Triângulos roxos no Holocausto.

A objeção de consciência das testemunhas de Jeová ao regime nazista

10/10/2023 às 22:33
Leia nesta página:

1. Objeção de Consciência e Direitos Humanos

O termo “objeção” pode ser entendido como “objetar” ou “recusar” algo. Neste sentido a “objeção de consciência” se configura na hipótese de um ser humano se recusar a fazer ou deixar de fazer algo, em virtude de sua consciência, isto é, em decorrência de valores pessoais fundamentais, os quais formam o seu núcleo existencial.

A objeção de consciência já é reconhecida como um direito humano. A Organização das Nações Unidas (ONU) elegeu a data de 15 de maio como o Dia Internacional dos Objetores de Consciência. A força motriz da objeção podem ser valores tanto religiosos, quanto filosóficos, políticos, morais, ou qualquer outro motivo de foro íntimo, relacionado ao núcleo existencial do ser humano.

A temática mais conhecida no Brasil envolvendo a objeção de consciência diz respeito a recusa de prestação de serviço militar, a qual é tratada na Constituição Federal de 1988 (art. 143, parágrafo primeiro). No entanto, existem várias outras temáticas em que o referido assunto se aplica. O presente artigo, aborda a objeção de consciência das Testemunhas de Jeová ao regime nazista.


2. O Holocausto e a Objeção de Consciência das Testemunhas de Jeová ao Nazismo

Às Testemunhas de Jeová se negavam a prestar serviço militar, a se filiar nas organizações civis nazistas, a fazer a saudação “Heil, Hitler!” (o que atraia a fúria dos adeptos do nazismo) e a apoiar a campanha antissemita. Historiadores do Museu Memorial do Holocausto de Washington (EUA) publicaram um relatório sobre este conflito ideológico:

As Testemunhas de Jeová na Alemanha Nazista recusavam-se a erguer os braços em saudação “Heil Hitler!”, não votavam, não se alistavam no exército e nem na Frente Alemã de Trabalho (grupo associado ao partido nazista, a que todos os empregados remunerados deviam se afiliar depois de 1934). As Testemunhas de Jeová foram acusadas de ter vínculos com os americanos e com outros países, de que o seu milenarismo tinha um tom revolucionário (crença num governo celestial pacífico de Cristo, de mil anos, sobre a Terra, precedido pela batalha do Armagedom), e de que tinham ligações com o judaísmo, inclusive por aderir a partes da Bíblia que incorporam a escritura judaica - o “Velho Testamento Cristão”1.

Os nazistas chamavam as Testemunhas de Jeová de “perigoso verme judaico-bolchevique” e tentaram implantar na mente dos alemães que as testemunhas eram conspiradoras com os judeus e comunistas para dominarem o mundo. Em junho de 1933 os nazistas fecharam em definitivo a sede das Testemunhas de Jeová. Em resposta, as Testemunhas de Jeová publicaram em 16 de agosto de 1933 um artigo intitulado “Revolução nazista na Alemanha”, na sua revista A idade de Ouro (atual Despertai!), denunciando o uso da violência pelos nazistas bem como os campos de concentração. Digno de nota que esta é a primeira publicação de circulação internacional a denunciar os campos nazistas. Nos dias 21 de setembro e 7 de outubro de 1934, Testemunhas de Jeová de toda a Alemanha e de 49 outros países enviaram mais de 20.000 telegramas e cartas de protesto ao gabinete de Hitler.

O historiador Henrik Eberle, em sua obra “Cartas Para Hitler”, ao pesquisar os arquivos do governo alemão, constatou que a chancelaria de Hitler enviou pelo menos cerca de mil dessas cartas e telegramas de protesto para a GESTAPO, com a finalidade de identificar os endereços das Testemunhas de Jeová alemãs para aprisioná-las2. Funcionários que trabalhavam no gabinete do ditador nazista disseram que chegaram uma enxurrada de cartas de protestos das Testemunhas de Jeová. Quando Hitler tomou conhecimento destas cartas, o mesmo bateu com os punhos cerrados na mesa e possesso de ira esbravejou: “Essa raça será exterminada da Alemanha!”. Eberle chamou essa campanha das Testemunhas de Jeová de um ato de “autoafirmação coletiva e sem concessões que chama a atenção”3.

No dia 14 de novembro do respectivo ano, o jornal The New York Times publicou uma manchete intitulada “Nosso Führer não é Hitler, mas é Jesus Cristo”, noticiando a condenação de duas mulheres Testemunhas de Jeová à prisão por falarem essas palavras em um tribunal na cidade de Dortmund, na Alemanha. No dia 1º de abril de 1935, Hitler editou um decreto dissolvendo a organização religiosa das Testemunhas de Jeová em toda Alemanha. Da mesma forma, elas foram demitidas das repartições públicas, perderam o direito ao seguro-desemprego, seus filhos começaram a ser retirados para serem criados em reformatórios e suas residências eram sistematicamente vigiadas pela polícia nazista4

No ano de 1936 as Testemunhas de Jeová intensificaram ainda mais a sua campanha para denunciar as atrocidades nazistas. No dia 7 de setembro, durante um congresso das Testemunhas de Jeová em Lucerna (Suíça), elas adotaram uma resolução denunciando mais ataques do regime nazista. No dia 12 de dezembro, foram distribuídas milhares de cópias da referida resolução por toda a Alemanha5.

Em 21 de janeiro de 1937, as Testemunhas de Jeová realizaram uma denúncia formal na Liga das Nações (antecessora da ONU) contra o regime nazista (a qual não provocou nenhuma reação jurídica significativa daquela entidade). Em 20 de junho de 1937 ocorreu aquela que talvez tenha sido uma das maiores manifestações contra o regime nazista na Alemanha em seu período ditatorial: mais de 3 mil Testemunhas de Jeová distribuíram cerca de 200.000 cópias de sua “Carta aberta ao povo da Alemanha que acredita na Bíblia e é Amante de Cristo”, madrugada adentro por toda a Alemanha. Esta carta expunha de forma minuciosa as autoridades responsáveis por diversos ataques contra as testemunhas, bem como descrevia os lugares, as datas e o que foi dito nestas atrocidades. Neste mesmo ano, os nazistas determinaram que todas as Testemunhas de Jeová deveriam ser identificadas com um triângulo roxo invertido nos campos nazistas.6

O historiador Richard J. Evans, professor da Universidade de Cambridge e um dos maiores especialistas em história alemã, constatou, em sua famosa obra “O Terceiro Reich no Poder”, que por volta de 1937 mais da metade dos casos do Tribunal Especial de Freiberg (localizado na Saxônia, Alemanha), envolvia as Testemunhas de Jeová e suas objeções ao regime nazista. Evans diz que esta resistência coletiva das testemunhas era “algo único entre os grupos religiosos”7.

A partir de 1938 (mesmo ano em que Hitler foi eleito o “homem do ano” pelos leitores da Revista Times dos EUA e os governos americano e da Europa Ocidental aclamavam Hitler como o salvador da Europa contra o comunismo), as Testemunhas de Jeová intensificaram ainda mais sua enxurrada de denúncias contra o nazismo, como segue abaixo:

a. Resolução “Aviso”, adotada pelas Testemunhas de Jeová em 1938, durante um congresso em Seattle, Washington (EUA):

Os nazistas e fascistas, organizações políticas radicais, indevidamente assumiram o controle de muitos países da Europa... Todas as pessoas serão arregimentadas, serão privadas de suas liberdades e serão compelidas a submeter-se ao domínio de um ditador arbitrário, e, daí, a antiga Inquisição estará plenamente revitalizada8.

b. Na edição de junho de 1940 da Revista “Consolação”, as Testemunhas de Jeová, também de forma pioneira, denunciaram em âmbito internacional a política de extermínio nazista contra os judeus:

Havia 3.500.000 judeus na Polônia quando a Alemanha começou a sua Blitzkrieg [guerra-relâmpago]... e, se as informações que chegam no mundo Ocidental forem corretas, a destruição deles parece estar em franco progresso9.

Interessante que em 1938 as Testemunhas de Jeová publicaram um livro intitulado “Cruzada contra o Cristianismo”, o qual continha relatos de testemunhas presas nos campos nazistas, bem como diagramas dos campos de concentração de Sachsenhausen e Esterwegen. Até o ano de 1946 as Testemunhas de Jeová já haviam identificado e publicado informações sobre mais de 60 campos e prisões nazistas, bem como havia denunciado o uso de câmaras de gás e sua política de extermínio contra os judeus e outros povos.

É interessante que após a guerra os alemães (bem como os europeus em geral) argumentavam que não sabiam da extensão das atrocidades cometidas pelos nazistas. Muitos afirmaram que não sabiam das brutalidades e do extermínio ocorridos nos campos de concentração. Digno de nota que o historiador Bradley F. Smith, um dos primeiros a ter acesso aos documentos do célebre julgamento dos criminosos nazistas em Nuremberg, disse que alguns juízes demonstraram certo desconhecimento de parte da história alemã e do nazismo:

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Podemos citar incontáveis erros em matéria de acontecimentos, dados reais, e também numerosos exemplos de excessiva inocência nas opiniões dos juízes. Alguns desses exemplos, como o rabisco que Biddle [um dos juízes] escreveu ao lado do nome de Adolf Einchmann [organizador de todo o transporte para os campos de concentração], num primeiro rascunho da decisão final – “De quem se trata?” – parecem chocantes em nossos dias [...]10.

Por outro lado, aqueles que liam as publicações das Testemunhas de Jeová estavam a par do que ocorria em tais campos. Inclusive o primeiro objetor de consciência da guerra a ser executado foi August Dickmann, um jovem Testemunha de Jeová alemão de 29 anos, fuzilado (na frente de familiares e prisioneiros) no campo de concentração de Sachsenhausen, no dia 15 de setembro de 1939. A notícia desta execução foi publicada no jornal The New York Times, edição de 17 de setembro de 193911.

Dados incompletos sugerem que das 20.000 Testemunhas de Jeová que viviam na Alemanha durante o período nazista, cerca de 10.000 sofreram restrições em seus direitos civis, sendo que mais de 6.000 foram presas e mais de 2.000 foram mortas. Um número desconhecido teve de fugir da Alemanha12.

Após a II Guerra Mundial o governo da antiga Alemanha Ocidental revogou o serviço militar obrigatório determinado pelos nazistas, restabelecendo o direito a objeção de consciência ao mesmo em seu ordenamento jurídico. Da mesma forma, o governo alemão tem buscado indenizar as vítimas do Holocausto.


Notas

  1. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ: VÍTIMAS DA ERA NAZISTA (1933-1945), p.04, Museu Memorial do Holocausto de Washington, Washington (EUA), 1999.

  2. EBERLE, Henrik. Cartas Para Hitler, p. 206, São Paulo, Ed. Planeta do Brasil, 2010.

  3. Idem.

  4. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ: VÍTIMAS DA ERA NAZISTA (1933-1945), p.11, Museu Memorial do Holocausto de Washington, Washington (EUA), 1999.

  5. AS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ RESISTEM AO ATAQUE NAZISTA (COMPÊNDIO), ed. Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, Cesário Lange, SP e Museu Memorial do Holocausto de Washington, Washington (EUA), 1997.

  6. Idem.

  7. EVANS, Richard J. O Terceiro Reich no Poder, ps.298-299, São Paulo, SP, Ed. Planeta do Brasil, 2010.

  8. Revista Despertai!, reimpressão da edição de 22/08/1995, p.27, Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados.

  9. Ibidem.

  10. SMITH, Bradley F. O Tribunal de Nuremberg, ps. 132-133, Rio de Janeiro, ed. Livraria Francisco Alves S.A, 1979.

  11. AS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ RESISTEM AO ATAQUE NAZISTA (COMPÊNDIO), p.43, ed. Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, Cesário Lange, SP e Museu Memorial do Holocausto de Washington, Washington (EUA), 1997

  12. AS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ RESISTEM AO ATAQUE NAZISTA (COMPÊNDIO), p.43, ed. Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, Cesário Lange, SP e Museu Memorial do Holocausto de Washington, Washington (EUA), 1997

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Sobre o autor
Bruno Marini

Professor de Direitos Humanos, Biodireito e Bioética na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), em Campo Grande (MS), Doutorando em Saúde (UFMS), Mestre em Desenvolvimento Local (UCDB) e Especialista em Direito Constitucional (UNIDERP).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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