Superendividamento do Consumidor e a Tutela Judicial nas Relações de Crédito: Uma análise à luz da Lei 14181/2.

06/11/2023 às 11:49
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1 introdução

No Brasil, a condição de superendividamento é reconhecida quando um indivíduo direciona mais de 50% de seus ganhos mensais para o pagamento de suas obrigações de crédito, caracterizando, assim, um tipo acentuado de endividamento. Conforme informações oriundas de um estudo de escala nacional conduzido pela Confederação Nacional de Comércio, Bens, Serviços e Turismo - CNC (2023), observa-se um notável incremento na quantidade de agregados familiares que se encontram em situação de endividamento. Os dados relativos ao estado de endividamento e à inadimplência dos consumidores no Brasil indicam que, em junho de 2019, 64,0% das famílias no país estavam comprometidas com dívidas e enfrentavam dificuldades para quitar suas despesas (TOMAZELLI, 2023).

Dentro deste contexto, a problemática que se apresenta está relacionada com o crescente aumento no contingente de famílias que enfrentam um quadro de superendividamento, bem como a inadimplência entre os consumidores no Brasil. Este fenômeno tem gerado repercussões notáveis.

Com a promulgação da Lei nº 14.181, em 1º de julho de 2021, que trouxe modificações significativas à Lei nº 8.078, datada de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), e à Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), surge a demanda por uma análise aprofundada dos elementos que foram introduzidos ou mantidos na nova legislação, com o intuito de aprimorar a regulação do crédito ao consumidor, prevenir o superendividamento e aprimorar suas abordagens (GAGLIANO, 2021). Assim, a questão que se coloca é a seguinte: Qual é a eficácia e quais são os mecanismos previstos na Lei nº 14.181/2021?

Nesse enfoque, este exame encontra sua razão de ser na imperiosidade de se examinar a efetividade e os procedimentos estabelecidos na Lei nº 14.181/2021 - conhecida como a Lei do Superendividamento. Isso ocorre devido à sua significativa importância no âmbito da justiça e do sistema legal, uma vez que a questão do endividamento está estreitamente associada a uma variedade de litígios judiciais.

2 referencial teórico

2.1 o superendividamento à luz da lei 14.181/2021

Constata-se que no cenário brasileiro, a abordagem do superendividamento do consumidor constitui um procedimento de grande complexidade, demandando uma análise rigorosa das obrigações financeiras do consumidor e dos gastos essenciais a serem avaliados no âmbito do limite mínimo necessário para garantir uma solução efetiva. No entanto, com a promulgação da Lei nº 14.181/2021, foram introduzidas novas normas com o intuito de lidar com a prevenção e o tratamento do superendividamento do consumidor, trazendo significativos avanços e fortalecendo os princípios de defesa do consumidor consagrados no Código de Defesa do Consumidor (CDC) (RIBEIRO, 2022).

A mencionada legislação teve sua origem na Comissão de Especialistas do Senado, sob a presidência do magistrado Antônio Herman Benjamin, membro do Superior Tribunal de Justiça. Nesse comitê, foram acolhidas ideias, investigações empíricas e estratégias para a resolução de disputas desenvolvidas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), bem como contribuições das magistradas do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TOMAZELLI, 2023).

Conforme a exposição de Gagliano (2021), as reformulações decorrentes da legislação estão, de maneira primordial, ligadas ao conceito de crédito consciente. Este conceito desempenha um papel central na estipulação das proibições de práticas abusivas por parte dos fornecedores, na promoção da educação financeira dos consumidores e na abordagem do superendividamento. O crédito consciente, ao orientar as interações no âmbito do consumo, favorece a celebração de contratos mais cooperativos e éticos, sendo um princípio que já se encontrava implícito na Constituição Federal de 1988.

Trata-se de um princípio orientador que estabelece diretrizes para a promoção de práticas de concessão de crédito responsável por parte das instituições financeiras. Estas devem conduzir uma análise prévia das condições do consumidor de forma justa e não exploratória. Nesse contexto, compete ao Poder Público a incumbência de implementar ações que inibam comportamentos propensos ao crédito inadequado. Todavia, o devedor também possui o dever de atuar com integridade e discernimento ao assumir obrigações financeiras (VENTURA, 2021).

Segundo Tomazelli (2023), a inovação trazida pela recente legislação busca "fortalecer as obrigações ligadas à divulgação de informações, esclarecimento, análise e colaboração no processo de outorga de crédito, enquanto simultaneamente visa combater o estímulo ao consumo excessivo e práticas indevidas". Essa reforma na lei motiva a sociedade a adotar uma cultura de pagamento que fomente uma conscientização mais profunda entre os consumidores, através de novos métodos de prevenção e tratamento do superendividamento.

Conforme Ribeiro (2022), o princípio do crédito responsável pode despertar nos consumidores um comportamento mais criterioso e ético, orientando-os a contrair apenas as dívidas que têm a capacidade de cumprir. A integração dessas novas responsabilidades dos fornecedores pode desencadear um impacto pedagógico abrangente, contribuindo para a prevenção da inadimplência e do superendividamento.

Além das considerações anteriores, a legislação adotou medidas adicionais destinadas a reforçar a proteção dos consumidores altamente vulneráveis, que engloba aqueles identificados como "idosos, analfabetos, enfermos ou em situação de extrema vulnerabilidade", conforme explicitado no artigo 54-C, inciso IV, nos termos do documento oficial de 2021 do governo brasileiro (BRASIL, 2021).

Segundo Gagliano (2021), essa iniciativa representa um passo substancial em direção à promoção da igualdade e à prevenção da exploração de consumidores, com um enfoque especial na salvaguarda dos indivíduos extremamente vulneráveis durante as transações comerciais. Outra inovação de notável relevância para o processo de tratamento do superendividamento no Brasil consiste na consagração do direito à preservação do mínimo existencial, um direito já assegurado pela Constituição, mas agora com uma regulamentação específica estabelecida na Lei 14.181/2021.

Ao antecipar uma maior salvaguarda aos consumidores altamente vulneráveis com o propósito de evitar a situação de superendividamento, a mencionada legislação desempenha um papel orientador nas estratégias de abordagem do superendividamento, que incluem a implementação de planos de pagamento. Ela também atua como uma ferramenta de combate à marginalização social decorrente do superendividamento, fortalecendo assim o princípio inclusivo estabelecido no Código de Defesa do Consumidor (CDC), conforme já mencionado na análise (VENTURA, 2021):

Em nossa sociedade de informação e de crédito, poder ter acesso e participar da sociedade de consumo, ser consumidor, é estar incluído nas benesses da globalização e do círculo virtuoso da sociedade brasileira e seu grande esforço de combate à pobreza, daí que o CDC tem uma importante função ou dimensão de inclusão social.

Miragem (2021) sublinha que a Lei também abordou a perspectiva de uma conciliação global do consumidor, na qual são reunidos todos os credores (a ausência de qualquer um deles resultaria em penalidades, conforme indicado no § 2º do artigo 104-A), e introduziu disposições adicionais nos parágrafos 1º, 2º, 3º, 4º e 5º para reforçar esse enfoque. Adicionalmente, o artigo 104-B estipula que, na ausência de sucesso na conciliação envolvendo qualquer dos credores, o juiz, a pedido do consumidor, dará início a um processo de superendividamento com o objetivo de revisar e consolidar os contratos, bem como renegociar as dívidas pendentes através de um plano judicial compulsório. O juiz também notificará todos os credores cujos créditos não tenham sido incorporados em acordo algum celebrado (BRASIL, 2021).

Com o propósito de enfatizar a importância da prevenção e do tratamento do superendividamento, tal como estipulado na Lei nº 14.181, de 2021, o devedor tem a prerrogativa de submeter uma proposta de programa de pagamentos que pode se estender por até 5 anos. Esse plano de quitação é suscetível a negociação entre as partes envolvidas, visando liquidar a dívida por meio de um programa de pagamento abrangendo todos os requisitos essenciais. Uma vez homologado, esse programa se transforma em um título executivo com autoridade de coisa julgada. No entanto, caso não se chegue a um consenso, subsiste a alternativa de recorrer ao procedimento de reestruturação compulsória das dívidas, no qual o juiz prescreve um plano de pagamento (BRASIL, 2021).

Conforme a análise de Tomazelli (2023), as transformações efetuadas no procedimento de tratamento do superendividamento se configuram como uma das reformas mais benéficas para o consumidor que se encontra nessa situação. Isso se justifica pelo fato de que tais alterações garantem que o indivíduo tenha a possibilidade de restabelecer seu equilíbrio financeiro e reintegrar-se ao cenário do consumo. À luz da legislação e das suas novas diretrizes, o consumidor superendividado se vê amparado legalmente, enquanto a conciliação se apresenta como um instrumento que igualmente possui uma função pedagógica e motivacional, incentivando o consumidor a buscar, em ocasiões futuras, relações de consumo mais responsáveis.

2.2 a Tutela Judicial nas Relações de Crédito e a necessidade da proteção ao Consumidor

Quando se examina os achados da pesquisa, torna-se evidente que a necessidade de garantir a proteção do consumidor em situação de superendividamento deriva, principalmente, das circunstâncias em que o consumidor de boa-fé reconhece sua impossibilidade de cumprir todas as obrigações financeiras que contratou, devido ao involuntário comprometimento do mínimo necessário para sua subsistência. Nesse contexto, fica patente que o conceito de amparo ao consumidor superendividado está intimamente relacionado com o princípio da dignidade da pessoa humana, que é um dos alicerces do Estado democrático de Direito, tal como estabelecido no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988).

Nesse contexto, ao examinar cuidadosamente o tópico, é possível constatar um aumento na consciência, destacando que a implementação da Lei nº 14.181/2021 no cenário brasileiro trouxe consigo uma ampliação das garantias pessoais no tratamento das questões em questão. Isso compreende a prevenção de cenários de superendividamento, a disponibilização de informações mais abrangentes, a concessão de um prazo especial para o consumidor de crédito refletir e a conexão entre o contrato de consumo principal, que não se limita a um propósito meramente técnico-jurídico, mas abrange dimensões preventivas, jurídicas, educacionais, psicológicas e socioeconômicas. Todos esses aspectos são considerados com base no princípio da dignidade da pessoa e na necessidade de garantir o mínimo existencial (BRASIL, 2021).

O Conselho Nacional de Justiça – CNJ (2022), indica que "Adicionalmente, com base na perspectiva da Política Judiciária Nacional sobre a resolução adequada de conflitos de interesses, com ênfase em meios autocompositivos de solução de disputas, conforme estipulado na própria Lei nº 14.181/2021, torna-se fundamental adotar uma abordagem interinstitucional, baseada em diálogo e cooperação" (CNJ, 2022, p. 6). Nesse sentido, depreende-se que o papel desempenhado pelo Poder Judiciário, nesse contexto, deve garantir que os cidadãos tenham uma via aberta para a justiça, em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana e a necessidade de preservar o mínimo essencial para a vida.

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De acordo com as observações de Ribeiro (2022), em uma sociedade voltada para o consumo e caracterizada por uma abundância de ofertas de crédito, produtos e serviços, é frequente que os consumidores acabem adquirindo e despendendo recursos além de suas reais possibilidades financeiras. Diante desse quadro, ao se reconhecer a vulnerabilidade dos consumidores e a importância do direito fundamental à proteção, estabelecido no artigo 170, V, da Constituição Federal de 1988, a Lei do superendividamento foi instituída com o propósito de possibilitar que o indivíduo em situação de superendividamento possa ser reintegrado na sociedade, receber orientação financeira apropriada e ser resguardado contra a contração de dívidas que excedam sua capacidade de pagamento, prevenindo, desse modo, o assédio ao crédito.

A formulação de estratégias e medidas destinadas a evitar o superendividamento, juntamente com a implementação de abordagens apropriadas para reintegrar um consumidor que se encontra em situação de superendividamento no mercado, possibilita a realização de negociações em conjunto para a revisão de suas obrigações financeiras. Cabe destacar que a Lei, por intermédio do artigo 1º, procedeu a alterações no artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor (CDC), incorporando ao inciso XII um direito essencial do consumidor que enfatiza a relevância da preservação do mínimo vital (GAGLIANO, 2021).

Esse princípio é considerado crucial nas negociações de dívidas e na disponibilização de crédito. A alusão ao mínimo vital no contexto de acordos globais tem como finalidade assegurar que os acordos celebrados não comprometam a subsistência do devedor, fortalecendo a dimensão social e a batalha contra a exclusão estabelecida pelo CDC (MIRAGEM, 2021).

3 conclusão

O objetivo desta pesquisa foi examinar a efetividade da Lei do superendividamento como um instrumento que promove a adoção de práticas responsáveis no fornecimento de crédito, a educação financeira e a prevenção da redução do mínimo necessário para a subsistência. Dessa maneira, foi possível constatar que, embora o superendividamento seja tratado como uma questão ampla, a abordagem principal concentra-se na proteção e no tratamento conferidos aos indivíduos afetados pelo superendividamento.

A pesquisa investigou os direitos dos consumidores, as obrigações dos fornecedores nas relações de consumo, bem como os princípios fundamentais relacionados aos consumidores, à dignidade humana, à preservação do mínimo vital, à boa-fé, à solidariedade, à divulgação de informações, à liberdade de escolha e, acima de tudo, à vulnerabilidade da população brasileira.

É notório que em uma sociedade profundamente orientada para o consumo, onde o acesso ao crédito é amplamente disseminado e a ênfase recai sobre a sensação de inclusão e contentamento proporcionada pelo consumo, o superendividamento se configura como um desafio concreto, afetando variados segmentos sociais, com impacto particular nas camadas menos favorecidas economicamente. Essa problemática adquiriu dimensões significativas, tornando-se imperativo que as instâncias públicas e o sistema judiciário adotem medidas eficazes para mitigar suas implicações.

A partir da breve avaliação efetuada, tornou-se evidente que a promulgação da Lei 14.181/2021 representou uma valiosa contribuição à sociedade em sua totalidade. Esta legislação introduziu disposições e ferramentas destinadas a prevenir e tratar o superendividamento, notadamente pela inclusão do conceito de mínimo vital, o que assegura o exercício do direito constitucional dos cidadãos e preserva sua dignidade como ser humano. Isso oferece uma oportunidade ao consumidor de recuperar sua estabilidade financeira e reintegrar-se ao mercado de consumo, evitando, assim, a exclusão social.

Referências

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Cartilha sobre o tratamento do superendividamento do consumidor. Brasília, 2022a. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/08/cartilha-superendividamento.pdf. Acesso em: 30 de outubro de 2023.

BRASIL. Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14181.htm. Acesso em: 30 de outubro de 2023.

GAGLIANO, Pablo Stolze ; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Comentários à Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021) e o princípio do crédito responsável.: Uma primeira análise. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6575, 2 jul. 2021.

MIRAGEM, Bruno. Direito Civil. Direito das obrigações. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

RIBEIRO, Weudson. Congresso aprova orçamento de 2023 com salário mínimo de R$ 1.320. Universo Online, Brasília, 22 dez. 2022. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2022/12/22/congresso-aprova-orcamento-de-20 23-com -salario-minimo-de-r-1320.htm. Acesso em: 30 de outubro de 2023.

TOMAZELLI, Idiana; GARCIA, Nathalia. SALOMÃO, Alexa. Caixa pode ter que assumir prejuízos com consignado do Auxílio Brasil, diz secretário do Tesouro. Folha de S. Paulo, Brasília, 05 jan. 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/01/caixapode-ter-que-assumir-prejuizos-com-consignado-do-auxilio-brasil-diz-secretario-do-tesouro. shtml. Acesso em: 30 de outubro de 2023.

VENTURA, Ivan. O raio-x do consumidor endividado – e do superendividado. São Paulo, 6 de agosto de 2021. Disponível em: https://www.consumidormoderno.com.br/2021/08/06/ra io-consumidor-endividado-superendividado/. Acesso em: 30 de outubro de 2023.

Sobre o autor
Daniel Arruda Pires

Advogado, Pós-Graduado em Direito Constitucional

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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