançando um público desconhecido. A flexibilização da privacidade não apenas permitiu uma exposição sem precedentes da vida privada, mas também criou riscos e novas formas de violação dos direitos individuais. Até mesmo desentendimentos simples, quando postados em redes sociais como forma de retaliação, podem causar danos irreparáveis à imagem das pessoas expostas. Como versa Sobrinho (2020, p. 18):
Situações delicadas envolvem uma análise mais atenta. A título de exemplo, na rede social Instagram, algumas contas foram criadas com a finalidade única de expor os indivíduos que não estão obedecendo as normas de isolamento social durante a pandemia da COVID-19 no país. As contas são abertas (qualquer pessoa, registrada ou não na rede social, pode visualizar seu conteúdo) e realizam postagens nas quais são exibidas as fotos, nomes e perfis das pessoas, acompanhadas de comentários críticos acerca.
É compreendido que esses comportamentos podem ser desproporcionais, caracterizando um abuso de direito, isso ocorre quando a comunidade utiliza de maneira arbitrária seu direito à liberdade de expressão para aplicar uma espécie de autodefesa, ignorando os processos legais e os mecanismos adequados de resolução de conflitos. Mesmo que as intenções do indivíduo sejam nobres, sua conduta viola diretamente os direitos fundamentais de outras pessoas. Portanto, apoiar tais práticas significa endossar uma forma de vingança privada nas redes sociais, o que é inaceitável e incompatível com o conceito de Estado de Direito (Sobrinho, 2020).
Simeão e Dias (2020, p. 252) discorrem que:
Em casos de abuso desse direito, a Constituição Federal determina, como forma de estabilização das relações, a possibilidade de responsabilização civil pelos danos causados. E, mesmo sem utilizar o termo “internet”, é notório que os dispositivos constitucionais norteiam também as relações na rede mundial de computadores.
Diante dessas complexidades, é crucial encontrar um equilíbrio adequado entre a liberdade de expressão e outros direitos, a fim de garantir um ambiente inclusivo e seguro para o exercício dessas liberdades. A regulamentação adequada e a consideração cuidadosa dos direitos individuais são essenciais para navegar por esse cenário complexo e em constante evolução.
3. RESPONSABILIDADE CIVIL DE QUEM CAUSA DANO À TERCEINO NO AMBIENTE VIRTUAL
No contexto da aplicação do instituto da responsabilidade civil em casos de abuso da liberdade de expressão nas redes sociais, é fundamental lembrar que, embora a livre manifestação de pensamento seja um direito fundamental protegido pela Constituição, não é absoluto. Isso significa que o uso desse direito não pode chegar ao ponto de prejudicar ou ofender outra pessoa sem consequências adequadas, uma vez que todos têm o dever de respeitar os direitos dos demais.
O Marco Civil da Internet demonstra a preocupação do legislador em não promover a censura das informações no mundo virtual, ao mesmo tempo em que estabelece medidas para proteger a privacidade das pessoas e responsabilizar aqueles que causam danos por violações de intimidade e privacidade. Nota-se, contudo, que essa lei disciplina apenas a responsabilidade referente ao provedor de internet, não se estendendo ao usuário responsável pelo conteúdo ofensivo.
A responsabilidade civil de quem diretamente causa danos a outrem, por ação ou omissão, é regida pelo Código Civil, independentemente do meio utilizado o infrator deve responder por esse ato. “Está claro que havendo dano também haverá o dever de indenizar, o que não está claro é de que forma o ordenamento jurídico atua, ficando a interpretação do dano a cargo do juízo que o verifica” (Melo e Copi, p. 85, 2022). Isto posto, eis o que prevê o artigo 186 da Lei n.º 10.406/02 (Código Civil):
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
O critério essencial a ser considerado ao avaliar a responsabilidade objetiva ou subjetiva diz respeito à presença de intenção (dolo) ou negligência (culpa) no dever de compensação por danos, pois ainda que sem a intenção, havendo culpa, causou o dano. No contexto da responsabilidade civil, o sistema jurídico brasileiro, em sua maioria, adota a responsabilidade subjetiva como a norma geral. Isso significa que, para que alguém seja considerado responsável por causar danos a outra pessoa, é necessário que haja a comprovação de que agiu com dolo ou culpa.
Essa abordagem coloca o ônus da prova sobre o autor da ação, que deve demonstrar que o réu agiu de forma intencional ou negligente para que a responsabilidade seja estabelecida. No entanto, é importante observar que existem situações em que a lei prevê a responsabilidade objetiva, em que a culpa não precisa ser comprovada, mas esses casos são excepcionais e geralmente estão previstos em leis específicas.
Partindo da análise feita à lição do desembargador Sérgio Cavalieri Filho, que baseado no artigo 186 do Código Civil revelou os pressupostos da responsabilidade civil subjetiva, o jurista Flávio Tartuce aponta a existência dos seguintes elementos do dever de indenizar: conduta humana, culpa genérica, nexo de causalidade e dano ou prejuízo (Tartuce, 2018 apud Filho e Souza, p. 56, 2021).
O comportamento humano pode se manifestar de duas maneiras: por meio de ações (conduta positiva) ou omissões (conduta negativa) voluntárias. O ato ilícito ocorre quando há uma conduta que viola a lei ou um contrato, resultando em prejuízo a um direito de outra pessoa. Em cada situação ilícita, há sempre um agente, seja uma pessoa física ou jurídica, responsável pela ação ou omissão que causou o dano, mesmo que não tenha sido de maneira direta. Quando o agente não se abstém de uma conduta proibida pela lei ou por um contrato, o ato ilícito é considerado uma ação; neste caso, a conduta é comissiva (Filho e Souza, 2021).
Portanto, é suficiente que ocorra uma ação capaz de causar um dano contrário à lei para estabelecer a responsabilidade civil, mesmo que o agente não possa ser diretamente responsabilizado. Isso implica que mesmo pessoas consideradas incapazes podem ser responsabilizadas pelos danos que causarem, desde que as partes legalmente responsáveis não possam ou não tenham os meios para fazê-lo, conforme estabelecido pelo artigo 928 do Código Civil. Em resumo, em vez de utilizar o termo "ato ilícito", é preferível adotar a terminologia mais abrangente "ato contrário ao direito", que se refere a qualquer conduta que viole um dever, seja de forma intencional ou não.
A culpa é o elemento subjetivo da responsabilidade civil, abrangendo tanto o dolo quanto a culpa estrita. O dolo envolve a intenção consciente de violar um dever jurídico com o propósito de causar prejuízo a outra parte, já a culpa estrita se manifesta por meio da imprudência, negligência e imperícia.
A imprudência ocorre quando o agente, mesmo podendo prever as consequências danosas de sua conduta à vítima, prossegue com seu comportamento. A negligência acontece quando o agente deixa de cumprir um dever ou o realiza de forma inadequada, devido à falta de atenção necessária. Por fim, a imperícia refere-se à falta de habilidade exigida do agente em um momento específico, geralmente associada a profissionais que devem exercer sua atividade com conhecimento técnico.
O nexo de causalidade é o elo que conecta a ação ou omissão do agente ao dano resultante, estabelecendo a relação de causa e efeito. É um elemento intangível da responsabilidade civil, que une a conduta do agente ao resultado prejudicial. Sem o nexo de causalidade, não é possível alegar responsabilidade civil, uma vez que ele é essencial para demonstrar que a conduta do agente foi a causa direta do dano infringido a um direito alheio.
O dano é uma lesão a um bem jurídico protegido, podendo ser material ou imaterial. Na responsabilidade civil, o dano é um elemento essencial e deve ser real, certo e exigível, não sendo aceitável apenas aborrecimentos hipotéticos ou abstratos. Os danos materiais podem ser emergentes, representando perdas efetivas, ou lucros cessantes, relacionados ao que deixou de ser ganho. Além disso, a teoria da perda de uma chance, adotada no Brasil, permite a indenização quando alguém perde uma oportunidade que tinha alta probabilidade de ocorrer devido à conduta prejudicial de terceiros. Quanto ao dano moral, ele afeta o aspecto psicológico, moral ou intelectual da vítima e pode ser independente de sua extensão, sendo passível de reparação. No entanto, danos decorrentes de legítima defesa ou exercício regular de direito não são considerados ilícitos, desde que a conduta seja necessária e esteja dentro dos limites indispensáveis, conforme o artigo 188 do Código Civil (Filho e Souza, 2021).
Quanto à responsabilidade civil objetiva, ela encontra-se introduzida no parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, que dispõe:
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Nesse contexto, o conceito se refere à responsabilidade objetiva, na qual a obrigação de reparar um dano surge automaticamente a partir da prática ou ocorrência do evento danoso, sem a necessidade de questionar a culpa do agente. Portanto, para estabelecer essa obrigação, basta demonstrar a relação de causalidade entre o dano suportado e o evento que o desencadeou. O fundamento da responsabilidade objetiva impõe o dever de indenizar com base apenas na simples ocorrência do dano, sem a necessidade de investigar a culpa do agente envolvido. Essa abordagem é aplicada em situações específicas, onde a ênfase está na proteção da vítima, independentemente de haver intenção ou negligência por parte do responsável pelo dano (Filho e Souza, 2021).
Em resumo, a responsabilidade civil subjetiva baseia-se nos elementos da conduta (ação ou omissão), culpa, dano e nexo causal, enquanto na responsabilidade objetiva, a ênfase recai no risco ou em um fundamento legal que atribui a responsabilidade objetiva à conduta, além do dano e do nexo causal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A era digital transformou profundamente a maneira como nos comunicamos e interagimos no mundo contemporâneo, impulsionando a ascensão das redes sociais e proporcionando uma incrível disseminação de informações e ideias. Embora essas plataformas tenham trazido inúmeros benefícios, como a facilidade de comunicação, o compartilhamento de conhecimento e a conexão global, também deram origem a desafios significativos, especialmente no que diz respeito à liberdade de expressão e à responsabilidade civil.
A liberdade de expressão, um direito fundamental essencial em uma sociedade democrática, encontrou novos cenários e desafios no ambiente digital. A Constituição Federal do Brasil de 1988 garante esse direito, mas também estabelece limites para proteger outros direitos igualmente fundamentais, como a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Nesse contexto, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) desempenhou um papel importante ao regulamentar o uso da internet no país, equilibrando a proteção da liberdade de expressão com a garantia da privacidade e da responsabilidade civil.
A análise dos direitos de personalidade, especialmente no que diz respeito à proteção da imagem e da privacidade, revelou-se crucial em um ambiente digital em constante evolução. A exposição pública de informações pessoais nas redes sociais trouxe à tona questões complexas sobre os limites da liberdade de expressão, uma vez que a fronteira entre a esfera pública e privada se tornou menos nítida.
A responsabilidade civil desempenha um papel fundamental na resolução de conflitos decorrentes do uso indevido da liberdade de expressão nas redes sociais. O Código Civil brasileiro estabelece os princípios da responsabilidade subjetiva, que depende da comprovação de culpa ou dolo, e da responsabilidade objetiva, que impõe a obrigação de reparar o dano independentemente da culpa, em casos específicos.
No entanto, é importante notar que a aplicação desses princípios no ambiente digital é complexa e requer uma análise cuidadosa. O anonimato e a velocidade com que as informações circulam na internet tornam desafiador determinar a responsabilidade pelo conteúdo ofensivo ou prejudicial publicado nas redes sociais.
A conclusão que emerge desse estudo é que, embora a liberdade de expressão seja um direito fundamental protegido e essencial para o funcionamento da democracia, ele não deve ser utilizado como um escudo para promover abusos ou prejudicar os direitos de terceiros. A responsabilidade civil desempenha um papel crucial na proteção desses direitos, incentivando o uso responsável da liberdade de expressão e garantindo a reparação de danos causados por seu abuso.
Em suma, a era digital trouxe desafios e oportunidades para a sociedade, e a análise do uso da liberdade de expressão nas redes sociais à luz da responsabilidade civil é essencial para equilibrar a proteção dos direitos individuais com a preservação da liberdade de expressão. A busca por um ambiente online inclusivo e seguro exige a consideração cuidadosa de todos esses elementos, a fim de promover uma convivência justa e respeitosa no mundo virtual.
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