Demandas de valor esperado negativo e a ação civil pública: análise à luz da atuação do Ministério Público

01/11/2023 às 17:42
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Tolstói, nos idos do século XIX, escreveu uma autobiografia denominada “Uma confissão”. Dentre idas e vindas de pensamentos, formula a reflexão de que o Direito corresponde a uma “semiciência”, na medida em que se ocupa de questões que lhe são (ou que deveriam ser, na opinião do célebre escritor) alheias.

Com o devido respeito, ouso discordar. Inexiste pureza no Direito. O fato de interagir com outros ramos do conhecimento não diminui a sua cientificidade, mas, ao contrário, ratifica-a. Calmon de Passos (2016, p. 343), saudoso processualista baiano, comentava: “Daí parecer-nos impossível pensar-se o direito ou operar-se com ele, em qualquer de seus compartimentos didático ou profissionais, sem a reflexão prévia e esclarecedora de cunho filosófico, político, econômico e histórico”. Sustentar entendimento contrário, apertando as vertentes epistemológicas em compartimentos estanques, inviabilizando qualquer diálogo entre elas, é exacerbar a alienação.

É nesse contexto que se encetou a discorrer acerca da Análise Econômica do Direito1, que “não visa só à economia. Ela é aplicada às decisões judiciais, atos do Poder Público e na elaboração de normas legislativas levando em consideração o aspecto social de um país” (CNJ, 2022, online).

Sob esta perspectiva, costuma-se falar em demandas de valor esperado negativo, aquelas “cujos custos superam o retorno” (Cabral, 2022, online). A questão que ora se arvora é a seguinte: ainda que diante de um valor esperado negativo, mostra-se possível manejar ação civil pública?

Antes de adentrar nos méritos da ação civil pública, não se mostra despiciendo tecer algumas considerações a respeito do microssistema processual brasileiro de processos coletivos. Sua existência é justificada pela insuficiência do Código de Processo Civil (não apenas o atual, mas também os que lhe são anteriores) em regular os processos coletivos. Um exame (mesmo que perfunctório) de sua estrutura permite notar que é voltado à litigância entre indivíduos. “O processo individualista era impróprio e intencionalmente inepto para a proteção de situações coletivas, às quais as sociedades eram avessas, quando se formou essa concepção de processo, nos séculos XIX e limiar do XX” (Arruda Alvim, 2012, p. 81).

Com o decorrer do tempo e a complexidade da modernidade (e da sociedade de massas), urgiu a necessidade de tutelar, eficazmente, interesses pertencentes não aos indivíduos, mas a uma coletividade. A partir daí, “a ação civil pública nasceu para proteger novos bens jurídicos, referindo-se a uma nova pauta de bens ou valores, marcados pelas características do que veio a ser denominado de interesses e direitos difusos2 ou coletivos”. Os bens protegidos pela ação em comento, em momento anterior, apenas eram tuteláveis de maneira aparente, na contramão da instrumentalidade que deve ser inerente ao processo, para lembrar Dinamarco.

Feitas essas breves considerações, eis que é chegado o momento de conceituar a ação civil pública. Para Hugo Nigro Mazzilli (2019, pp. 77-78), “a Lei 7.347 usou a expressão ação civil pública para referir-se à ação para defesa de interesses transindividuais, proposta por diversos colegitimados ativos. [...]. Nada mais é do que uma espécie de ação coletiva”.

Salta aos olhos, portanto, que se trata uma espécie de demanda apta a tutelar a mais diversa sorte de interesses. O artigo 1° da lei ora mencionada arrola alguns deles, dentre os quais se pode mencionar o meio-ambiente, a defesa do consumidor, os bens de valor histórico artístico, estético, turístico, paisagístico, etc.

É possível, então, vislumbrar um denominador comum entre eles: cuidam todos de direitos difusos ou coletivos em sentido estrito3. São espécies do gênero “direito coletivo em sentido lato”4.

Partindo desses pressupostos, gostaria de colocar em enfoque apenas e tão somente a atuação do Ministério Público (enquanto um dos legitimados à propositura da ação em apreço).

Pois bem. O Parquet, como cediço, é essencial à função essencial à justiça, “incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e indisponíveis”, para usar os termos empregados pela Constituição Federal. Diante disso, “há antes dever que direito de agir. Por isso é que se afirma a obrigatoriedade e a consequente indisponibilidade da ação pelo Ministério Público” (Mazzilli, 2019, p. 97).

A afirmação suso deve ser enxergada cum grano salis. É certo que existe um dever de agir. No entanto, é um dever de agir condicionado à identificação das hipóteses em que deva agir. Ao comentar o princípio da indisponibilidade da demanda coletiva (e, quase que indissociavelmente, do interesse público), Rennan Faria Thamay (2012, p. 527) aduz que “essa obrigação é temperada em relação ao agir do Ministério Público para o ajuizamento da ação coletiva, podendo esse agente em caso de avaliação da conveniência e possibilidade não propor a demanda”.

Resvalando por esta senda, é esse o ponto em que reside a celeuma. Por uma banda, tem-se o princípio da indisponibilidade do interesse público e da demanda coletiva. Por outra, tem-se a discricionariedade atribuída ao Parquet para decidir pela propositura ou não de uma ação civil pública. A questão se mostra tanto mais tormentosa quando é trazida a proscênio a demanda de valor esperado negativo.

Abra-se parênteses. Previamente ao enfrentamento das demandas de valor esperado negativo propriamente ditas, saliente-se a existência de uma “subespécie”, a saber, as demandas frívolas, “aquelas cujo intento único é causar dano ao réu através do próprio processo e que, portanto, tem correspondência direta no ordenamento pátrio com a litigância de má-fé prevista do art. 79 do CPC” (Dognini; Queiroz Pereira, 2021, pp. 1505, 1506). A toda evidência, o MP, nesse caso, deve se abster de agir. Afinal, já se foi o tempo da vingança privada. Ajuizar uma ação nessas condições corresponderia a caminhar na contramão do espírito de justiça que deve nortear o ordenamento jurídico. Seria inumar as vigas medulares do nosso Estado Democrático e Constitucional de Direito. O processo não serve para atender a fetiches, mas para fazer justiça. Para concretizar os valores estampados na Lei Maior.

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Retomemos as demandas de valor esperado negativo (enquanto gênero), aquelas excessivamente dispendiosas. Alguns podem defender que o interesse público que permeia esse jaez de processo justifica um ajuizamento amplo e irrestrito, sem qualquer ponderação ex ante. Devagar com o andor que o santo é de barro. Eventualmente, é possível que a natureza dos interesses em jogo justifique sua propositura.

A título exemplificativo, mencione-se a tutela do meio ambiente. O só-fato de haver gastos exacerbados não é motivo bastante para que o bem ambiental fique desprotegido. Não se trata de um bem passível de ser mensurado economicamente. É um bem de cariz constitucional, essencial à sadia qualidade de vida, de titularidade da coletividade (não só das presentes, mas também das futuras gerações). “A exigência da proteção jurídica do meio ambiente é decorrente da situação de degradação da qualidade de vida. [...]. Destaca-se como no cenário jurídico nacional como bem comum de toda humanidade” (Da Cunha, 2017, p. 111). Destarte, fazendo uma ponderação fundamentada e racional entre os valores conflitantes, e não havendo alternativa senão a judicialização da lide, justifica-se que o Parquet assim proceda, mesmo diante de uma demanda de valor esperado negativo.

Inobstante, faça-se uma observação. Antes, pensava-se que justiça apenas era feita com a prolação de uma sentença. Com o acesso ao Judiciário. É imprescindível repudiar o fenômeno da litigância em massa (e predatória), que tanto compromete a qualidade da prestação jurisdicional, além de ser indicativo de uma distorção no sistema social (a exceção da judicialização não deve ser tratada como regra).

É nesta toada que se arvora a Justiça Multiportas. Didier (2019, pp. 201, 202) dá o tom:

A tutela dos direitos pode ser alcançada por diversos meios, sendo a justiça estatal apenas mais um deles. Atualmente, deve-se falar em ‘meios adequados de solução de conflitos’, designação que engloba todos os meios, jurisdicionais ou não, estatais ou não, e não mais em ‘meios alternativos de solução de conflitos’ (alternative dispute resolution), que exclui a jurisdição estatal comum e parte da premissa de que ela é a prioritária. Nesta nova justiça, a solução judicial deixa de ter a primazia nos litígios que permitem a autocomposição e passa a ser a ultima ratio, extrema ratio.

Velejando por esta singra, “o dever de agir não obriga à cega propositura da ação pelo Ministério Público. [...]. O membro do Ministério Público pode deixar de propor ação civil pública, por não identificar a hipótese em que a lei exija sua ação, como: [...] b) solução extrajudicial satisfatória”.

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À vista disso, ao invés de propugnar por uma judicialização excessiva, ampla e desmesurada (rectius: demandas de valor esperado negativo), por que não propugnar por uma tentativa de resolução do litígio pelas vias extrajudiciais? Desta feita, o interesse coletivo restará cabalmente protegido, os custos da máquina estatal não serão indevidamente empregados e, demais disso, o Judiciário poderá ter seu tão merecido respiro.


  1. Não pretendo, aqui, adotar a postura criticada por Barbosa Moreira (1982, p. 27): “Eis que com isso, porém, ainda uma vez seríamos levados ao vórtice das grandes concepções teóricas, de que se vai difundindo em tantos espíritos certo cansaço justificado, em boa extensão, pelo abuso do conceptualismo e das abstrações dogmáticas”. É dizer, divagações em excesso, ao invés de ajudar, atrapalham. Portanto, o fio condutor do presente texto é a objetividade (sem descurar, a toda evidência, da precisão).

  2. Sobre o tema, cf., com proveito, MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos. 9 ed. São Paulo: Editora Thomson Reuters, 2019.

  3. A definição dos direitos em testilha dormitam no parágrafo único do artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor, para onde remeto o leitor.

  4. Perceba-se que a ação civil pública não se presta a tutelar (como regra) os direitos individuais homogêneos, direitos acidentalmente coletivos (ou direitos individuais de expressão coletiva), mas apenas aqueles legitimamente coletivos.

Sobre o autor
Gustavo Machado Rebouças

Jovem eivado de inexperiência que, casualmente, se presta a tecer breves considerações acerca do mundo jurídico.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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