Dano ao projeto de vida das crianças e adolescentes vítimas de violações de direitos humanos

Uma nova modalidade de dano destinada à emancipação social

17/10/2023 às 15:25
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Os direitos das crianças e dos adolescentes, em que pese a densa legislação nacional e internacional sobre o tema, ainda são sistematicamente violados pela família, sociedade e Estado.

Segundo dados de 13.10.2023 da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), entre 2011 e 2020, o Brasil registrou 24.909 casos de acidentes de trabalho e 466 mortes envolvendo menores de 18 anos de idade, com uma média de 2,5 mil acidentes e 47 mortes por ano1.

Não é só: o último estudo realizado para contabilizar o número de crianças em situação de rua no Brasil, realizado pela ONG Visão Mundial, revelou que 70 mil estavam nessa situação em 2019, isso antes da Pandemia2.

O mesmo estudo aponta que cerca de 19% dos entrevistados disseram que dormem com fome; 37% declararam ter sofrido algum tipo de violência; 70% são vítimas de violência doméstica; 12% realizam trabalho infantil; e 79% informaram que nunca tiveram contato com furto/roubo.

Em síntese do panorama, o ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Maurício Cunha, em 2021, quanto às violações dos direitos das crianças e os adolescentes, afirmou que “infelizmente, é o público que mais sofre violências, que mais sofre violações de direitos no Brasil, mais do que outros grupos vulneráveis. Inclusive, há mais denúncias do que no Disque 180, que recebe denúncias de violência contra a mulher. Isso nos traz uma preocupação muito grande, porque é o grupo que mais deveria estar sendo protegido”3.

Logo, o próprio projeto de realização pessoal da criança e do adolescente tem sido tolhido de forma reiterada pelas mais diversas agências formais e informais de proteção, resultando no dano ao projeto de vida.

Caio Paiva e Thimotie Aragon4 conceituam o dano ao projeto de vida como sendo aquele que, em razão da sua gravidade para os direitos da vítima, impede esta de executar os projetos de vida que havia pensado para si.

Evidente que as diversas formas de violação dos direitos das crianças e adolescentes acima relatadas subsomem perfeitamente a esta modalidade de dano, e exigem a devida reparação de seus violadores, públicos ou privados.

Trata-se de uma nova e autônoma modalidade de dano, ainda incipiente na doutrina e jurisprudência pátria, mas já bem desenvolvida na jurisprudência internacional dos direitos humanos, tendo sido usada para amparar vários grupos vulneráveis, como indígenas, mulheres vítimas de violência doméstica e pessoas privadas de liberdade de forma arbitrária.

Em 1999, na sentença do Caso Loyaza Tamayo vs. Peru, a Corte Internacional de Direitos Humanos (CorteIDH) reconheceu, pela primeira vez, a existência e a autonomia conceitual de referido dano, já o diferenciando do dano material, emergente e moral, tendo em vista a ausência de conotação patrimonial5.

Na ocasião, os juízes da Corte Abreu Burelli e Cançado Trindade afirmaram que “o dano ao projeto de vida ameaça, em última instância, o próprio sentido que cada pessoa humana atribui à sua existência. Quando isso ocorre, um prejuízo é causado ao mais íntimo do ser: trata-se de um dano dotado de autonomia própria, que afeta o sentido espiritual da vida”.

De fato, a reparação para tais casos exige muito além de uma simples reparação pecuniária, mas uma ação integrada e efetiva que proporcione instrumentos e meios de emancipação pessoal, entre outros o acesso à moradia digna, à alimentação adequada e à educação de qualidade, do que se extrai a sua autonomia.

A título de exemplo, no Caso Cantoral Benavides vs. Peru, a CorteIDH condenou o Estado do Peru à reparação dano ao projeto de vida, consistente na concessão de bolsa de estudos a Luis Alberto Cantoral Benavides:

(...)a via mais idônea para restabelecer o projeto de vida de Luis Alberto Cantoral Benavides consiste em que o Estado lhe proporcione uma bolsa de estudos superiores ou universitários, com o fim de cobrir os custos da carreira profissional que a vítima escolher – assim como os gastos de manutenção desta última durante o período de tais estudos – num centro de reconhecida qualidade acadêmica escolhido em comum acordo entre a vítima e o Estado (Reparações e custas, §80).

Nessa linha, a condenação do Estado à uma reparação emancipatória atende também ao direito à vida da criança e do adolescente, expressamente previsto no art. 7º no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no art. 6º da Convenção sobre os Direitos das Crianças.

O direito à vida não se resume à proteção contra atendados arbitrários à integridade física, mas sobretudo a uma existência digna que não possa ser usurpada pela Estado ou por um particular, que os impede de acessá-la.

Não por outra razão o eminente professor André de Carvalho Ramos, à luz do conceito de dignidade humana elaborado por Ingo Wolfgang Sarlet6, o compõe em dois elementos: um negativo, consistente na qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano, que o protege contra todo tratamento degradante e discriminação odiosa; e outro positivo, que assegura condições mínimas de sobrevivência, aqui assentadas as políticas sociais e econômicas para atendimento do mínimo existencial.

Na mesma toada, no Caso Meninos de Rua vs. Guatemala, a CorteIDH concluiu que o direito à vida pertence, ao mesmo tempo, “ao domínio dos direitos civis e políticos, assim como ao dos direitos econômicos, sociais e culturais, ilustrando assim a inter-relação e indivisibilidade de todos os direitos humanos” (Mérito, §4º).

A tudo isso soma-se o fato de que se trata de uma população em peculiar condição de desenvolvimento, para a qual é dever do Estado e da sociedade garantir proteção integral e prioritária (art. 227 da Constituição Federal), além de atender ao seu melhor interesse, diante da acentuada vulnerabilidade.

Dito isso, imperiosa a ação conjunta do poder público e dos particulares, por meio de uma rede integrada de atendimento e proteção da existência digna, sob pena de ambos responderem pela nova modalidade de dano.

É dizer: recai também sobre o particular, em especial àqueles que permitem crianças e adolescentes em trabalhos infantis e escravos – tal como aponta as piores formas de trabalho do art. 3º da Convenção 182 da OIT, a devida reparação do dano ao projeto de vida, a partir da aplicação horizontal da eficácia dos direitos fundamentais, no caso de relação-jurídica entre particulares, ou até mesmo diagonal, quanto às relações entre particulares onde há desequilíbrio fático.

Com efeito, conforme leciona André de Carvalho Ramos7, um dos usos habituais da dignidade da pessoa na jurisprudência pátria ocorre na fundamentação da criação jurisprudencial de novos direitos, por exemplo no reconhecimento do direito à busca da felicidade e da realização pessoal, ao admitir arranjos familiares diversos da concepção tradicional (RE 989.060/SC, rel. Ministro Luis Fux, julgado em 21 e 22/09/2016), ou da concepção do tempo como uma espécie de direito, ao admitir a teoria do desvio produtivo (STJ, REsp 1737412/SE, Relatora: Min. Nancy Andrighi, julgado em 05/02/2019).

Nada impede, portanto, o uso da dignidade humana para fundamentar o direito ao projeto de vida e, por consequência, a reparação do dano provocado por particulares na vida das crianças e adolescentes em situação de rua, submetidas às piores formas de trabalho, privadas de sua liberdade de forma arbitrária, alijadas da educação e alimentação adequadas etc., caso constatados os elementos caracterizados da responsabilidade civil.

É certo que ações preventivas devem ser implementadas para evitar as violações de direitos humanos, em sintonia com o art. 70-A do ECA, mas a existência de novos instrumentos de reparação, destinados à emancipação pessoal desta população vulnerável, é essencial na proteção integral dos direitos das crianças e dos adolescentes.

Isso porque, em que pese o Superior Tribunal de Justiça - STJ (Resp 1.302.467, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 03/03/2015) e o Supremo Tribunal Federal - STF (ADPF 132 e ADI 4.277) terem invocado o direito ao projeto de vida ao concluírem pela proteção jurídica de uniões homoafetivas, em nenhum desses casos houve a reparação do dano ao projeto de vida como uma medida de reparação autônoma.

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Dessa maneira, os tribunais pátrios, em especial o STF e o STJ, atentos às decisões da CorteIDH, devem aplicar expressamente esta nova modalidade de dano, reconhecendo a sua autonomia em relação aos demais danos positivados na legislação interna.

Diante da gravidade das violações de direitos humanos noticiadas, as quais se protraem no tempo e são capazes de ceifar sonhos e vidas de população indefesa, a simples e exclusiva reparação de caráter pecuniário não satisfaz o princípio da proteção integral e do melhor interesse, incidindo a vedação da proteção insuficiente, corolário do princípio da proporcionalidade.

A este respeito, citados por Caio Paiva e Thimotie Aragon8, os excelentes juízes da CorteIDH, Abreu Burelli e Cançado Trindade, no Caso Meninos de Rua vs Guatemala, equiparam o dano ao projeto de vida à morte espiritual:

“Uma pessoa que em sua infância vive, como em tantos países da América Latina, na humilhação da miséria, sem a menor condição sequer de criar seu projeto de vida, experimenta um estado equivalente a uma morte espiritual; a morte física que a esta segue, em tais circunstâncias, é culminação da destruição total do ser humano.”

Por isso, torna-se imprescindível uma intervenção do Estado ou do particular que restaure o dano causado ou forneça meios para que as crianças e os adolescentes exerçam todas as suas potencialidades existenciais, interrompidas pela negligência e pelo descaso, a fim de emancipá-los no seio social.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2001.

Ramos, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos/André de Ramos Carvalho – 9. Ed – São Paulo: SaraivaJur, 2022.

Caio Cezar, Paiva. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos/ Caio Cezar Paiva, thimotie Aragon Heemann, 2 ed. – Belo Horizonte CEI, 2017.

https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-10/brasil-teve-mais-de-466-mortes-de-menores-no-trabalho-de-2011-2020. Acesso em 16/10/2023.

https://observatorio3setor.org.br/noticias/pequenos-invisiveis-70-mil-criancas-vivem-nas-ruas-do-brasil/. Acesso em 16/10/2023.

https://www.camara.leg.br/noticias/873498-criancas-e-adolescentes-sao-as-maiores-vitimas-de-violacoes-no-brasil-diz-secretario/. Acesso em 16/10/2023.


  1. Fonte: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-10/brasil-teve-mais-de-466-mortes-de-menores-no-trabalho-de-2011-2020. Acesso em 16/10/2023.

  2. Fonte: https://observatorio3setor.org.br/noticias/pequenos-invisiveis-70-mil-criancas-vivem-nas-ruas-do-brasil/. Acesso em 16/10/2023.

    Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:
  3. Fonte: https://www.camara.leg.br/noticias/873498-criancas-e-adolescentes-sao-as-maiores-vitimas-de-violacoes-no-brasil-diz-secretario/. Acesso em 16/10/2023.

  4. Caio Cezar, Paiva. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos/ Caio Cezar Paiva, thimotie Aragon Heemann, 2 ed. – Belo Horizonte CEI, 2017.

  5. Caio Cezar, Paiva. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos/ Caio Cezar Paiva, thimotie Aragon Heemann, 2 ed. – Belo Horizonte CEI, 2017.

  6. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2001.

  7. Ramos, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos/André de Ramos Carvalho – 9. Ed – São Paulo: SaraivaJur, 2022.

  8. Caio Cezar, Paiva. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos/ Caio Cezar Paiva, thimotie Aragon Heemann, 2 ed. – Belo Horizonte CEI, 2017.

Sobre o autor
Thiago Pinheiro Di Rico

Advogado Pós-Graduado em Direito Público. Pós-Graduando em Direitos Humanos. Especialista em Direito Médico.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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