O contrato de seguro em tempos de calamidades naturais

16/10/2023 às 18:12
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Há poucos dias, a imprensa noticiou que as seguradoras não estavam indenizando danos causados pelas inundações que atingiram  o Rio Grande do Sul há algum tempo. Consultado, o Sindicato dos Corretores de Seguro (Sincor - RS) declarou que os prejudicados deveriam verificar se os seus contratos previam essa cobertura. (Zero Hora, 21/09/2023, pág. 14)

Aparentemente, os segurados estão sendo surpreendidos com a notícia, dada pelas seguradoras, de que a cobertura prevista em seus contratos era bem mais limitada do que supunham.

Contudo, o STJ tem reconhecido reiteradamente que aquelas cláusulas do contrato de seguro que não foram levadas ao conhecimento do segurado antes da celebração do contrato não têm qualquer valor, são ineficazes em relação a ele.

Decidiu esse tribunal, por exemplo, em decisão relatada pelo ministro Luís Felipe  Salomão, que

“No caso concreto, surge incontroverso que o documento que integra o contrato de seguro de vida não foi apresentado por ocasião da contratação, além do que a cláusula restritiva constou tão somente do ‘manual do segurado’, enviado após a assinatura da proposta. Portanto, configurada a violação ao art. 54, § 4.º, do CDC. Nos termos do art. 46 do CDC: ‘Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.” (Resp. 1.219.406/MG - j. 15.02.2011 – DJ 18.02.2011.)

Esse posicionamento jurisprudencial  tem, na verdade, consequências que não se limitam aos contratos de seguros. Pense-se, por exemplo, nas compras de bens duráveis feitas pela Internet. Nestes contratos, o consumidor geralmente toma conhecimento do inteiro teor da garantia contratual apenas depois de pago o preço, no momento do recebimento do produto.

Essa decisão não poderia ser diferente e nem ser motivo de surpresa, a se levar em conta o teor literal do dispositivo legal referido acima: “Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo (...) 

A legislação brasileira, neste ponto, está alinhada com a europeia. O fundamento deste dever está exposto magistralmente em julgado do Superior Tribunal de Justiça português, reproduzido por Ana Prata:

“[…] ‘a entidade que pretenda inserir cláusulas contratuais gerais nos contratos singulares que celebra deve comunicá-las antes da conclusão do negócio, de modo a proporcionar à contraparte a indispensável reflexão e um conhecimento completo e efectivo do clausulado’; e ‘este dever de comunicação, situado na fase de negociação ou pré-contratual, destina-se a que o aderente possa conhecer, com a necessária antecipação relativamente ao momento da consumação do negócio, o respectivo conteúdo contratual, de modo a poder apreendê-lo, nas suas efectivas e reais consequências prático-jurídicas, outorgando-lhe, deste modo, um espaço de reflexão e ponderação sobre o âmbito e dimensão das vinculações que lhe irão resultar da celebração do negócio’.”  (grifado no original)

Como é notório, o contrato, no Brasil, é enviado ao segurado apenas depois que a seguradora aceitou fazer o seguro. E mesmo isso costuma ser omitido: tem sido comum - aconteceu comigo - que na correspondência com a qual é encaminhada a apólice seja informado o endereço, na Internet, em que o segurado poderá - e só então, sublinhe-se - tomar conhecimento das cláusulas contratuais. No meu caso, nem isso foi possível: o link não funcionava…

Daí se segue a completa ineficácia, em relação ao segurado, das cláusulas que excluem a cobertura dos danos resultantes, por exemplo, de inundações, raios e quedas de árvores, quando o contratante de seguro contra danos materiais não tiver sido informado dessas restrições em momento anterior ao em que foi concluído o contrato. 

Em julgamento sobre esta mesma matéria, o Ministro Ruy Rosado de Aguiar afirmou que “[esta] prática continua a mesma, enganosa e ilegal, sem nenhuma alteração. É preciso que o Tribunal reitere a necessidade de que essas empresas que atuam massivamente no mercado passem a atender a certos requisitos mínimos de respeito às pessoas.” (Resp 485.760, 17/06/2003)

A reiteração que se seguiu não  funcionou. Ao que parece, as seguradoras precisam de mais do que orientações gentis. 

Porto Alegre, 10/10/2023.

Carlos Alberto Etcheverry

Sobre o autor
Carlos Alberto Etcheverry

Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Mestre em Direito.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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