Lava Jato: quando o tempo não é uma ocasião perdida

15/10/2023 às 05:57
Leia nesta página:

1. Numa entrevista, que foi bastante lembrada quando da sua morte há um mês, o sociólogo italiano Domenico De Masi declarou:

“O tempo que passa é inútil quando tudo nele é perdido”.

A declaração foi feita ao fim de uma entrevista para o documentário “Quanto tempo o tempo tem”, realizado por dois brasileiros.

O making of da cena mostra o elenco aplaudindo De Masi, aos risos, após aquela declaração, dita com o tom sentencial que resultou da imersão profunda num tema que é de proposição difícil .


2. Na verdade, dizer que o ‘tempo passa’ encerraria certamente um pleonasmo, não fosse uma clara figura de ênfase, eis que só reconhecemos o que passa através da palavra tempo.

Portanto, tempo é o que passa .

O sentido de permanência só ocorre em um tempo conjuntural, que é construção inteiramente nossa, como o ‘tempo histórico’, o passado lembrado ou reconstruído, as formas místicas de retorno, a nostalgia do perdido, as projeções que fazemos para fora do tempo ou para além do tempo, a que damos os nomes de eternidade, de infinito, ou de um futuro que se projeta em outros sucessivos futuros, e que – nas formas mais simples de linguagem – se traduzem como o que virá ou o que será para sempre.


3. Bertolt Brecht fez um de seus mais belos poemas com o título “Aos que vão nascer”, que encerra bem a percepção de que um futuro sempre sucederá ao tempo em que nós o concebemos, sem sabermos qual será, e tudo o que podemos fazer no presente é manifestar a crença de que nossas projeções sobre ele se realizarão.


4. No entanto, o que parece mais interessante é se fixar, como as coisas voltam ou se projetam através das nossas cogitações, pois elas sempre aparecem – de algum modo – transformadas.

O que se disse ontem, tem outro sentido hoje, seguidamente, e amanhã não se sabe com certeza o que significará.

Se conseguimos identificar que, em algum momento do passado, houve um tempo de enganos , pois foram feitas descobertas que revelaram embustes colossais, ou só agora se soube do que foi ocultado com maestria ou malícia, daí não decorre que estaremos suficientemente preparados contra a sua reincidência.

Sobre essa incerteza, o economista Pedro Malan deixou, pelo testemunho de outros, essa instigante observação:

“No Brasil, até o passado é incerto”.


5. Isso serve para as falas indignadas, as denúncias, as acusações públicas, as alianças políticas, os novos alinhamentos acadêmicos ou de posicionamento interpretativo, etc, que são tão ocorrentes em nossa sociedade.

Como encontrar, diante disso, o que se mostrou “útil ” e não foi apenas o emprego de “um tempo nele mesmo perdido ”?


6. Nos dez dias finais do mês de novembro de 2010, ocorreram ataques atribuídos ao comando do crime organizado no Rio de Janeiro, resultando em cerca de quarenta mortes, depois de assaltos e arrastões na Linha Vermelha e estradas para Teresópolis e para os subúrbios.

Houve a intervenção da Força Nacional e apoio do Exército e da Marinha, por requisição do governador, e mobilização de uma massiva força policial, o que causou a movimentação intensa dos delinquentes em fuga, e o desmantelamento temporário de seus programas de domínio no comércio de drogas.


7. Naqueles dias, o cronista Luis Fernando Veríssimo publicou a crônica que está reproduzida abaixo.

Embora nunca tivesse sido seu estilo ou seu propósito, mais cômico e voltado para os fatos irrisórios da vida, o texto de Veríssimo repercutiu amplamente, sendo mesmo republicado pela OAB, e marcou muito uma atitude , com a frase que inicia o último parágrafo, que então parecia ser uma espécie de sentimento geral de estranheza em relação ao tempo que então estava sendo aqui vivido:

O Brasil, como se sabe, é um país de corruptos sem corruptores ”.

Essa frase é uma das mais difundidas na Internet, de autoria do celebrado escritor.


8. Veríssimo nunca fez análise política ou econômica e sua visão do corpo social sempre foi caricata, e dessa ‘abstenção’ ele extraiu seu humor, que versa sobre a condição humana de desamparo, de crença no ridículo e a dificuldade de se orientar em um mundo de dificuldades.

Um pouco como em alguns temas de Woody Allen, um pouco como o cotidiano e o jornalismo dele próprio, Veríssimo.

Disso não decorre nenhuma culpa, nenhum erro imperdoável, nenhuma visão de mundo deformada. Desde que o curso do tempo não reserve mudanças de atitude não só incompreensíveis, como de ruptura até o grau da deformação, com o sem-sentido que vem a ser sustentado depois.


9. Apenas quatro anos após a publicação da crônica “A gafe”, já em 2014, iniciou a maior operação judicial e policial contra os corruptores, conhecida como “Lava-Jato”.

Qual é a posição atual de Luis Fernando Veríssimo e da OAB a respeito?

São contra, pois se trata da maior lawfare já movida no país, com a finalidade de promoção política de integrantes do MP e juízes, ou de perseguição partidária, ou de inculpação de dirigentes administrativos ou de desmoralização pública de respeitáveis homens de Estado e de negócios.

Para isso, teriam sido usadas delações premiadas obtidas por coação indireta.

Seria possível opor uma pretensa justificativa para o que tem a aparência clara do injustificável:

As pessoas envolvidas na condução da Lava-Jato não corresponderam, não agiram pelo interesse público, erraram em confundir o ordenamento jurídico com sua ação de franca lawfare .

Agora mesmo, nestes dias correntes, a empresa Itaipú Binacional está promovendo (e custeando, embora completamente fora de suas finalidades) um grande encontro para denunciar a lawfare da Lava-Jato na Faculdade de Direito da USP, embora arriscando a deixar claro que essa associação de empresa estatal com nossos lawyers copistas de modelos estrangeiros possa parecer suspeita, tanto mais quando vários deles advogaram em favor dos que foram condenados judicialmente. Outros, no dizer de Joaquim Barbosa, conhecedor de expressões idiomáticas, apenas usam a plume à louer (pena de aluguel).


10. Veríssimo, um autodeclarado tímido, nunca foi dado a debates. Respeitemos essa idiossincrasia. Contudo, respeitando-a, seria o caso de lembrar antecedentes nacionais e internacionais, para perceber se é pertinente ou absolutamente despropositado invocar lawfare .

Nacionais:

  • Operação Satyagraha também naufragou, tanto na esfera policial como na judicial, embora tenha feito amplo levantamento e enquadramento de fatos imputáveis , em operações financeiras que contaram com o beneplácito de agentes públicos, com danos à credibilidade e ao funcionamento do sistema de controle de capitais. O juiz da causa, Fausto De Sanctis foi acusado de irregularidades, processado, preterido e ofendido publicamente, mesmo por ministros.

  • Processo do Mensalão, conduzido pelo ministro Joaquim Barbosa no STF, pois tinha implicados que gozavam de foro privilegiado, igualmente fracassou, após as condenações, pela via dos embargos regimentais, opostos quando aquele tribunal já tinha nova composição, o que levou o relator a fazer uma convocação da opinião pública contra a fraude processual que assim se perpetrava e, em seguida, a retirar-se da magistratura.

Internacionais:

  • Operação Anti-Máfia, conduzida pelos promotores Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, no desempenho da peculiar função de magistratura investigadora, como é assim regulamentado na Itália, logrou comprovar a adesão da máfia siciliana ao comércio internacional de drogas, mas aqueles dois agentes foram mortos em explosões, sendo que a responsabilização dos culpados tardou, e só veio em razão – por exato - da delação premiada de Tomaso Buschetta, preso no Brasil.

  • Operação Mani Pulite, empreendida pelo promotor Antonio Di Pietro, de Milão. Após demonstrar que altos políticos como Giulio Andreotti (conhecido como “Il Divo”, pela longa permanência na vida partidária italiana) e Bettino Craxi (ex-primeiro ministro) estavam envolvidos em corrupção financiada por grandes grupos econômicos, empreiteiras e a máfia, Pietro teve de retirar-se da promotoria, desanimado com a reticência dos tribunais e a cobertura que os políticos implicados tiveram do establishment , ainda que tenha sido reformulada inteiramente a vida partidária na Itália.

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  • Investigações de Baltazar Garzón, juiz de instrução do tribunal espanhol Assembleia Nacional, que resultaram no mandado de prisão de Augusto Pinochet e na descoberta de fossas com cadáveres de assassinados pela ditadura de Francisco Franco, foram paralisadas depois que a carreira daquele juiz foi encerrada, em 2012, sob a acusação de que autorizou escutas telefônicas ilegais.


Conclusão

Motivos para que viéssemos a ser um país de corruptos, sem corruptores, talvez existissem em abundância e invencível força, pelo menos na cabeça de cronistas que mal escondem seu senso denunciativo moral, o qual só satisfaz o próprio consumo interno, sob as preferências que escolhem.

Os brasileiros não gostam de inventar fórmulas.

Preferem copiá-las.

Inclusive as de... como combater os que combatem a corrupção .

Além disso, são volúveis.

Mas talvez não sejam tão corruptos, como pareceu ao cronista.

Mesmo porque, para um povo, é muito doloroso perceber que não há escape .

Nesse caso, contrariando seu sentido, o tempo não passa , ou então volta , ou ainda revolta.

Por isso, vem à lembrança uma frase do velho político baiano, senador Nelson Carneiro, cujo nome até foi inscrito em 2019 dentre os heróis da pátria.

O que parece bem a propósito, embora contrarie bastante os cronistas de oportunidades perdidas, pois a citação menciona a palavra pátria, mas deve ser parafraseada para o tema aqui tratado:

Não somos uma pátria sem corruptos, mas está entregue aos corruptores sem pátria.


A gafe

Luis Fernando Veríssimo*

Estranho, muito estranho. Mesmo que não esperassem uma reação tão dura, o que o "tráfico" do Rio tinha a ganhar com os atentados que desencadearam a repressão inédita? Protesto contra a ação das UPPs nos morros ou simples e bravateira demonstração de força - nada disso esconde que o que fizeram foi ruim para eles e pior para os seus negócios. Se o que queriam era justamente levar a afronta a um ponto que forçasse uma reação na mesma medida, o mistério aumenta. Pra quê?

As teorias conspiratórias têm sempre uma fraqueza: pressupõem uma inteligência ou um poder de dissimulação irreal dos conspiradores. Qualquer conjetura sobre o que está por trás dessa guerra, ou sobre a quem aproveita o seu acirramento, acaba sendo uma especulação sobre o improvável, quando não uma fantasia. Mas o fato é que ela desafia muitas lógicas, a começar pela lógica básica do capitalismo que é a primazia do lucro em qualquer circunstância. O crime organizado não parece tão organizado assim, se é responsável por tamanha gafe em termos de relações públicas. Acima dos estragos que está causando na vida de tanta gente, a guerra está abalando o mercado. Lucros cessantes é o maior terror de qualquer empreendimento. Pode-se imaginar que os lucros do "tráfico", pelo menos por um tempo, cessarão ou diminuirão. A droga sendo apreendida nos morros é principalmente maconha, que segundo alguns nem droga é. Pode-se supor que o comércio de maconha seja a principal atividade desse exército maltrapilho e bem armado, hoje acuado, que vende para a sua própria classe, e que cocaína e etc. circulem em outros esquemas, mais sofisticados e discretos. Mas todo o mercado foi afetado pela gafe.

O Brasil, como se sabe, é um país de corruptos sem corruptores. Pelo menos até hoje nenhuma grande empreiteira ou coisa parecida teve que responder por atos de corrupção em que participou como compradora de favores. O mercado de drogas é parecido, um estranho, muito estranho, mercado só de fornecedores. Dos consumidores nunca se ouve falar. Mas, presumivelmente, eles também sofrerão com a gafe. Pelo menos por um tempo.

*Luis Fernando Veríssimo é escritor

Artigo publicado no jornal O Globo, 2 de dezembro de 2010

Sobre o autor
Luiz Fernando Cabeda

Desembargador do TRT da 12ª Região, inativo. Fez estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional. Autor de "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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