Cidadania e direito fundamental à moradia

03/11/2023 às 15:42

Resumo:


  • O direito à moradia é um direito social fundamental, essencial para a dignidade humana e cidadania.

  • A cidadania não se restringe apenas aos direitos políticos, mas engloba também direitos sociais e civis.

  • A moradia digna é um direito universal, protegido pela Constituição, que demanda ações efetivas do Estado para garantir sua concretização.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O presente estudo tratará do direito social à moradia, com delineamento histórico da consolidação dos direitos fundamentais e sociais, dos principais conceitos, da relação do direito à moradia, como direito fundamental, imprescindível a dignidade humana bem como a própria cidadania. Para a concretude do direito à moradia digna são fundamentais a efetividade das políticas públicas, que devem ser eficientes e assegurar os direitos do cidadão.

Faz-se necessário inicialmente, delinear um conceito de cidadania para que se possa a partir deste conceito, desenvolver o tema.

É comum ao pesquisar sobre o tema verificarmos a redução do conceito de cidadania aos direitos políticos de determinada pessoa ligada ao Estado, exemplo, direito de votar e ser votado no seu domicilio eleitoral.

Porém, a cidadania deve ser concebida sob um enfoque não só de direitos políticos, mas também de direitos sociais e civis.

Segundo Marshall , a cidadania é uma qualidade daqueles que são pertencentes a uma comunidade e dentro desse contexto são iguais em direitos e obrigações, e assim considerados cidadãos. (MENDES , 2005. PAG. 11 )

Ainda de acordo com Marshall, assim se estabelecem as relações entre a cidadania e os direitos civis:

“(...) pretendo dividir o conceito de cidadania em três partes. (...) Chamarei estas três partes, ou elementos, de civil, política e social. O elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça. Este último difere dos outros porque é o direito de defender e afirmar todos os direitos em termos de igualdade com os outros e pelo devido encaminhamento processual.1 Isto nos mostra que as instituições mais intimamente associadas com os direitos civis são os tribunais de justiça. Por elemento político se deve entender o direito de participar no exercício do poder político, como um membro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo. As instituições correspondentes são o parlamento e conselhos do Governo local. O elemento social se refere a tudo que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade. As instituições mais intimamente ligadas com ele são o sistema educacional e os serviços sociais” (Marshall, apud Kant de Lima 1967:63-64, grifos meus) (retirado do artigo professor kant pag. 50) 

Impossível pensar em cidadania de forma concreta sem pensar nesse “mínimo”, que certamente inclui ter um lugar para morar. Conforme será demonstrado a seguir, a falta de residência pode ser fator preponderante de desigualdade inclusive no âmbito do processo criminal, levando a uma desigualdade não só de fato mas uma desigualdade formal.

E a partir daí, chegamos a outra conclusão: não é possível conceituar cidadania sem entender o que é igualdade, dentro dos padrões de uma sociedade civilizada.

Assim, ainda que existam diversos tipos de moradias é evidente que toda pessoa para levar uma vida civilizada gozando dos direitos fundamentais de um cidadão precisa morar em algum lugar com um mínimo de dignidade. Ainda que os lugares possam ser “diferentes” numa perspectiva cultural e de hábitos ou padrões socioeconômicos mas todos tem direito a um lugar para morar, isso seria “igualdade”.

Na verdade é preciso diferenciar a igualdade formal da material: as sociedades igualitárias, adotando o estado democrático de direito visam assegurar, através de garantias individuais previstas na constituição a igualdade jurídica e não a igualdade de fato. Assim, é a igualdade jurídica (formal) que tem por objetivo garantir o direito a tratamento diferenciado a alguns cidadãos.  (MENDES, 2005. p. 23.)

Importante ressaltar que o direito à moradia é um direito universal, abrangendo e sendo necessário para todos os cidadãos, independentemente de qualquer condição, tal como sexo, raça, religião ou condição econômica, todos precisam de um local para morar. E assim, verifica-se a violação desse direito sempre que for implantado um sistema infraconstitucional ou qualquer ato advindo de autoridade pública que importe em lesão a esse direito, em redução, desproteção ou atos que inviabilizem o seu exercício, porque o direito à moradia goza de proteção (por intermédio dos três poderes) de respeitar, proteger, ampliar e facilitar esse direito fundamental.

Desta forma, toda e qualquer legislação infraconstitucional que suprima, dificulte ou impossibilite o exercício do direito à moradia por um indivíduo – tem-se a sua violação – ainda que por norma validamente constituída e promulgada – é tida como violadora do direito à moradia.

Como muito bem assevera Mendes, existe um flagrante descompasso entre o que preceitua o art. 5º da Constituição Federal e os privilégios explícitos existentes no nosso ordenamento, que confrontam com a “igualdade” constitucional. A autora cita em seu artigo dispositivos constitucionais como o art 5 e o art. 98, I que visam, por exemplo, assegurar o acesso universal à justiça e ao mesmo tempo ressalta direitos positivados na legislação infra constitucional que violam expressamente o direito à igualdade, exemplo disso é a prisão especial aos que possuem diploma de graduação. (Reginal Lucia Teixeira MENDES, Igualdade à brasileira: Cidadania como instituto jurídico no Brasil. pag. 1/2. 2005. Livraria e Editora Lumen Juris Ltda).

Passa-se a seguir a tratar de tal temática, analisando-se o direito à moradia digna como direito fundamental que deve ser assegurado a partir de políticas públicas eficientes que resguardem a dignidade da pessoa humana.

Ao discorrer sobre a importância do direito à moradia, José Afonso da Silva aduz que “não há marginalização maior do que não se ter um teto para si e para a família.” (SILVA, 2014, p. 318). Pode-se dizer, que a pessoa que não possui um teto para habitar não chega a ser considerado um cidadão e, assim, tem a sua dignidade gravemente ferida. “Esse ser humano é quimérico, utópico, pois, não esqueçamos a utopia: o não-lugar, o lugar daquilo que não acontece e não tem lugar, o lugar do alhures. Esse ser humano está em um não lugar, é um não cidadão ou é cidadão em negativo e, por não dispor de um teto para morar, está em estado de necessidade” (CANUTO, 2010, p. 271).

Verifica-se que a falta de moradia acaba por ceifar uma pessoa até mesmo de ter assegurada igualdade de condições num processo criminal como já afirmado. Como exemplo, podemos citar que a legislação infra constitucional, prevê a possibilidade, cumprido determinados requisitos legais, de prisão domiciliar. Ora, se o sujeito não tem como comprovar onde reside ou se reside na rua ou em um abrigo público, simplesmente não fará jus a este direito. E sobre isso, o professor Kant assim leciona: 

“Além disso, importantes dispositivos legais prescrevem tratamento jurídico desigual aos acusados, no Brasil. Entre eles, a já referida “prisão especial”, que assegura condições privilegiadas na prisão, concedidas a certas categorias de pessoas – como, por exemplo, aquelas portadoras de instrução superior –, que vão desde a permanência em separado dos chamados “presos comuns”, em acomodações especialmente destinadas a assegurar este privilégio, até a “prisão domiciliar”, cumprida na residência do acusado” (Kant de lima, p.54) grifos nossos 

Da mesma forma, a legislação infraconstitucional prevê institutos como liberdade provisória, trazendo como pré-requisito a necessidade de comprovar residência fixa. Ora, o sujeito que está numa situação de vulnerabilidade extrema, sem um local para morar e sem emprego e que vem a se envolver numa atividade criminosa não fará jus a liberdade provisória? Bem como, não poderá ter convertida sua pena privativa de liberdade em restritiva de direitos, simplesmente por não ter aonde se recolher no período noturno?

Na verdade negar esse direito ao réu ou condenado é um violação de direitos humanos bem como também é, a ausência de politicas públicas que possam assegurar o direito à moradia e mais: verifica-se que normas infraconstitucionais acabam por trazer desigualdade aos que se submetem ao “ devido processo legal” que neste caso não tem nada de “legal.

“Direitos Humanos” é uma expressão que tem como principal fonte a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948, sendo utilizada para se referir a direitos protegidos no âmbito do Direito Internacional, e “Direitos Fundamentais” seriam os direitos humanos reconhecidos, positivados e protegidos em seu âmbito interno pelos Estados: 

Em que pese sejam ambos os termos (“direitos humanos” e “direitos fundamentais”) comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos” guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos.( SARLET, 2006, p. 35-36.) 

O Direito a moradia é um direito humano fundamental, fruto de todo um percurso histórico de conquistas de direitos pela pessoa humana.

O direito à moradia é fundamental uma vez que essencial a própria sobrevivência digna da pessoa humana, de acordo com José Afonso da Silva trata-se de: 

[...] situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados. (SILVA, 2014, p.178) 

Ressalte-se ainda que os Direitos Humanos são a base de proteção dos seres humanos contra os abusos e as violações de condições mínimas para uma sobrevivência digna, devendo ser garantidos e efetivados pelo Estado, conforme ensinamento de Bobbio: 

(...) os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra os velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.(BOBBIO, 2004,p.21) 

Enfatizando essa fundamentalidade dos direitos sociais, Flavia Piovesan afirma que, “não há direitos fundamentais sem que os direitos sociais sejam respeitados” (PIOVESAN, 2013, p.96).

Com a queda do regime nazista e o fim da Segunda Guerra Mundial, após todas as barbaridades experimentadas por diferentes grupos de pessoas no âmbito mundial, a teoria dos direitos fundamentais foi ganhando forças paulatinamente.

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Conforme destaca Marmelstein, após esse período de horrores vividos com o regime nazista os juristas europeus se viram diante de uma “crise de identidade” proveniente do estado de transição vivido à época, já que o nazismo foi um “banho de água fria” para aqueles juristas de maior prestígio que se filiavam a corrente do positivismo ideológico (MARMELSTEIN, 2011, p.10).

O direito positivo trazia em seu alicerce uma força obrigatória fazendo com que suas normas fossem obedecidas de forma incondicional tanto pelas autoridades públicas quando pelos cidadãos, qualquer que seja o conteúdo destas normas, sendo este argumento utilizado pelos nazistas para “legalização do mal”[1] (MARMELSTEIN, 2011, p.11). Uma vez firmado no positivismo clássico foi exatamente este argumento o utilizado pelos advogados que defenderam nazistas perante o Tribunal de Nuremberg, ou seja, a justificativa era que existiam normas e que os nazistas apenas as cumpriam.

Assim, o processo de mudanças instalado mundialmente após a Segunda Guerra Mundial fez nascer a ideia de pós-positivismo, colocando a dignidade da pessoa humana como ponto central (valores e princípios a ela relacionados), deixando de lado a antiga forma de pensar a convivência social em substituição à norma pura e sua obediência incondicional.

A dignidade humana é então reconhecida como uma qualidade que não pode ser dissociada da pessoa, sendo a ela inerente.

Porém verificamos, que existem normas infraconstitucionais que seguem vigentes mesmo não tendo encontrado “amparo” na Constituição de 1988. Normas que seguem sendo aplicadas de forma “natural” mesmo sendo ameaçadoras do principio constitucional de igualdade de todos perante a lei, e a sociedade absorve esse paradoxo: mercado produzindo constantes desigualdades econômicas em confronto com a igualdade posta pela constituição.  (KANT DE LIMA, 2004. P.51)

Corroborando o exposto acima, Sarlet transcreve em sua obra um dos mais importantes pensamentos de Immanuel Kant se referindo às qualidades da pessoa humana: 

No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade…Esta apreciação dá pois a conhecer como  dignidade um valor de uma tal disposição de espírito e põe-na infinitamente acima de todo o preço. Nunca ela poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse um preço, sem de qualquer modo ferir a sua santidade. (KANT apud SARLET, 2009, p. 36) 

Destaque-se que em seu texto a Declaração Universal da ONU de 1948, no artigo 1º, ressalta a dignidade da pessoa humana, considerando-a universal: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade”

Assim, como diversos outros direitos humanos fundamentais o tema “moradia” foi debatido no âmbito do Direito Internacional, em 1948 (pós-segunda guerra), período em que se iniciou a internacionalização e afirmação dos direitos humanos.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o conceito de direito à moradia foi aos poucos evoluindo tanto no âmbito internacional, quanto no Brasil. E, a partir daí, este conceito passou a ser entendido de forma ampla, a fim de enfatizar a moradia como local de proteção à família e de convivência social:

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, adotada pela Resolução 217-A (III) da Assembleia Geral da ONU, reunida em Paris, em 10 de dezembro de 1948, em seus artigos 22 a 27, previu expressamente e de forma inédita, os direitos econômicos, sociais e culturais, e entre estes o direito à moradia. Este importante documento surgiu com a finalidade primordial de originar no ordenamento jurídico-internacional um valor fundamental e global da primazia da dignidade humana, ou seja, da pessoa como um fim em si mesma (ABREU, 2011, p. 11).

O direito humano à moradia encontra-se, desde então, exposto na declaração de direitos, no art. XXV, 1º, que assim dispõe: 

Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. (grifo nosso) 

Após ser expressamente reconhecido nesta declaração, o direito à moradia foi então previsto e assegurado em outros documentos e tratados internacionais, e seu ápice foi o Pacto Internacional de direitos econômicos, sociais e culturais (PIDESC), de 1966, ratificado pelo Brasil, 26 anos depois, através do Decreto 591 de 24 de janeiro de 1992.

Neste mesmo contexto, além do PIDESC, no mesmo ano, aproveitando-se de certo esfriamento das acirradas relações internacionais entre os blocos capitalista e comunista, temos outro documento internacional da Assembleia Geral da ONU: o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP).

A Declaração Universal dos Direitos Humanos e os dois pactos formam a Carta Internacional dos Direitos Humanos, com alcance universal, incluindo várias espécies de direitos essenciais.

O art. 11, § 1º do Pacto, traz a seguinte previsão: 

Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a  importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento. 

É importante ressaltar que neste documento (supracitado), já havia a previsão de que a moradia, assim como a alimentação e vestimentas, por exemplo, deveriam ser “adequadas”. Já contendo, portanto, nesta expressão uma agregação do conceito de moradia aos elementos que a devem integrar para que seja assegurado o direito à moradia digna e adequada.

Importante ainda, mencionar dois importantes documentos oriundos de duas grandes conferências promovidas pela ONU sobre a problemática dos assentamentos humanos, respectivamente em 1976 (Declaração de Vancouver sobre Assentamentos Humanos - Habitat I) e posteriormente em 1996, em Istambul, Turquia, da qual resultou a assim designada Agenda Habitat II, tido como o mais completo documento na matéria, do qual também o Brasil é signatário (SARLET, 2008, p. 03).

Para Sarlet, 

Já por ocasião da Declaração de Vancouver (1976) restou assegurado que a moradia adequada constitui um direito básico da pessoa humana. Por ocasião da Agenda Habitat II (Declaração de Istambul, de 1996), além de reafirmado o reconhecimento do direito à moradia como direito fundamental de realização progressiva, mediante remissão expressa aos pactos internacionais anteriores (art. 13), houve minuciosa previsão quanto ao conteúdo e extensão do direito à moradia (art. 43) bem como das responsabilidades gerais e específicas dos Estados signatários para a sua realização, que voltarão a ser objeto de referência (SARLET, 2008, p. 04) 

Em âmbito nacional, a Constituição Federal de 1988 inova no ordenamento jurídico com importantes mudanças, notadas pelo viés garantista adotado em seu corpo textual, posicionados especialmente no Título II - sob o nome Direitos e Garantias Fundamentais e especialmente quanto ao Direito à moradia previsto na Capítulo II que trata dos direitos sociais no art. 6º, incluído expressamente na Constituição por meio da Emenda Constitucional 26, no ano 2000.

Os direitos fundamentais são o ponto central da Constituição Federal, previstos nos artigos: 1º, inciso III, 5º, §1º e § 2º, ambos da Constituição Federal de 1988:

Artigo 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituem-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

III – a dignidade da pessoa humana; 

Artigo 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade, nos termos seguintes:

[...]

§ 1º - As normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. 

Não haveria como separar o Direito dos valores humanos uma vez que a partir das teorias pós-positivistas passou-se a considerar necessário a discussão de novos problemas como jurídicos o que antes não se considerava. E assim, no Brasil, a Constituição de 1988, foi consequência dos anseios da sociedade após um longo período de supressão e negação de direitos, vivenciados no país e as atrocidades cometidas à época da Ditadura Militar.

Para alguns doutrinadores, e entre eles, Paulo Bonavides, a Constituição de 1988 foi muito além do que apenas prever (positivar) novos direitos e instrumentalizar garantias, a Constituição de 1988 enraizou e aparelhou as entidades públicas e os cidadãos da base de um Estado Social. Fazendo a leitura sistemática da Carta Política, fica mais visível e fácil chegar a esta conclusão (BONAVIDES, 2005, p.371).

Os Direitos e garantias fundamentais são em verdade, cláusulas pétreas, ressalvadas no artigo 60, § 4º, inciso IV da Constituição Federal, e por serem princípios constitucionais, os direitos fundamentais são imprescindíveis à proteção da dignidade humana. Em razão de tudo isso a própria Constituição Federal concedeu aos direitos fundamentais a importância merecida fazendo previsão expressa da possibilidade de intervenção da União em Estado ou no Distrito Federal visando assegurar a observância dos direitos da pessoa humana, previsto no artigo 34, VII, alínea “b” da Constituição Federal de 1988: 

A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:

[...]

VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:

b) direitos da pessoa humana. 

Quanto à proteção da moradia, a Constituição no artigo 5º, inciso XI, é clara ao dispor que:

[...]

XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem o consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial; 

O Direito à moradia é um direito essencialmente fundamental, não só porque está assegurado constitucionalmente, mas também porque responde a uma necessidade fundamental da pessoa humana, constitui elemento primordial para sua dignidade. Este direito responde a uma necessidade primária do homem, condição indispensável para uma vida digna, eis que a casa é o asilo inviolável do cidadão, a base de sua individualidade, e, acima de tudo, como apregoou Edwark Coke, no século XVI “a casa de um homem é o seu castelo” (NOLASCO, 2008, p. 87).

Ainda, de acordo com Nolasco (2008, p. 87): 

A moradia é o lugar íntimo de sobrevivência do ser humano, é o local privilegiado que o homem normalmente escolhe para alimentar-se, descansar e perpetuar a espécie. Constitui o abrigo e a proteção para si e os seus; daí nasce o direito à sua inviolabilidade e à constitucionalidade de sua proteção.

Há vínculo de dependência entre esses dois direitos. O direito à moradia tende ao direito de morar e só se satisfaz com a aquisição deste em sua plenitude. Para isto, é preciso que concorram todos os elementos da moradia.

Quem conseguiu terreno, mas não a casa, satisfez apenas em parte seu direito à moradia. O mesmo acontece com quem possui a casa, mas não por tempo suficiente, exigido pelas demais relações da vida (trabalho, convívio, cultura, educação dos filhos). Assim, ao direito de morar são extensivos os mesmos princípios que ordenam o direito à moradia. 

Desta forma o direito à moradia, não se exaure em um teto e suas paredes, mas deve-se agregar a isso o direito de toda pessoa a ter acesso a um lar de fato, local para se desenvolver como ser humano e ainda, cercado de uma comunidade segura que lhe permita viver em paz, assegurando sua saúde física e mental.

Ora, não é possível pensar ou admitir o desenvolvimento humano sem um lar para morar, afinal sem uma casa onde irá descansar, se alimentar, fazer a sua higiene pessoal, receber amigos, parentes, correspondência, como alcançar um trabalho formal sem um lar?

Uma casa é necessária para satisfação das necessidades elementares da pessoa humana de maneira digna. O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, na sexta sessão de 1991, após analisar diversos relatórios emitiu a Observação Geral n.4. Este documento consiste numa interpretação normativa sobre o direito à moradia em âmbito internacional. Segundo a Relatoria Especial da Organização das Nações Unidas (ONU) pela Moradia Adequada, uma habitação adequada deve incluir: segurança da posse; disponibilidade de serviços, infraestrutura e equipamentos públicos; custo acessível; habitabilidade; não discriminação e priorização de grupos vulneráveis; localização adequada; e adequação cultural (ONU, 1991, p.111-112).

A partir de ser assegurado o direito à moradia digna e adequada, a pessoa humana passa a ter a chance de se desenvolver por completo, possibilitando a si e aos seus a capacidade de viver de forma digna e plena como ser humano, possibilitando o exercício de sua cidadania.

A realidade brasileira, que se percebe ao realizar uma análise histórica, nos mostra que a formação e expansão de áreas de habitação ilegais estão diretamente ligadas à forma como o Estado realizou a urbanização (excludente) e como foi o processo de construção habitacional durante todo o século XX, verifica-se que o mercado imobiliário capitalista, os baixos salários e a desigualdade social presentes desde o início da formação da sociedade brasileira, tornaram inacessível o direito à moradia para a maior parte dos indivíduos, que em sendo produto e produtor dos processos de periferização, segregação, degradação ambiental, má qualidade de vida e violência nas cidades. (HOLZ; MONTEIRO, 2020).

Destaque-se que o direito à moradia digna exige por parte do Estado uma prestação negativa (de defesa) e outra positiva com caráter prestacional, ou seja, exige do Estado o dever de ação e de proteção quanto a este direito fundamental. Neste sentido, afirma Sarlet que: 

o direito à moradia exerce simultaneamente a função de direito de defesa e direito a prestações, incluindo tanto prestações de cunho normativo, quanto material (fático) e, nesta dupla perspectiva, vincula as entidades estatais e, em princípio, também os particulares, na condição de destinatários deste direito, muito embora se possa controverter a respeito do modo e intensidade desta vinculação e das consequências jurídicas possíveis de serem extraídas a partir de cada manifestação do direito à moradia [...] (SARLET, 2014). 

Tendo em vista que a Constituição brasileira se assenta na dignidade da pessoa humana e tem como objetivo construir um sociedade justa, livre e solidária, conforme disposto em seu preâmbulo e artigos 1º e 3º, pode-se concluir a importância da moradia como direito humano fundamental, já que é um direito essencial para a dignidade da pessoa humana. Assim, é possível afirmar que desde 05 de outubro de 1988, a moradia é um direito fundamental, e a Emenda Constitucional nº 26/2000 veio para que não pairassem dúvidas sobre tal afirmativa.

Verifica-se que a falta de moradia impacta e lesa tão gravemente os direitos humanos, se desdobrando inclusive em violações ao sistema judicial criminal que prevê a possibilidade de prisão domiciliar ou direito de “responder em liberdade”, “liberdade provisória” àquele que possui residência fixa, enfatizando uma desigualdade no processo criminal como muito bem destaca o Professor Kant, assim como ocorre quando prevê a possibilidade de prisão especial para aqueles que possuem ensino superior ou ainda, foro privilegiado a alguns “privilegiados” acentuando a desigualdade em tantos aspectos: 

“Trata-se, assim, de um sistema judicial criminal que não é aplicado de forma igual a todos os cidadãos, mas que assegura privilégios, desigualdades consagradas na própria legislação penal...” (KANT DE LIMA, 2004 p.54). 

REFERENCIAS

ABREU, João. M. A moradia informal no banco dos réus: discurso normativo e prática Judicial. São Paulo: Revista Direito GV, v. 7, n. 2, p. 25, jul./dez. 2011. acesso em 04/08/2020:

AMORIM, Maria Stella, KANT DE LIMA, Roberto e MENDES , Regina Lucia Teixeira. Ensaios sobre a igualdade jurídica.  Igualdade  à brasileira: Cidadania como instituto jurídico no Brasil.  2005. Livraria e Editora Lumen Juris Ltda

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 16.ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

CANUTO, Elza Maria Alves. O direito à moradia urbana como um dos pressupostos para a efetivação da dignidade da pessoa humana. UFMG. Disponível em https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/16030/1/Elza.pdf. Acesso em 16/08/2020

HOLZ, Sheila y MONTEIRO, Tatiana Villela de Andrade. Política de habitação social e o direito a moradia no Brasil. Diez años de cambios en el Mundo, en la Geografía y en las Ciencias Sociales, 1999-2008. Actas del X Coloquio Internacional de Geocrítica, Universidad de Barcelona, 26-30 de mayo de 2008. http://www.ub.es/geocrit/-xcol/158.htm  acesso em 30 de julho 2020.

KANT DE LIMA, Roberto. Direitos Civis e Direitos Humano: uma tradição judiciária. São Paulo. 2004.

NOLASCO, Lorecy Gottschalk. Direito fundamental à moradia. São Paulo: Pillares, 2008.

PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 14. ed., rev. E atual. São Paulo: Saraiva, 2013.

SALLES, A. V. S. Diretrizes para o espaço urbano público inibidor de delitos. 2007. 134 f. Dissertação (Dissertação em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Faculdade de Brasília, 2007. Disponível  hm:https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/1126/1/Disserta%C3%A7%C3%A3o_2007_AdrianaVasconcellosSalles.pdf. Acesso em 01 de julho de 2020.

SANTOS, W. G. Cidadania e Justiça: a política social na ordem brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1987.

SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia aos vinte anos da Constituição Federal de 1988: notas a respeito da evolução em matéria jurisprudencial, com destaque para a atuação do Supremo Tribunal Federal. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais. 2008, .

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.


[1] Importante destacar, que a Hannah Arendt tratou do tema “banalização do mal”, em seus estudos, ao analisar sob a ótica da filosofia política, as atrocidades do regime nazista.

Sobre a autora
Juliana Kryssia Lopes Maia

Doutoranda em Direito pela Universidade Veiga de Almeida. Mestre em Direito pela Universidade salesiana. Especialista em direito civil e processo pela Universidade Cândido mendes. Especialista em Direito Administrativo pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Especialista em Direito penal pela Universidade Candido Mendes. Especialista em cadeia de custódia da prova no processo penal. Advogada sócia fundadora Juliana Maia sociedade de advogados. Procuradora Geral OAB 1ª subseção RJ. Presidente da comissão acadêmica ANACRIM/Baixada RJ. Atualmente é professora da Universidade Iguaçu. Atualmente é advogada e palestrante.

Informações sobre o texto

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